domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capítulo 10

O conflito emocional de Renam

            — Acorde, Renam, está na hora de irmos — falou Naêmia, sacudindo seu ombro esquerdo.
            — O quê? Ah... — balbuciou o monge, ainda sonolento.
            Levantou-se com dificuldade, sentindo seu corpo dolorido devido ao extremo esforço da noite anterior e o pouco tempo de sono. Trocou a roupa no reservado e, na companhia de Naêmia, dirigiu-se ao refeitório para o café da manhã. Até então havia se dirigido para o café da manhã com seu colega monge, o Kevin. Mas agora conhecia bem o caminho até a sala de treinamento e, como parte do disfarce, servia de companhia para a mulher. Após o café Renam ia treinar, mas Naêmia permanecia no refeitório para cumprir suas funções de cozinheira. Terminou o seu café e deu um beijo no rosto de Naêmia. Caminhou até a sala de treinos e aguardou, com o mestre Ryan, a chegada dos outros para iniciarem o treinamento. Logo todos os monges estavam ali e, em filas, executavam diversos movimentos, seguindo com atenção as ordens do instrutor. Em determinado momento, a porta da sala se abriu e por ela passava um furioso rei:
            — Mestre Ryan, tenho que conversar com seus discípulos. Agora!
            Com um aceno positivo de cabeça o mestre afastou-se, deixando o espaço para o rei se posicionar.
            — Muito bem, vou direto ao assunto. Alguém por aqui se acha muito, mas muito engraçadinho mesmo. Ou então temos um traidor em nosso meio — afirmava o rei, demonstrando muita raiva.
            O mestre e os monges nada diziam. Apenas olhavam, atônitos, para o rei, observando um comportamento até então jamais visto naquele homem que sempre demonstrava ser gentil. Renam, é claro, sabia exatamente do que o rei estava falando. Mas não poderia denunciar este conhecimento, por isso disfarçava o seu olhar, também demonstrando surpresa.
            — Não é a primeira vez que isso acontece, senhores. Nestas duas últimas luas cheias, tem ocorrido cerca de cinco vezes. Quero lhes dizer uma coisa: estou farto, simplesmente farto. Portanto, aqui vai o meu aviso: se um dos senhores for pego, providenciarei pessoalmente para que receba a pior das punições. Quero deixar bem claro que não tolerarei mais esta situação indigesta.
            Houve um momento de silêncio. O rei andava de um lado para outro, direcionando seu olhar raivoso para o grupo de monges, como se tivesse tentado encontrar algum culpado. Como, a exceção de Renam, ninguém sabia do que o rei estava falando, um monge levantou a mão e timidamente perguntou:
            — Com licença, majestade, mas... exatamente... o que está acontecendo?
            O rei olhou com intenso ódio na direção daquele rapaz:
            — O que está acontecendo? Você me perguntou o que está acontecendo? Eu diria que uma das piores coisas que poderia acontecer por aqui. Vocês são bem alimentados, bem tratados, dou-lhes um canto para dormir, também ganham roupas limpas e o que fazem é me trair?
            Continuou caminhando de um lado para outro, com uma expressão histérica no rosto. Foi então a vez de mestre Ryan perguntar:
            — Desculpe, majestade, mas ainda não sabemos exatamente o que aconteceu. Houve alguma morte ou roubo no castelo?
            O rei olhou furiosamente na direção do mestre Ryan:
            — Roubo? Morte? Não, mestre Ryan, nada disso. Em minha opinião, é coisa muito pior: alguém está se aventurando pelo castelo, passando pelos meus seguranças tão facilmente que nem parecem homens treinados. Por que desafia a segurança do castelo desse jeito? Qual será o objetivo dessa pessoa? Qualquer que seja a resposta, a verdade é uma só: estou sendo traído.
            Mais um momento de silêncio se fez. Novamente, foi mestre Ryan quem falou:
            — Majestade, se quiser, posso destacar um grupo de monges para reforçar a segurança do castelo. Temos, nesta sala, uma centena de guerreiros. Se a terça parte...
            — Não, muito obrigado, mestre Ryan. Tenho seguranças noturnos em número suficiente para formar um pequeno exército. Não creio que trinta homens a mais faria muita diferença. Não se considerarmos o tamanho deste castelo. Além disso, você sabe muito bem porque mantenho todos esses homens em treinamento.
            O rei fez mais um momento de silêncio, aparentando estar um pouco desorientado e continuou:
            — Bem, meus seguranças estarão em estado de alerta. Quero que saibam que eles têm permissão para matar, por esse motivo, nada de turismo noturno.
