domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capítulo 1

21 de fevereiro de 2011, 9h, Canoas, RS.
..........- Vamos entrar, querida, não custa nada darmos uma olhada – falou Rodrigues à esposa, olhando de dentro do automóvel a casa da rua Teófilo Gama, 871.
..........- Ela não parece meio... destruída?
..........- Ah, que isso, querida. Se a casa se encontra neste estado, então o dinheiro que temos deve ser o suficiente para comprá-la à vista. Não tendo dívidas, podemos reformá-la tranquilamente.
..........Júlia concordou e saiu do carro. Ela e o marido entraram no terreno para olhar a casa mais de perto. Parte do telhado havia desmoronado. Cacos de telha espalhavam-se pelo terreno, como se tivessem sido jogadas lá do alto e se espatifado no chão. A parte do madeiramento que não contava mais com a proteção de telhas havia apodrecido, devido à exposição ao tempo.
..........As janelas não estavam melhores: a maioria da vidraça estava quebrada; muitas venezianas pendiam para o lado, suspensas apenas por uma dobradiça – Júlia teve a impressão de que o próximo vento forte derrubaria as que ainda restavam.
..........A pintura desgastada, somada ao reboco rachado, fruto da total falta de manutenção, necessitaria de um grande investimento para sua restauração, pensou a mulher, avaliando a situação. Desviando o olhar da casa, Júlia observou o pátio novamente, fuzilado por telhas quebradas – ou que haviam se quebrado na queda. Três árvores estavam caídas e o mato tomava conta. Sabia que o marido, caprichoso como era, deixaria o lugar simplesmente lindo, mas teria muito trabalho.
..........- Venha, vamos olhar lá dentro – convidou o homem.
..........O seu interior também não estava com um aspecto muito bonito: quase todas as paredes apresentavam partes onde o reboco descascara, a massa ainda descansando no chão; a pintura, completamente gasta, era impossível de ser identificada; rachaduras em diversas paredes sugeriam problemas em sua estrutura.
..........- Querida, os cômodos são grandes, exatamente como gostaríamos. Vamos dar uma olhada lá em cima.
..........O casal subiu a escadaria e constatou que no segundo pavimento as coisas estavam do mesmo jeito que no primeiro.
..........- Se comprarmos, teremos muito trabalho, amor. Sairá caro contratarmos pedreiros...
..........- Querida, muita coisa podemos fazer sozinhos. Podemos limpar tudo, restaurar o reboco, trocar as lajotas que estiverem quebradas, pintar e trocar as portas e janelas que não puderem ser consertadas. Apenas contrataremos prestadores de serviços para a eletricidade, o encanamento e o telhado. Economizaremos uma fortuna em mão-de-obra.
..........- Tudo bem, amor, mas e as meninas?
..........- O que tem elas?
..........- E se não gostarem da casa?
..........- Está brincando, querida? Depois de pronta, esta casa ficará linda. Veja só este pátio enorme. Usarei meus conhecimentos em paisagismo para decorá-lo. Em alguns meses, a nossa casa será a mais bonita da rua.
..........- Tudo bem – concordou Júlia, pensativa.
..........- Querida, você não gostou da casa? Se não quiser comprá-la, podemos continuar procurando, para mim não tem problema.
..........- O quê? Não, amor, eu gostei. Na verdade, adorei a casa. É bem localizada, próximo à escola estadual e à Universidade La Salle, tem cômodos enormes... Resumindo, está bem de acordo com o que procuramos. Resta apenas saber o preço.
..........- Muito bem. Se você gostou, vou entrar em contato com a imobiliária – respondeu o homem, pegando o celular.
..........- Imobiliária Madruga, Karina, bom-dia.
..........- Bom-dia. Meu nome é Rodrigues e eu estou aqui, em um dos imóveis a ser vendido por vocês.
..........- Qual o endereço, por gentileza?
..........- Não me recordo qual é a rua, mas trata-se de uma casa toda arrebentada, próximo à Escola Estadual André Leão Puente.
..........- Ah, sim, já me localizei. O senhor está interessado em adquirir a propriedade?
..........- Possivelmente. Eu gostaria de saber o valor.
..........- Já lhe informo, senhor. Deixe apenas acessar o registro no banco de dados. Deixe-me ver... aqui está. O dono está pedindo R$ 100.000,00.
..........- Cem mil reais? Mas, um terreno não custa mais do que isso nesta região?
..........- Certamente, senhor. Mas, considerando que a casa precisará ser totalmente desmanchada ou reformada, imagina-se que os custos para isso seriam elevados. Dessa maneira, o dono quis fazer um abatimento no preço.
..........- Mas ainda assim...
..........- Bem, há mais coisas envolvidas: o proprietário quer voltar ao Pará o mais rápido possível. Este é o outro fator que contribui para a desvalorização do imóvel.
..........- Muito bem. Gostaria de fechar o negócio ainda hoje.
..........- Claro, senhor. Quer uma carona para o nosso escritório? Poderei buscá-lo, se preferir.
..........- É muita gentileza, mas não se incomode. Eu estou de carro. Apenas me consiga o endereço.
               
