O
roubo da Ametista
O monge entrou na sala, sabendo que
havia se preparado a vida inteira para isso.
Precisaria chegar até o homem que estava sentado em uma poltrona, do
outro lado da sala. Embora a distância não fosse muito grande, tinha a plena
certeza de que seria um trabalho muito difícil. Apenas o homem sentado sabia
que desafios o aguardavam.
Com todos os seus sentidos em alerta, deu o primeiro
passo. Silêncio. Moveu a outra perna. O homem na poltrona nem piscou. Quando o
monge chegou ao centro da sala, ouviu um grito. Atirou-se para trás, num salto
mortal, percebendo que uma lança atingia o chão com sua extremidade mais
afiada. Se não tivesse incríveis reflexos, estaria morto.
Por um momento, agressor e agredido se encararam. O monge
que segurava a lança fez um gesto de ataque e o outro sacou sua espada da
bainha afixada na cintura, pronto para o combate. Ambos os monges travaram uma
luta fantástica, mas logo o que segurava a lança estava derrotado, caído no
chão.
Dois outros monges entraram na sala por janelas opostas,
cada um segurando um nunchaku — dois pequenos bastões, interligados por uma
estreita corrente de ferro. Ao mesmo tempo em que se esquivava de um, atacava o
outro, defendendo-se dos golpes de nunchaku com a espada e projetando chutes na
altura dos peitos e rostos de seus adversários. Em questão de momentos, ambos
também estavam nocauteados.
Agora o guerreiro estava mais perto. Mais alguns passos e
o monge alcançaria o homem que se mantinha tranqüilamente sentado em sua
poltrona. Porém, antes de avançar um pouco mais, ouviu um grito:
— Pare!
Por detrás da falsa parede de papel, às costas da
poltrona, vários monges saíram com as mais variadas espécies de armas para
desafiar o jovem guerreiro, numa tentativa de barrar o seu caminho. O rapaz
girou a sua espada, colocando-a novamente na bainha, chutou para cima a lança
que se encontrava a seus pés — arma utilizada pelo seu primeiro adversário — e
colocou-se em posição de combate.
A luta que se seguiu foi algo até então jamais visto pelo
homem que se mantinha sentado. Com incrível agilidade e movimentos perfeitos, o
monge desarmava os outros, defendia-se de seus golpes e ainda os acertava, com
precisão, chutes e socos. Ele estava enfrentado vinte pessoas ao mesmo tempo,
numa fantástica exposição de habilidade marcial.
Quando a luta finalmente terminou, o monge se aproximou
do homem que se mantinha sentado e parou.
— Bela luta! — disse o homem. — Você conseguiu passar
pela última prova com sucesso. Agora é um mestre.
Vários monges que tinham sido seus oponentes se
levantaram, em tempo de ver o homem sentado erguer suas mãos e coroar o jovem
com uma medalha em forma de estrela, amarrada em seu pescoço por uma fina
corda.
Os monges que estavam conscientes aplaudiam com
intensidade. Aquele dia, no reino de Daran, não seria uma data qualquer; já
havia muito tempo em que nenhum monge alcançava o status de mestre. Sim, aquele
não era um dia comum. O reino havia ganhado mais um grande artista marcial.
Os outros monges foram se aproximando do rapaz para
cumprimentá-lo. Sorriam, orgulhosos por um feito tão difícil ter sido
conseguido em sua cidade.
— Parabéns, Renam, você é o primeiro homem a conquistar o
título de mestre nestes últimos vinte e cinco verões – comentou o mestre
Thiago.
— Fantástico, rapaz — disse outro jovem, também apertando
sua mão. — Não achei que era possível.
— Realmente, você é o melhor — falou David, sorrindo.
— Que tal umas palavras, garoto? — perguntou o mestre
Thiago, finalmente levantando-se de sua poltrona.
— Amigos, apenas consegui porque tive vocês como
companheiros e Thiago como nosso mestre.
O momento era de muita alegria. Algumas garotas trouxeram
comes e bebes para a sala e todos ali comemoraram o acontecimento naquele
templo. Agora a sala reunia não apenas os monges que participaram da prova, mas
todos os outros que ali treinavam. Conversavam, brincavam e sorriam,
entusiasmados pelo fato de que mais um monge havia alcançado tão importante
título.
