O
capítulo dois
O dia foi monótono, como
sempre: café da manhã, treinos, almoço, leitura na biblioteca, café da tarde e
retorno aos treinos e janta. Após a última refeição, Renam encaminhou-se para o
quarto, como de costume. Entrou no reservado, banhou-se, colocou roupas limpas
e esperou Naêmia. Logo sua companheira chegaria e os dois continuariam a
leitura da biografia do rei. O monge abriu sua mala, removeu o fundo falso e
retirou o livro. Antes de dormir o escondia ali, pois os encarregados de
limpeza entravam no quarto, em momentos que ele não se encontrava presente.
Todo o cuidado era pouco.
Enquanto esperava Naêmia, refletia sobre a conversa que
tivera com Joshua na noite anterior. Olhando a página quarenta e três do livro,
observou que o capítulo dois da biografia tinha como título “Turbulenta
adolescência”.
Na época em que conheceu Aline,
ainda era adolescente. Fizera uma amizade tão bonita com aquela garota, que
dificilmente não iria evoluir para um relacionamento mais íntimo. Tivera
algumas luas cheias de felicidade. Vivia sempre sorrindo, sentindo-se completo.
Mas então a tragédia que se sucedera em sua vida abrira feridas incapazes de
cicatrizarem. Mesmo hoje, onze verões após tão horrível perda, seu coração
sangrava. Sentia-se como se fosse rasgado como se faz com uma folha de papel.
Embora estivesse com o livro aberto na página onde
iniciava o segundo capítulo e olhasse diretamente para ele, Renam não leu uma
palavra além do título; apenas deixava-se levar por tais pensamentos,
verdadeiros ecos do passado que se projetavam no presente tornando sua vida
sombria, desgostosa, sem esperanças. O monge olhava para o livro, imaginando
como teria sido a adolescência do rei. Haveria algum acontecimento infeliz a
ser relatado? Teria o rei mentido ou omitido? Haveria aventuras a contar,
desejos a serem realizados, sonhos a viver?
Renam nunca teve o interesse de escrever sua história e
biografias constituíam grande parte de toda a literatura do planeta. O monge,
corajoso como era, não temia nem mesmo a morte. Mas havia coisas que o
amedrontavam, entre elas, transcrever para o papel os horrores do passado.
Imaginava que, se fizesse isso, sua dor poderia aumentar. Por esse motivo,
nunca quis escrever sua própria história. Quando questionado por um colega
monge sobre o porquê de não investir em sua biografia, a resposta de Renam era
que não possuía o dom da escrita; gostava de ler, mas não de escrever.
Subitamente a porta do quarto se abriu. Naêmia entrou,
cumprimentou o rapaz e dirigiu-se ao reservado. Ao retornar ao quarto,
sentou-se na cama, ao lado de Renam, apoiando as costas na cabeceira.
— Estava apenas te esperando, Naêmia.
— Estou tão curiosa, Renam. Este livro é muito bem
escrito.
— Concordo. Também estou gostando muito da história.
Ontem tivemos pouco tempo para ler. Hoje, porém, poderemos avançar mais
profundamente no texto.
Sem mais palavras, a mulher e o jovem guerreiro iniciaram
a leitura. Na noite anterior, haviam lido quarenta e duas páginas, quase a
décima parte do livro. Isso porque, na companhia de Joshua, perderam tempo
decidindo o que fazer com o material encontrado pelo monge e finalmente
dividindo as tarefas.
No capítulo II, o rei começava a relatar
sua vida aos treze verões:
“Naquela
época, o rei e a rainha do reino de Lituânia, meus avós maternos, faleceram e
meus pais passaram a governar em conjunto com os avós paternos. Começaram a
investir nos altos muros que circundariam a grande cidade, construção que
demoraria cerca de vinte verões, mesmo empregando a quantidade absurda de
trezentos homens para realizar tal feito. As cinco olarias trabalhavam a todo
vapor, doando boa parte de sua produção para os reis. O mesmo ocorria com as
serralherias. Os ferreiros produziam enormes quantidades de ferro, para as
imensas vigas e colunas que sustentariam o muro. E os produtores de concreto
forneciam substanciais quantidades de massa.
