domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capítulo 11

O capítulo dois

            O dia foi monótono, como sempre: café da manhã, treinos, almoço, leitura na biblioteca, café da tarde e retorno aos treinos e janta. Após a última refeição, Renam encaminhou-se para o quarto, como de costume. Entrou no reservado, banhou-se, colocou roupas limpas e esperou Naêmia. Logo sua companheira chegaria e os dois continuariam a leitura da biografia do rei. O monge abriu sua mala, removeu o fundo falso e retirou o livro. Antes de dormir o escondia ali, pois os encarregados de limpeza entravam no quarto, em momentos que ele não se encontrava presente. Todo o cuidado era pouco.
            Enquanto esperava Naêmia, refletia sobre a conversa que tivera com Joshua na noite anterior. Olhando a página quarenta e três do livro, observou que o capítulo dois da biografia tinha como título “Turbulenta adolescência”.
            Na época em que conheceu Aline, ainda era adolescente. Fizera uma amizade tão bonita com aquela garota, que dificilmente não iria evoluir para um relacionamento mais íntimo. Tivera algumas luas cheias de felicidade. Vivia sempre sorrindo, sentindo-se completo. Mas então a tragédia que se sucedera em sua vida abrira feridas incapazes de cicatrizarem. Mesmo hoje, onze verões após tão horrível perda, seu coração sangrava. Sentia-se como se fosse rasgado como se faz com uma folha de papel.
            Embora estivesse com o livro aberto na página onde iniciava o segundo capítulo e olhasse diretamente para ele, Renam não leu uma palavra além do título; apenas deixava-se levar por tais pensamentos, verdadeiros ecos do passado que se projetavam no presente tornando sua vida sombria, desgostosa, sem esperanças. O monge olhava para o livro, imaginando como teria sido a adolescência do rei. Haveria algum acontecimento infeliz a ser relatado? Teria o rei mentido ou omitido? Haveria aventuras a contar, desejos a serem realizados, sonhos a viver?
            Renam nunca teve o interesse de escrever sua história e biografias constituíam grande parte de toda a literatura do planeta. O monge, corajoso como era, não temia nem mesmo a morte. Mas havia coisas que o amedrontavam, entre elas, transcrever para o papel os horrores do passado. Imaginava que, se fizesse isso, sua dor poderia aumentar. Por esse motivo, nunca quis escrever sua própria história. Quando questionado por um colega monge sobre o porquê de não investir em sua biografia, a resposta de Renam era que não possuía o dom da escrita; gostava de ler, mas não de escrever.
            Subitamente a porta do quarto se abriu. Naêmia entrou, cumprimentou o rapaz e dirigiu-se ao reservado. Ao retornar ao quarto, sentou-se na cama, ao lado de Renam, apoiando as costas na cabeceira.
            — Estava apenas te esperando, Naêmia.
            — Estou tão curiosa, Renam. Este livro é muito bem escrito.
            — Concordo. Também estou gostando muito da história. Ontem tivemos pouco tempo para ler. Hoje, porém, poderemos avançar mais profundamente no texto.
            Sem mais palavras, a mulher e o jovem guerreiro iniciaram a leitura. Na noite anterior, haviam lido quarenta e duas páginas, quase a décima parte do livro. Isso porque, na companhia de Joshua, perderam tempo decidindo o que fazer com o material encontrado pelo monge e finalmente dividindo as tarefas.
            No capítulo II, o rei começava a relatar sua vida aos treze verões:
“Naquela época, o rei e a rainha do reino de Lituânia, meus avós maternos, faleceram e meus pais passaram a governar em conjunto com os avós paternos. Começaram a investir nos altos muros que circundariam a grande cidade, construção que demoraria cerca de vinte verões, mesmo empregando a quantidade absurda de trezentos homens para realizar tal feito. As cinco olarias trabalhavam a todo vapor, doando boa parte de sua produção para os reis. O mesmo ocorria com as serralherias. Os ferreiros produziam enormes quantidades de ferro, para as imensas vigas e colunas que sustentariam o muro. E os produtores de concreto forneciam substanciais quantidades de massa.