— Caramba, eu
pensei que, quando Renam estava cercado pelos cinco monges restantes, ele não
teria saída, mas aí que me enganei: ele deu uma rasteira em Gilberto, ao mesmo
tempo em que, com a lança, batia violentamente contra a minha espada, jogando-a
longe. Em seguida, pulou e acertou dois de nós apenas com um chute.
— Ah, essa foi a parte que mais doeu – comentou
Genivaldo.
— É, meu queixo que o diga. Renam foi fantástico, não? –
concordou Armando.
— Puxa, e como! – exclamou Areneu.
Enquanto os participantes da prova narravam a luta para
os outros monges que não puderam assisti-la, ninguém reparou, de imediato, numa
garota que entrava de mansinho na sala para falar com o mestre Thiago. A garota
falava bem baixinho ao ouvido do homem, que apenas concordava com a cabeça.
Momentos depois, o mestre aproximou-se de Renam na companhia da menina, que
agora começava a atrair olhares curiosos.
— Renam, precisamos conversar.
O novo mestre olhou para o mestre Thiago e em seguida
para a menina. Assentiu com a cabeça e os três dirigiram-se para a outra sala.
Ninguém neste momento falava, apenas observavam os dois
mestres saindo calmamente com a garota.
Na sala adjacente, o mestre Thiago colocou Renam a par da
situação:
— Renam, isso poderá ser talvez a pior notícia dos
últimos cem verões.
Renam olhou espantado para seu instrutor e para a menina.
Que notícias horríveis teria ela trazido? O que poderia ter ocorrido de tão
grave, a ponto de estragar a comemoração de sua conquista?
— A Ametista mágica foi roubada.
As palavras do mestre Thiago atingiram o rapaz com força
total. A Ametista, em mãos erradas, poderia significar o completo caos; a ruína
do reino onde nascera, fora educado e se tornara mestre; o fim da vida de seus
amigos e de todas as outras pessoas que também amava — seus pais, irmãos e
demais parentes; poderia significar a morte de todas as pessoas que conhecia,
talvez algo pior ainda: haveria a possibilidade de serem escravizados ou
torturados pelo resto de suas vidas.
— Sei que a notícia foi impactante, mas nem tudo são
trevas. Não sabemos quem a roubou, mas sabemos que só existe um lugar onde essa
jóia poderá representar todos os problemas que mais tememos. Rebeca trouxe-me
essa notícia e também me pediu para que a acompanhássemos até o castelo. Nosso
rei tem um plano em mente.
Os mestres saíram do templo, acompanhando Rebeca em
direção ao castelo. Passaram pela praça do reino, um local que sempre trazia
lembranças de um passado distante na vida de Renam. Ali ele havia conhecido
Aline, sua primeira namorada, na época com quinze verões de idade. Lembrava-se
de uma vez em que havia subido numa árvore enorme, em grande velocidade, apenas
para impressioná-la.
— Desça daí, Renam isso é perigoso, é muito alto.
— Ora, vamos, eu sou um monge, posso fazer isso com as
duas mãos nas costas.
— Por favor, estou com medo, você pode se machucar. E se
cair daí?
— Cair? Então veja isso.
Renam deu um salto em um dos galhos, pulou para outro
girando o corpo em pleno ar e, numa demonstração de grande agilidade, foi
pulando de galho em galho até chegar ao chão. Aline estava com as duas mãos no
rosto.
— Você é maluco, só pode ser.
— Ora, Aline, o que é isso? É claro que não sou.
— Você é, sim. Quase me mata do coração. Eu nunca tinha
visto ninguém fazer isso. Você é pirado.
— Tudo bem, admito: sou louco... por você.
— Oh, Renam, não gosto de vê-lo fazer coisas perigosas.
— Tudo bem, prometo me controlar.
— Verdade?
— Verdade! Te amo tanto... – respondeu o monge,
beijando-a apaixonadamente.
O pensamento de Renam voltou à realidade no momento em
que lembrava daquele beijo. Aline foi não apenas a primeira, como também sua
única namorada. Estaria casado com ela hoje em dia, mas tinha que acontecer
aquela tragédia...
Enquanto caminhavam pela rua principal, logo após saírem
da praça, Renam avistou, ao longe, a fonte.
Quando passava perto da fonte com Aline, ela afirmava que ele deveria
comprar uma para sua futura casa. Mas em vez de quatro estátuas representando
um casal e dois filhos, ela queria um grande buquê de mármore. Renam ainda
lembrava do que lhe dizia em resposta a esse pedido: “mas é claro, madame;
flores para uma flor”. Aline sorria com o elogio.