            Dito isso, o rei saiu, deixando um mestre e um grupo de monges boquiabertos. Momentos depois, o treinamento continuava, como se nada tivesse acontecido. O restante do dia também foi tranqüilo, sem qualquer tipo de alteração. Após a janta, Renam dirigiu-se, como de costume, para o seu quarto. Pouco tempo depois a porta se abria e Joshua entrava. Vendo que Renam estava sozinho, o olhar do bruxo tornou-se um pouco esquisito, fazendo o monge lembrar-se do dia no qual Joshua o encarava do mesmo jeito. Por um momento, ambos apenas ficaram se olhando. Em seguida, Joshua falou:
            — Um dia antes de nos mudar para o castelo, estive no armazém da estalagem. A atendente me reconheceu e perguntou por você, Renam.
            — O que falou a ela?
            Joshua hesitou. Havia certa tristeza em seu olhar.
            — Disse que você estava muito bem e também ocupado.
            O bruxo fez mais uma pausa, mas logo estava encarando Renam em seus olhos.
            — Ela parecia triste. Talvez estivesse gostando de você. Por que parou de visitá-la?
            — Percebi que a garota não precisava mais de um guarda-costas — respondeu o monge, de maneira esquiva.
            — Talvez nunca tenha precisado.
            — O que quer dizer?
            — Faz onze verões que você teve seu primeiro envolvimento com uma garota. Foi traumático, eu sei, mas será que já não é hora de deixar o passado… no passado?
            Renam não respondeu. A expressão facial indecifrável constituía uma máscara de aparência que ocultava seu verdadeiro estado. O monge não esperava que Joshua comentasse aquele assunto, principalmente naquele momento. Não quando deveriam ter total atenção na missão que estavam executando naquele imenso castelo. As palavras de seu companheiro de aventura faziam esquentar seu sangue e acelerar o coração.
            — Por que está falando neste assunto?
            — Porque você precisa ouvir. Porque precisa parar de viver no passado — respondeu Joshua, com tristeza em seus olhos. — Veja o meu caso, por exemplo: tenho cinqüenta verões de idade e trinta de boas histórias românticas para contar. Mas você está com vinte e oito verões e tudo o que tem é uma experiência horrível, que o atormenta desde a época em que aconteceu.
            O bruxo fez uma pequena pausa para recuperar o fôlego e prosseguiu:
            — A vida não é só tristeza, dor e perdas, Renam. Não permita que a tragédia do passado estrague seus dias pelo resto da vida. Lembre-se de que, com as rosas, também virão os espinhos. Mas não os deixe estragar o perfume das flores.
            — Eu tento, mas não consigo — respondeu o rapaz, após um momento de reflexão sobre o que ouvira.
            Joshua se entristeceu com uma resposta que aparentou sinceridade e amargura. Gostava muito de Renam. Quando Renam era ainda muito jovem, tinha em mente ensiná-lo no mundo da magia, mas o que o menino queria era se tornar um mestre das artes marciais. Percebendo o amor do garoto pelas técnicas de combate corporais, o bruxo lhe conseguiu uma vaga no templo dos monges. Um bom tempo de treinamento permitiu ao rapaz aventurar-se pelo mundo, a serviço do rei. Mas agora ele estava junto com Renam nesta missão. E queria aproveitar este momento para mostrar ao rapaz o erro que estava cometendo, ao permitir a influência negativa de experiências passadas em sua vida emocional. Renam era uma das pessoas mais solitárias que conhecia, o que lhe causava grandes tristezas. Se pudesse, mudaria esta situação.
            Por um longo momento, ambos ficaram em silêncio. Um evitava o olhar do outro. Cada qual, mergulhado em seus próprios pensamentos, refletia sobre o assunto em questão. Embora Renam não demonstrasse, Joshua sabia que ele estava sofrendo um conflito: deveria sentir algo pela moça do armazém, mas não queria admitir. Talvez o rapaz estivesse tão habituado à solidão que o tempo criara uma verdadeira barreira em sua vida emocional; um obstáculo que Joshua teria a maior satisfação em ajudar Renam a transpor.
            Antes que qualquer um dos dois pudesse falar algo, a porta do quarto se abriu e Naêmia entrava.
            — Olá, encontraram alguma coisa?
            Com um rápido movimento, Renam levantou-se e pegou do armário os objetos que havia trazido da sala que encontrou, ao utilizar a passagem secreta.
            — Aqui, Naêmia. Descobri este livro.
            A mulher espantou-se ao ler o título na capa:
            — Autobiografia do rei Julian? Mas isso é fantástico, imaginem quantos mistérios poderão ser esclarecidos…
            Pegou o livro e folheou algumas páginas, balançando a cabeça em tom aprovador.