..........- Vocês só podem estar brincando! – exclamou Tassiane, perplexa. – Pai, achei que o senhor e a mãe fossem adquirir uma casa, não as ruínas de um prédio histórico da cidade.
..........Rodrigues havia buscado as meninas na escola às 11h45min, como de costume. Após o almoço, ele e sua esposa levaram as duas para conhecer a futura casa.
..........- Querida, não é tão ruim assim – disse Júlia.
..........- Mãe, daqui do carro podemos ver que a casa está deteriorada. É um risco grande chegar perto, pode cair um tijolo ou uma telha na gente.
..........- Tassiane, por favor! – falou a mulher, saindo do carro.
..........Maria Alice e Rodrigues também saíram do carro, mas Tassiane mantinha-se sentada.
..........- Tassi, por favor, não crie problemas – falou Júlia, olhando para o marido e Maria Alice, que já cruzavam o portão. - Querida, seu pai se esforçou muito para que chegássemos até aqui – disse a mulher, entrando no carro novamente. – Não jogue fora todo o esforço dele só porque não gostou da casa.
..........- Não é isso, mãe, eu...
..........- Tudo bem, eu sei que você sente falta dos amigos que deixou para trás.
..........- Eu não quero morar aqui, mãe – disse Tassiane começando a soluçar.
..........Júlia ficou com pena da filha. Mas não havia muito o que fazer, recém tinham fechado a compra da propriedade.            
..........- Querida, seu pai e eu ficamos semanas procurando a casa ideal. Finalmente encontramos. Dê-nos uma chance, sim?
..........Tassiane saiu do carro. Quando cruzou o portão, arrepiou-se. Alguma coisa estava errada naquela casa... muito errada.
..........Júlia estranhou que a menina, ao entrar no pátio, pegasse em sua mão. Tassiane era uma mocinha, logo completaria quatorze anos. Fazia tempo que a filha mais velha não segurava sua mão, pensou Júlia. Reparou que a menina olhava fixamente para a casa, com uma expressão de medo.
..........- Ah, vocês estão aí – falou Rodrigues, descendo a escada com Maria Alice, ao ver Júlia e Tassiane na sala. – Venha conhecer o seu quarto, querida – disse a Tassiane.
..........A garota subiu a escada na companhia dos pais e da irmãzinha. Passou por um corredor e finalmente chegou ao cômodo que usaria como quarto.
..........- Veja, é espaçoso e há uma linda vista. Pode-se ver o pátio e a rua – falou o homem, animado.
..........- Pai, podemos ir agora? – pediu Tassiane. - Não gosto de construções, pai, a casa fica muito feia.
..........- Tudo bem, vamos embora, então.
..........Tassiane começou a andar, puxando a mãe com força. Queria dar o fora daquela casa o mais rápido possível. A menina somente largou a mão de sua mãe quando chegou à calçada. Entrou no carro e ficou olhando para o outro lado – não queria olhar na direção da casa.
..........Chegando a casa que ocupavam, correu para o seu quarto e ficou trancada lá, até a hora da janta.
..........- Tassi, a janta está pronta, estamos apenas esperando você.
..........Júlia não obteve resposta.
..........- Querida, abra a porta.
..........Relutante, a menina obedeceu.
..........- O que está havendo, Tassi?
..........- A gente vai mesmo morar naquela casa horrorosa, mãe?
..........Júlia suspirou.
..........- Querida, não podemos voltar para Uruguaiana. Sinto que tenha que ter deixado os seus amigos, mas já é hora de superar isso, não acha?
..........- Não é isso, mãe.
..........- O que é, então?
..........- É aquela casa. Ela é maligna.
..........- Querida, é só uma casa. Não é um dragão devorador de mocinhas. Não vá querer me convencer de que há fantasmas naquela casa, está bem?
..........Tassiane não respondeu.
..........- Olha, o seu pai sempre foi bom para vocês. Não quero que o entristeça com essas fantasias sobrenaturais, tá? Nós não estamos em um filme de terror. Isso é a vida real. Venha, vamos jantar – falou a mulher, abraçando a filha.
..........Após a janta, Tassiane voltou ao seu quarto, desolada. Deitou-se na cama e começou a pensar sobre o porquê de não poderem continuar ali. Era uma casa de madeira, tão feia que nem pintada ficaria bonita. Era alugada, mas e daí? Sentia-se bem ali, não gostaria de sair.
..........A reforma da nova casa não iria demorar muito tempo, pensava Tassiane, angustiada. Seu pai era paisagista e não construtor. Mas era forte e rápido. Logo tudo estaria limpo e já iniciaria os reparos. Em questão de meses, calculava Tassiane, a casa estaria completamente reformada. Seria obrigada a se mudar para lá, talvez próximo à data de seu aniversário. Que belo presente para uma menina que completará quatorze anos – pensou a garota com tristeza.

Nenhum comentário:

Postar um comentário