O objetivo daqueles reis e rainhas era eliminar, a longo
prazo, os crimes que ocorriam com tanta freqüência na cidade. “Com a proteção
dos muros” diziam os reis “será controlada, em nosso reino, a entrada de
forasteiros”. Após o casamento do príncipe de Valença com a princesa de
Lituânia, a notícia de unificação das cidades espalhou-se por todo o planeta
com velocidade surpreendente. Viajantes vieram, de todas as partes do mundo,
tentar a sorte na nova e imensa cidade que surgia. Mas assim como vieram
trabalhadores, casais e até famílias inteiras, também vieram os mendigos, os
bandidos e as quadrilhas. A unificação aumentou exponencialmente a miséria e o
índice de criminalidade. A cidade se tornara tão violenta, que conquistou a
fama de pior reino do mundo. Na desesperada tentativa de impedir a entrada de
mais pessoas e, consequentemente, o aumento de problemas, surgiu a idéia das
enormes muralhas.
No começo da obra, os cidadãos, sem exceção, acharam
ótima a idéia dos reis e se propuseram a ajudar da melhor forma possível.
Contudo, na medida em que o tempo passava, a construção foi gerando custos
terríveis e a população começava a dar os primeiros sinais de cansaço. Das
cinco olarias existentes, duas quebraram totalmente, lançando as famílias que
delas dependiam na mais completa miséria. O mesmo aconteceu com quatro
serralherias e três produtores de concreto. Outros quatro armazéns, que
ofereciam gratuitamente almoço, café da manhã e café da tarde, tiveram o mesmo
destino. A quebra dessas empresas deixou um saldo de seiscentas pessoas na
miséria, agravando os problemas sociais da cidade.
Mas a construção continuava. Não tão rapidamente quanto
antes ou quanto o rei gostaria, mas a cada lua cheia podia-se notar uma
diferença na altura do muro. Mas o mais impressionante não era o fato de o muro
circundar o imenso reino, nem atingir a altura de doze homens, assemelhando-se,
de longe, a uma grande torre sem teto; o mais impressionante — e misterioso —
era o fato de que, próximo ao limite da cidade, erguia-se outro muro, ligando
as duas extremidades laterais do reino, formando um espaço de cinco mil passos
de comprimento, por sessenta mil passos de largura. Ali era uma região
desértica, não havia casas nem estabelecimentos comerciais. Tudo o que existia
ali era um lago, um grande lago.
Passado os vinte verões, a obra estava pronta. Vista de
cima, parecia dois retângulos, sendo que no maior estava a cidade Damaris. Eu
estava agora com trinta e três verões de idade.”
Renam e Naêmia
haviam chegado ao final do capítulo. O monge fechou o livro.
— Já estamos na página 152, Naêmia. Avançamos muito,
considerando o pouco tempo que dispomos.
— Sim. Joshua também concluirá logo os seus estudos com o
mapa. Mas será o suficiente, Renam? Já faz vários dias que a ametista foi
roubada. Estamos nos empenhando ao máximo, mas e se não conseguirmos?
— Vamos conseguir. A gema foi roubada de nosso reino há
tempo suficiente para ser utilizada e até hoje ainda isto não aconteceu. Se não
tivéssemos mais tempo, já estaríamos sabendo.
— Sim, você tem razão — falou Naêmia, após refletir um
pouco. — Ainda não perdemos a guerra.
— E nem vamos perder. Lembre-se, Naêmia, o mundo inteiro
depende de nós.
— Será mesmo Renam? Você mesmo relatou, ontem, que havia
outros espiões no castelo. E se o objetivo deles for o mesmo nosso?
— Quanto a isso, nada sabemos e talvez nunca venhamos a
saber. Devemos apenas nos concentrar em nossa missão.
— Sim, você está certo. Agora vamos tratar de descansar;
precisamos recuperar as forças. Boa noite, Renam.
— Boa noite.
Naêmia
deitou-se e dormiu imediatamente, tão cansada se encontrava. Renam, por sua
vez, continuou sentado, refletindo no capítulo que acabara de ler. Imaginava o
motivo pelo qual os reis queriam isolar a cidade, construindo muralhas tão
altas. De acordo com o rei Julian, o objetivo era tornar a cidade mais segura,
impedindo que outras pessoas de caráter duvidoso entrassem no reino. A
justificativa até possuía lógica, mas e o muro extra? Que objetivo teria, para
os reis, construir outro muro, deixando um enorme espaço isolado da cidade?
Tinha que haver uma explicação lógica para isso e Renam sabia que encontraria
nas páginas ou capítulos seguintes. Ficou tentado a dar prosseguimento à
leitura, pois estava sem sono. Mas venceu a tentação porque considerava um ato
sagrado cumprir o que tivesse combinado com outras pessoas. Dessa maneira,
guardou o livro no fundo falso de sua mala, deitou-se e esperou o sono
apoderar-se dele.
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