Já havia se passado tanto tempo, mas para Renam parecia
tudo ter acontecido no dia anterior. A dor em seu coração, pela perda de seu
único amor, fazia com que jamais quisesse se aproximar de outra pessoa.
Dedicara seu tempo ao treinamento marcial no templo dos monges, com o objetivo
de um dia se tornar alguém a serviço da justiça. Sim, depois do que havia
acontecido em sua vida, há onze verões, Renam queria tornar o mundo um lugar
melhor. Com seu recém adquirido título de mestre e a notícia trazida pela
garotinha, Renam sentia, enquanto se dirigia ao castelo, que esse dia finalmente
havia chegado.
Entraram no castelo e se aproximaram do trono. O rei
Sebastian os esperava com Naêmia, sua guarda-costas, e Joshua, o bruxo do
reino.
— Bom trabalho, Rebeca, agora você pode ir.
A menina fez um gesto de reverência e retirou-se da sala.
Renam e o mestre Thiago cumprimentaram o rei como manda a etiqueta: curvaram
levemente o corpo, juntando as palmas das mãos e aproximando-as do rosto. O rei
permanecia sentado, enquanto todos os demais presentes ficavam em pé.
— Rebeca já os colocou a par da situação, suponho.
— Sim, majestade — respondeu o mestre Thiago.
— Bem, tenho pensado sobre o que aconteceu e, quanto mais
tento responder, mais perguntas aparecem. Como é possível que a pedra sagrada
tenha sumido? Quem a teria levado e como? E por quê? – questionou o rei.
— Majestade, até onde sei, a gema fica em uma sala de
segurança máxima, mas não sei que tipo de segurança é essa — comentou o velho
mestre.
— A sala é protegida por poderosos feitiços. Eu mesmo me
encarreguei disso – respondeu Joshua.
Todos agora olhavam para o bruxo, mas antes que
continuasse sua explicação, o rei o interrompeu:
— Creio que seria bom se mostrasse a eles a sala, Joshua.
— Claro, majestade. Por favor, me acompanhem.
Era a primeira vez que Renam penetrava tanto no castelo
do rei. Havia no reino outros castelos, mas o do rei era, de longe, o maior e
mais luxuoso de todos. Enquanto caminhava, Renam observava os caríssimos
tapetes estendidos por todos os lados, os grandes quadros que enfeitavam as
paredes, esculturas de cristal, de mármore e até de ouro espalhadas pelo
ambiente.
Somente chegaram à sala mencionada pelo rei e pelo bruxo
ao atravessarem dois corredores, cinco salas e descerem uma grande escadaria.
Chegaram ao porão, iluminado com tochas, e viram que era grande e quadrado, com
uma porta em cada parede. O bruxo os conduziu até a porta da outra extremidade
da sala e retomou a palavra:
— Apenas com esta chave é que se pode abrir a porta —
falou, puxando-a do bolso e mostrando a eles. — Essa chave deve ser girada três
vezes para a direita e três para a esquerda.
A porta se abriu, revelando uma grande sala circular.
Todos entraram, mas não puderam avançar muito. Sentiam como se algo invisível
barrasse o seu caminho.
— Vocês certamente devem estar sentindo o campo de força
que conjurei. Quem estiver em posse deste amuleto conseguirá atravessá-lo, caso
contrário será impossível.
O mago mostrou o objeto a todos e caminhou, demonstrando
a verdade em suas palavras, pois todos os outros não puderam segui-lo. Retrocedeu
alguns passos até estar perto de todos novamente e estendeu o objeto para que
ficasse ao alcance deles.
— Por favor, segurem a corrente do amuleto e conseguirão
atravessar o campo.
Todos assentiram e colocaram a mão sobre a fina corda,
sentindo que o campo de força não mais os afetava.
— A terceira e última defesa é essa.
Admirados, observavam um cilindro de luz vertical que
brilhava bem no meio da sala. Era uma luz verde, que se projetava do chão até o
teto. Em seu centro, estaria a ametista.
— Bem, era aqui que a pedra ficava. Renam, por favor,
tente atravessar a luz com o seu braço.
Renam fez como o bruxo lhe pediu. Ao tocar a parede
luminosa, sentiu sua mão esquentar um pouco. Era como se tocasse numa coluna
redonda, quente e escorregadia. A mão apenas se afastava para um lado e outro
do facho de luz. Renam constatou que não havia forma de penetrá-lo.