            — Finalmente teremos respostas para várias perguntas. Já estou cansada de tantos mistérios. Isto aqui é fabuloso, Renam.
            Devolveu o livro ao monge, que o guardou no armário novamente.
            — Há mais uma coisa — disse o jovem guerreiro.
            — Conseguiu descobrir mais além deste livro fabuloso? — questionou Naêmia, incrédula. — Joshua e eu não descobrimos nada este tempo todo!
            — Foi tudo uma questão de sorte, Naêmia.
            A partir daquele momento, o monge começou a relatar tudo por que passara na noite anterior: a análise da sala por trás da terceira porta; o mecanismo que permitia ao chão se projetar para baixo, até chegar à porta em forma de arco; o extenso corredor para chegar até a sala que acreditava ser do bruxo; a estranha porta e a maneira como abria; o confronto com vários seguranças que o descobriram ali porque — ao menos era o que imaginava — deixara a porta da salinha aberta; a maneira como encontrou, no corredor, a passagem secreta; sua fuga pela passagem até chegar na sala misteriosa, onde encontrara o folheto e o livro; e, finalmente, o risco que correu ao optar pelo caminho da direita, quando o corredor se dividia em outros três.
            Dessa vez, Renam não poupou detalhes em sua narrativa. Chegou, inclusive, a descrever o que encontrara na sala que julgava ser do bruxo. Em determinado momento da história, perguntou a Joshua se ele sabia da existência da sala, mas tinha a certeza de que não por se tratar de algo secreto. Mas a possibilidade de seu companheiro conhecê-la era grande, pois passava o dia todo auxiliando o bruxo do reino. Quando finalmente terminou, tanto Joshua quanto Naêmia pareciam espantados.
            — Incrível, uma passagem secreta que dá acesso a outra! — exclamou Joshua.
            — É mesmo fascinante — concordou Naêmia. — Mas e este outro livro que você segura, Renam? Foi outro achado seu?
            O jovem guerreiro sorriu.
            — Como havia comentado, encontrei dois objetos de grande ajuda. Isto não é exatamente um livro. Vejam.
            Renam abriu totalmente o folheto, estendendo-o sobre a cama. Seus dois companheiros de aventura ficaram mais uma vez impressionados.
            — O mapa do castelo! — falaram Joshua e Naêmia ao mesmo tempo.
            O mapa era tão grande quanto a cama de Renam e Naêmia — que era uma cama de casal — e era desenhado dos dois lados da folha, devido às monstruosas dimensões do castelo.
            — O livro e o mapa facilitarão muito a nossa missão — comentou Joshua.
            — Mas tem mais coisa — disse o monge.
            Os outros olharam rapidamente para ele.
            — O rei esteve hoje, na sala de treinamento dos monges, extremamente alterado. Estava furioso porque seus guardas noturnos haviam me descoberto, ou melhor, descoberto que alguém estava andando pelo castelo e, mesmo cercando a pessoa, ela conseguiu fugir.
            — Interessante. Estive na cozinha o dia todo e o rei não foi lá comentar isso, mas era de se esperar, considerando que trabalho com um grupo de muitas pessoas.
            — O rei também não disse nada ao bruxo do reino, isso também é muito estranho — concordou Joshua.
            — Talvez o rei considere que apenas os monges possam representar algum tipo de ameaça — falou Renam.
            — Não, Renam, você está enganado. Todas as pessoas do castelo são treinadas. Na cozinha, por exemplo, temos um tempo diário reservado aos treinos. É claro que não passamos o tempo todo treinando, como os monges fazem. Mas nos exercitamos o suficiente para manter a forma.
            — Eu imagino que todos, sem exceção, devem saber lutar. Também tenho um momento de treinamento diário – confirmou Joshua.
            — Então todos os funcionários do castelo são guerreiros? — indagou Renam, incrédulo.
            — É o que estou tentando dizer – falou Naêmia. — Assim sendo, por que ele não agiu da mesma forma com todos os demais empregados do castelo? Por que apenas com os monges?
            — Naêmia tem razão — disse Joshua. — Há coisas que não sabemos, verdadeiros mistérios, e este é mais um deles. O rei chegou a falar mais, ou isso que você comentou foi tudo?
            — Não. Ele também disse que a hora em que colocasse suas mãos neste traidor, sua vingança seria terrível.
            — É, pelo jeito devia estar furioso mesmo — comentou o bruxo.
            — Mas isso não é tudo. Ele falou que, nestas duas últimas luas cheias, houve cinco perseguições noturnas.