            O objetivo daqueles reis e rainhas era eliminar, a longo prazo, os crimes que ocorriam com tanta freqüência na cidade. “Com a proteção dos muros” diziam os reis “será controlada, em nosso reino, a entrada de forasteiros”. Após o casamento do príncipe de Valença com a princesa de Lituânia, a notícia de unificação das cidades espalhou-se por todo o planeta com velocidade surpreendente. Viajantes vieram, de todas as partes do mundo, tentar a sorte na nova e imensa cidade que surgia. Mas assim como vieram trabalhadores, casais e até famílias inteiras, também vieram os mendigos, os bandidos e as quadrilhas. A unificação aumentou exponencialmente a miséria e o índice de criminalidade. A cidade se tornara tão violenta, que conquistou a fama de pior reino do mundo. Na desesperada tentativa de impedir a entrada de mais pessoas e, consequentemente, o aumento de problemas, surgiu a idéia das enormes muralhas.
            No começo da obra, os cidadãos, sem exceção, acharam ótima a idéia dos reis e se propuseram a ajudar da melhor forma possível. Contudo, na medida em que o tempo passava, a construção foi gerando custos terríveis e a população começava a dar os primeiros sinais de cansaço. Das cinco olarias existentes, duas quebraram totalmente, lançando as famílias que delas dependiam na mais completa miséria. O mesmo aconteceu com quatro serralherias e três produtores de concreto. Outros quatro armazéns, que ofereciam gratuitamente almoço, café da manhã e café da tarde, tiveram o mesmo destino. A quebra dessas empresas deixou um saldo de seiscentas pessoas na miséria, agravando os problemas sociais da cidade.
            Mas a construção continuava. Não tão rapidamente quanto antes ou quanto o rei gostaria, mas a cada lua cheia podia-se notar uma diferença na altura do muro. Mas o mais impressionante não era o fato de o muro circundar o imenso reino, nem atingir a altura de doze homens, assemelhando-se, de longe, a uma grande torre sem teto; o mais impressionante — e misterioso — era o fato de que, próximo ao limite da cidade, erguia-se outro muro, ligando as duas extremidades laterais do reino, formando um espaço de cinco mil passos de comprimento, por sessenta mil passos de largura. Ali era uma região desértica, não havia casas nem estabelecimentos comerciais. Tudo o que existia ali era um lago, um grande lago.
            Passado os vinte verões, a obra estava pronta. Vista de cima, parecia dois retângulos, sendo que no maior estava a cidade Damaris. Eu estava agora com trinta e três verões de idade.”
Renam e Naêmia haviam chegado ao final do capítulo. O monge fechou o livro.
            — Já estamos na página 152, Naêmia. Avançamos muito, considerando o pouco tempo que dispomos.
            — Sim. Joshua também concluirá logo os seus estudos com o mapa. Mas será o suficiente, Renam? Já faz vários dias que a ametista foi roubada. Estamos nos empenhando ao máximo, mas e se não conseguirmos?
            — Vamos conseguir. A gema foi roubada de nosso reino há tempo suficiente para ser utilizada e até hoje ainda isto não aconteceu. Se não tivéssemos mais tempo, já estaríamos sabendo.
            — Sim, você tem razão — falou Naêmia, após refletir um pouco. — Ainda não perdemos a guerra.
            — E nem vamos perder. Lembre-se, Naêmia, o mundo inteiro depende de nós.
            — Será mesmo Renam? Você mesmo relatou, ontem, que havia outros espiões no castelo. E se o objetivo deles for o mesmo nosso?
            — Quanto a isso, nada sabemos e talvez nunca venhamos a saber. Devemos apenas nos concentrar em nossa missão.
            — Sim, você está certo. Agora vamos tratar de descansar; precisamos recuperar as forças. Boa noite, Renam.
            — Boa noite.

            Naêmia deitou-se e dormiu imediatamente, tão cansada se encontrava. Renam, por sua vez, continuou sentado, refletindo no capítulo que acabara de ler. Imaginava o motivo pelo qual os reis queriam isolar a cidade, construindo muralhas tão altas. De acordo com o rei Julian, o objetivo era tornar a cidade mais segura, impedindo que outras pessoas de caráter duvidoso entrassem no reino. A justificativa até possuía lógica, mas e o muro extra? Que objetivo teria, para os reis, construir outro muro, deixando um enorme espaço isolado da cidade? Tinha que haver uma explicação lógica para isso e Renam sabia que encontraria nas páginas ou capítulos seguintes. Ficou tentado a dar prosseguimento à leitura, pois estava sem sono. Mas venceu a tentação porque considerava um ato sagrado cumprir o que tivesse combinado com outras pessoas. Dessa maneira, guardou o livro no fundo falso de sua mala, deitou-se e esperou o sono apoderar-se dele.

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