— Apenas com um anel mágico é possível transpassar este
facho de luz. Quem quer que tenha roubado a pedra, apoderou-se da chave e do
amuleto, que estavam com o rei, e do anel, que era guardado por mim em um lugar
que apenas Naêmia e o rei conheciam.
— A pedra era verificada regularmente? — indagou o jovem
guerreiro.
— Bem, verificávamos os nossos objetos de proteção. Se
eles estivessem nos lugares onde os deixávamos, então estaria tudo bem. Mas
ontem à noite estive na sala onde guardava o anel. Ao abrir o armário, reparei
no recipiente onde o deixava. O anel havia sumido. Na mesma hora, comentei com
o rei sobre o que havia acontecido e fomos verificar se os objetos que estavam
com ele ainda estavam seguros. Constatamos que sim, mas ao chegarmos aqui,
percebemos que quem quer que tenha roubado o anel, teve sucesso em conseguir a
gema. Mas a questão é: por que devolveu a chave e o amuleto aos seus lugares,
mas não o anel?
— Talvez a pessoa estivesse tentando nos confundir —
respondeu o jovem guerreiro.
— Como assim? — perguntou a guarda-costas. — O que você
quer dizer com isso?
— Não podemos ter certeza, mas talvez a pessoa quisesse
desviar a atenção. Se ficássemos muito preocupados com o anel, poderíamos não
focar toda a nossa concentração na ametista.
— É, o que você diz faz sentido — falou o velho mestre.
— Não creio que faça — disse a guarda-costas. — A
Ametista Mágica é infinitamente mais importante.
— Mas o anel tem muitos poderes — retrucou o bruxo. – É
um objeto mágico que também é muito valioso.
— A pedra é muito mais — disse a guarda-costas. — Sua
localização deve preceder quaisquer outras atividades de busca. Se não
encontrarmos a gema e ela cair em mãos erradas, não haverá anel que impeça a
chegada do caos.
— Sim, receio que você tenha razão — respondeu o bruxo. —
A pedra é muito mais importante
— Neste caso, uma vez resolvidas as nossas prioridades,
vamos colocar o plano em execução – falou o rei.
— E qual é o plano, majestade? — perguntou o mestre
Thiago.
— Como todos sabem, nosso grande arquiinimigo é Julian.
Embora seja o rei de Damaris, ele deseja dominar o mundo. Já expandiu seus
domínios para toda a costa oeste de Karana, dominando também Tamaran e Nakúbia,
que ficam ao norte. Quando tiver conquistado o lado leste, então sobrará apenas
o nosso reino e ele será o soberano de todo o continente. A partir daí, lançará
grandes frotas de navios, com o propósito de pilhar os reinos do outro lado do
oceano, e se tornará o Grande Imperador.
O rei fez uma pausa, dirigindo um olhar triste aos
outros.
— A única pessoa capaz de contratar um mercenário
engenhoso o bastante para roubar a pedra sem deixar vestígios é, sem dúvida, o
rei de Damaris. Ele deve ter arquitetado seu plano há um tempo considerável
para conseguir roubar a pedra bem debaixo de nossos narizes, sem que
percebêssemos.
Todos ficaram momentaneamente em silêncio. O jovem monge
não tinha mais Aline ao seu lado, mas ainda possuía uma família e amigos. Por
eles, faria todo o possível para recuperar a pedra, evitando, assim, as
possíveis desgraças que pudessem se abater sobre suas vidas.
— Sabemos, com razoável certeza, a quem a pedra poderia
tanto interessar – continuou o rei Sebastian. – Penso que a melhor saída é
enviar o jovem mestre, o bruxo e minha guarda-costas para o reino de Damaris.
Naêmia é uma ótima agente e creio que será de grande ajuda nesta missão.
— E quando partiremos? — indagou o jovem mestre.
— O mais rápido possível. Já preparei um cavalo para cada
um, mantimentos, armas e dinheiro. Damaris é um reino distante, mas estes são
nossos melhores cavalos e tenho certeza de que em poucos dias vocês chegarão.
Todos concordaram com um aceno de cabeça. Ao saírem do
castelo, os cavalos já estavam aguardando.
— Mestre...
— Eu me despedirei por você no templo, filho. E também na
casa de seus pais. Cuide-se.
Renam subiu no cavalo e, na companhia de Naêmia e Joshua,
partiu. Em poucos momentos, chegaram aos grandes portões da cidade e iniciaram
a jornada a um reino distante, governado por um terrível monarca de fama
mundial.
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