Nove dias havia se passado, desde que Júlia deixara Tassiane aos
cuidados de Luciana. A mulher, seu marido e Maria Alice conversavam, por
telefone, com Tassiane todos os dias. A menina demonstrava estar muito bem. Aos
sábados, a família a visitava.
Era
quarta-feira, 9h. Júlia estava sozinha em casa. Maria Alice teria aula até às
11h e o marido só voltaria ao entardecer.
A mulher
encontrava-se na cozinha junto à mesa, fazendo um bolo. De repente, ouviu um
barulho: olhando para o canto direito da cozinha, viu uma das portas do armário
totalmente aberta. Estranho, pensou. Júlia foi até o armário, inclinou um pouco
o corpo e fechou a porta. Ao retornar à mesa, ouviu o mesmo barulho. Virou-se e
viu que a mesma porta estava aberta. Deve estar com defeito, deduziu.
Júlia
aproximou-se novamente do armário, abaixou-se e examinou a porta. As dobradiças
estavam boas e nenhum dos encaixes para os pinos havia se soltado. Fechou a
porta novamente e ficou olhando, numa tentativa de descobrir como se abria
sozinha. Desta vez, permaneceu fechada. Decidida a não perder mais tempo,
levantou-se e começou a caminhar em direção à mesa outra vez. Após alguns
passos, parou. Olhou para o lado e ficou arrepiada. Deixara a porta da cozinha
aberta, mas ela estava fechada.
Aproximou-se
da porta e colocou a mão na maçaneta. A porta parecia trancada. Júlia forçou a
porta repetidas vezes, até que se abriu em um sacalão. Júlia calçou a porta e
ficou olhando para ela, tentando entender como isso aconteceu. Não havia mais
ninguém na casa, a porta da frente estava bem trancada. Virou-se, certa de que
desta vez terminaria o bolo. Júlia estacou. Todas as portas e gavetas dos
armários e pia estavam abertas.
11h05min. Maria
Alice chegava a sua casa.
- O que está
fazendo na calçada, mãe?
- Estava
esperando você, querida. Vamos – respondeu Júlia, pegando na mãozinha da filha
e começando a caminhar em direção ao restaurante mais próximo – a mulher
votaria a sua casa somente à tardinha, quando o marido também se encontrasse
lá.
Sexta-feira,
23 de setembro, 8h15min. Júlia dirigiu-se ao quarto, com o objetivo de
localizar um pequeno caderno, onde anotava seus lembretes: serviços, compras e
etc. Ao sair do quarto, começou a andar pelo corredor em direção à escada. Ao
passar por um corredor perpendicular, teve a estranha sensação de ver, de
relance, um vulto ao final do corredor, onde ficava o banheiro.
Júlia parou e
voltou alguns passos. Olhou para o final daquele corredor e surpreendeu-se.
- Alice, por
que você não foi à escola?
A menina nada
respondeu. Continuava com o corpo de frente para o banheiro, mas o rosto virado
em sua direção. Júlia começou a caminhar ao encontro da filha e a viu entrar
rapidamente no banheiro. Ao chegar ao banheiro, Júlia ficou arrepiada. Não
havia ninguém ali.
A mulher
afastou-se o mais rápido que pôde. Foi para a sala, local onde mais se sentia
segura – isso porque dava acesso à rua.
Júlia pegou o
telefone.
- Paróquia
São Luiz, bom-dia.
- Bom-dia, eu
queria falar com o padre.
- Quem
gostaria?
- Meu nome é
Júlia.
- Um momento,
por favor.
- Obrigada.
- Olá, Júlia.
- Padre, que
bom ouvir o senhor.
- Também é
bom ouvir sua voz, Júlia. A Tassiane está bem?
- Muito bem,
padre. Ela está segura na casa da minha amiga.
- Quando
pretende buscá-la?
- Não sei
padre, no momento aqui não é um bom lugar para ela ficar. Deixarei-a na casa de
Luciana, até que o senhor consiga solucionar o problema desta casa. Agora, sou
eu quem está vendo coisas, padre. O senhor vai conseguir nos ajudar, não vai?
Padre? O senhor ainda está aí?
- Alô? –
falou mais uma vez a voz da recepcionista.
- Alô, aqui é
a Júlia. Eu pedi pra falar com o padre e perdi a ligação.
- Os nossos
telefones estão com problemas. Já transfiro novamente.
- Obrigada.
- Bom-dia, em
que posso ajudá-la?
- Oi, eu
queria falar com o padre Vicente.