            — O quê? — perguntaram Joshua e Naêmia em uníssono.
            — Eu estive pensando nisto o dia todo. Há outras pessoas em missões noturnas. Quem seriam? Quais os seus objetivos?
            — Mais um mistério para se somar a todos os outros — comentou Joshua.
            — Talvez não seja possível conhecermos todas as respostas. Mas algumas temos em mãos — falou Naêmia, apontando para livro e o mapa.
            — Nós três temos que ler o livro e estudar o mapa – afirmou o bruxo.
            — Concordo com Joshua, Renam.
            — Sim, é o que faremos — disse o jovem guerreiro. — As próximas noites devem ser dedicadas ao estudo destes dois achados.
            Renam e Naêmia ficaram com o livro, deixando o mapa aos cuidados de Joshua. Quando terminassem a leitura do livro, trocariam com o bruxo pelo mapa. Embora estivessem acostumados a ler e, portanto, liam com rapidez, sabiam que iriam demorar um pouco para ler toda a biografia do rei. Em outras circunstâncias, tanto Renam quanto Naêmia teriam conseguido chegar à página final em dois dias. Mas o fato é que agora não estariam lendo por satisfação, como era de costume, mas para descobrir coisas que ninguém jamais ousaria lhes contar. Dessa forma, precisariam se concentrar ao máximo, assimilando o maior número de informações possível.
            Joshua encaminhou-se para o seu quarto, em posse do mapa. Enquanto isso, o monge e a mulher deitaram-se na cama, um ao lado do outro. Para agilizar o estudo que os três agora tinham em mãos, Renam e Naêmia decidiram que leriam o livro juntos.
            O monge abriu o livro e iniciaram a leitura. No primeiro capítulo, o rei comentava sobre o casamento de seus pais. Seu pai era o príncipe de Valença, enquanto que a mãe era a princesa de Lituânia. Esses dois grandes reinos eram vizinhos e tinham ótimas relações comerciais. O casamento dos dois unificou aqueles reinos, dando origem a Damaris. O fruto daquele casamento, além da união completa de duas cidades, foi os filhos que nasceram: três meninos.
            Naquela página, o rei não nomeara seus dois irmãos. Apenas comentava que ele era o mais velho e, portanto, o primeiro a herdar o trono. Continuou a narrativa contando sobre os passeios nos variados locais da cidade, em companhia de seus pais; as escapadas do castelo para se aventurar sozinho nas ruas do reino, sem que ninguém percebesse; as aventuras que sua mente infantil era capaz de produzir, permitindo a ele ocupar grande parte do dia nesta atividade; e, finalmente, a sua paixão pelos livros.
            Renam e Naêmia terminaram a leitura daquele capítulo, que tinha quarenta e duas páginas, e foram dormir. A mulher dormiu imediatamente, mas o guerreiro ainda não estava com sono; pensava sobre o que acabara de ler. A descrição de infância do rei era fascinante. Desde pequeno, mostrava-se ganancioso, rebelde, aventureiro e com grande imaginação. Deveria ter adquirido imensa bagagem cultural, pois adorava a leitura. Ao se tornar adulto, conquistou o título de rei de Damaris, um reino de péssima fama. Mas por quê? As pessoas comentavam que o reino, a exemplo do rei, era extremamente violento. Entretanto, via um reino calmo, muito mais tranqüilo que o seu. Quaisquer atividades consideradas ilegais eram imediatamente punidas, evitando-se assim novas iniciativas criminosas.
            Após a leitura do primeiro capítulo da biografia, havia descoberto o porquê de a cidade ser tão grande — dois imensos territórios que se unem teriam que dar como resultado um reino gigantesco. Outro pensamento que se passou pela cabeça de Renam foi que o rei, desde pequeno, mostrava-se engenhoso em suas brincadeiras. Não era de se admirar que ainda se mantivesse no poder, refletia o monge.

            O jovem guerreiro convenceu-se de que, pouco a pouco, a leitura do livro traria informações cada vez mais úteis à missão. Teve vontade de continuar a leitura sozinho, mas nunca agira de modo diferente do combinado. Ele e Naêmia retornariam a leitura nos próximos dias e comentariam exaustivamente a história, analisando os detalhes de todos os ângulos possíveis. Em seguida, estudariam o mapa e ficariam completamente absorvidos nesta nova tarefa, o que por si só era ótimo, pois, furioso do jeito que o rei estava, era certo que nos próximos dias, isto é, noites, a segurança do castelo seria reforçada, dificultando novas caminhadas noturnas.

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