- Sinto
muito, mas isso não é possível.
- Como assim?
- O padre
Vicente não esta mais disponível, senhora.
- Quem é o
senhor?
- Padre
Gregório.
- Padre
Gregório, eu estava falando agora mesmo com o padre Vicente. Como é que ele vai
estar disponível em um minuto e não vai estar no outro?
- Você está
enganada, senhora. Não pode ter falado com o padre Vicente.
- E por que
não?
- Porque ele
foi transferido semana passada para São Paulo e eu estou em seu lugar.
- O quê? Mas
como...
- Ordens
superiores, senhora. Não podemos recusar ou colocar impedimentos. Mas não se
preocupe, estou aqui para ajudá-la. Por que não me conta o seu problema?
Senhora? Ainda esta na linha?
Júlia
desligou o telefone, frustrada. O padre Vicente, que estava tentando ajudá-la
de verdade, foi tirado de seu caminho. Naquele momento, Júlia entendeu que
qualquer pessoa que tentasse enfrentar a maldição da casa, seria afastada dela.
E então, o que faria? Como lutar sozinha contra o mal que ali habitava?
Outra
sensação de vulto. Era como se alguém caminhasse na cozinha. Júlia levantou-se
e foi para a rua rapidamente. Afastou-se o máximo que pôde da casa. Próximo ao
portão, olhou para a casa mais uma vez. Viu claramente a menina parecida com a Maria
Alice olhar em sua direção, virar as costas e sair da janela.
11h50min.
- Estava me esperando na calçada novamente,
mãe?
- Sim,
querida, hoje vamos a um restaurante. Que tal o Italianíssimo?
- Legal, vou
só largar a mochila.
- Não
precisa, deixa que eu levo para você.
Júlia levou Maria
Alice ao restaurante, mas pensava no que fazer depois. Seu marido estaria de
volta somente às 17h e ela não estava disposta a chegar em casa antes disso.
- Um amigo
meu da escola falou-me que foi ao shopping assistir ao filme “O Gato de Botas”
– disse Maria Alice, à mesa.
- Ei, é uma
boa ideia, que tal irmos hoje?
- Legal, mãe.
Que horas a gente vai?
- Após o
almoço.
- Beleza.
Júlia
sentia-se aliviada. Do restaurante iria direto ao shopping e passaria a tarde
lá.
Somente agora
a mulher compreendia o horror da filha mais velha, a única, até então, a ver
aparições. Hoje cedo, achara que estivesse falando com o padre Vicente ao
telefone. Era a voz do padre, mas não era ele. O padre se encontrava em São
Paulo há dias. Mas o que a voz lhe dissera? Ah, sim, perguntara sobre Tassiane,
quando a menina voltaria a casa.
Talvez fosse
esse o motivo de estar vendo coisas, imaginou Júlia. A coisa maligna a estava
intimando para que buscasse Tassiane. Antes, era só a filha mais velha que via
as coisas. Agora, ela própria estava sendo aterrorizada por essas assombrações.
Antes e depois da ligação que fizera, vira a criança parecida com a Maria Alice.
Dois dias atrás, aquele episódio de portas e gavetas se abrindo e se fechando
na cozinha.
Uma coisa era
certa: ela não traria Tassiane de volta àquela casa maldita. Quando o marido
chegasse, teria uma conversa com ele. Mas como convencê-lo a sair? Rodrigues
estava enfeitiçado pela casa, não a abandonaria apenas por causa de umas ideias
bobas inventadas pela filha mais velha e alimentadas pela mãe. Tinha que ter
algo em mãos, uma prova, mas de que tipo?
17h10min.
Júlia e Maria Alice entravam no pátio. Rodrigues já devia estar em casa,
pensava a mulher.
- Oi, amor,
foram passear? – perguntou Rodrigues à esposa, ao vê-la entrar na casa.
- Pois é,
querido, a Alice se divertiu. Assistimos ao filme “O Gato de Botas”.
Rodrigues
sorriu. Gostava de ver a sua família feliz. Esforçara-se muito para dar à
mulher e às filhas a casa confortável onde hoje viviam.
- Querido, a
Tassi precisa de ajuda na escola. Como ela está um pouco longe, eu irei à
biblioteca pública por ela.
- Agora?
- Sim,
preciso ir agora. Mas acho que não vou demorar.
Júlia pegou o
carro e saiu. Sabia que não tinha muito tempo, pois a biblioteca fechava pela
tardinha. Enquanto estava no shopping, pensava em como convencer o marido a
deixar a maldita casa. Rodrigues sempre achava uma explicação científica para
tudo. Então era necessário apresentar provas consistentes do perigo que a casa
representava aos seus ocupantes.
Quando ela e Maria
Alice estavam saindo do shopping, passaram por uma professora que conduzia um
grupo de criancinhas em fila. A professora dizia:
- Agora
estamos indo embora. Alguém aqui lembra aonde a gente irá amanhã?
Uma
criancinha respondeu:
- Amanhã
iremos à biblioteca.
- Isso mesmo,
Mateus.
A biblioteca
pública! Como não pensara nisso antes? Lá encontraria o que precisava, pensou.
Júlia
estacionou e dirigiu-se rapidamente à biblioteca.
- Bom-dia.
- Bom-dia,
senhora, em que posso ajudá-la?
- Queria
informações sobre uma casa. Reportagens, coisas do tipo.
- Que tipo de
casa, senhora? Residencial, cultural ou comercial?
-
Residencial.
- Bem, neste
caso conseguirá essas informações no arquivo histórico.
- Onde fica?
- Nesta mesma
rua, quase no fim, à esquerda. É no mesmo prédio que o museu histórico.
Júlia
agradeceu e saiu. Momentos depois, encontrava-se no Arquivo histórico. A
atendente localizara várias reportagens sobre a casa da rua Teófilo Gama, 871.
As
reportagens contavam coisas terríveis: rituais satânicos no porão da casa,
torturas, mortes e assassinatos. Um dos artigos chamou a atenção de Júlia:
dizia que algumas vezes os bombeiros foram chamados, mas tinham que voltar ao
chegar a casa, pois não havia fogo algum. O detalhe é que várias pessoas
testemunharam, em diversas ocasiões, a casa parecendo pegar fogo e pessoas lá
dentro gritando, como se estivessem sendo torturadas no meio das chamas. Júlia
também localizou várias reportagens que traziam fragmentos da biografia de
Rosa.
- Com
licença, eu poderia conseguir cópias desse material? – falou Júlia à atendente.
- Claro,
senhora. São R$ 0,20 a cópia.
- Faça para
mim, por favor.
- Pois não.
- Júlia
gastou cinco reais e saiu do arquivo histórico com todo aquele material xerocado.
Agora tinha em mãos a prova de que precisava.
Ao chegar a
sua casa, viu seu marido, sentado no sofá, com uma xícara de café.
- Oi,
querido, precisamos conversar – falou Júlia, séria.
- Qual o nome
dele?
- O quê?
- Qual o nome
dele?
- Dele quem?
– perguntou a mulher, confusa.
- Você sabe
quem. Você mentiu pra mim. Quando saiu, liguei para a Tassi. Não há trabalho
nenhum na biblioteca.
- Tudo bem,
eu menti. Mas não estou lhe traindo.
- Como posso
saber que está falando a verdade agora?
- Eu estive
na biblioteca. Também fui ao museu histórico. Mas não para a Tassi. Fui porque
eu queria pesquisar.
- Ah, conta
outra, você nem estuda.
- Não é
mentira. Aqui está o que fui buscar – falou Júlia, alcançando as folhas para o
marido.
- O que é
isso? – perguntou Rodrigues sem se dar ao trabalho de ler as reportagens.
Júlia começou
a falar sobre as aparições. Contou tudo o que viu e sentiu nesses últimos dias.
Mas Rodrigues não pareceu impressionado.
- Tenho
certeza de que...
-... há uma
explicação lógica para tudo isso? – completou Júlia, a fala do marido. – Então
leia as reportagens.
- Rodrigues
começou a ler o material trazido por Júlia. A cada página, ficava mais
surpreso.
- Caramba...
- É, não
estou louca nem estou inventando nada. Essas reportagens fecham bem com a
história de Rosa e com as aparições que Tassi e eu vimos. Eu não vou ficar mais
uma noite sequer neste lugar. Você vem comigo?
Rodrigues
olhou para a sua mulher e viu a expressão de medo em seu rosto. Ele a amava.
Achava que tinha dado a ela e às filhas uma casa confortável, mas estivera
enganado. Júlia e Tassiane estavam sofrendo. Tassi estava morando em outro
lugar, talvez não quisesse mais voltar. Agora Júlia estava indo também. Nesse
ritmo, em pouco tempo estaria sozinho. E isso não podia aceitar.
- E então, o
que decidiu?
- Vou com
você, Júlia.
- Vamos fazer
as malas – disse Júlia, alegremente.
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