domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capítulo 10

Nove dias havia se passado, desde que Júlia deixara Tassiane aos cuidados de Luciana. A mulher, seu marido e Maria Alice conversavam, por telefone, com Tassiane todos os dias. A menina demonstrava estar muito bem. Aos sábados, a família a visitava.
                Era quarta-feira, 9h. Júlia estava sozinha em casa. Maria Alice teria aula até às 11h e o marido só voltaria ao entardecer.
                A mulher encontrava-se na cozinha junto à mesa, fazendo um bolo. De repente, ouviu um barulho: olhando para o canto direito da cozinha, viu uma das portas do armário totalmente aberta. Estranho, pensou. Júlia foi até o armário, inclinou um pouco o corpo e fechou a porta. Ao retornar à mesa, ouviu o mesmo barulho. Virou-se e viu que a mesma porta estava aberta. Deve estar com defeito, deduziu.
                Júlia aproximou-se novamente do armário, abaixou-se e examinou a porta. As dobradiças estavam boas e nenhum dos encaixes para os pinos havia se soltado. Fechou a porta novamente e ficou olhando, numa tentativa de descobrir como se abria sozinha. Desta vez, permaneceu fechada. Decidida a não perder mais tempo, levantou-se e começou a caminhar em direção à mesa outra vez. Após alguns passos, parou. Olhou para o lado e ficou arrepiada. Deixara a porta da cozinha aberta, mas ela estava fechada.
                Aproximou-se da porta e colocou a mão na maçaneta. A porta parecia trancada. Júlia forçou a porta repetidas vezes, até que se abriu em um sacalão. Júlia calçou a porta e ficou olhando para ela, tentando entender como isso aconteceu. Não havia mais ninguém na casa, a porta da frente estava bem trancada. Virou-se, certa de que desta vez terminaria o bolo. Júlia estacou. Todas as portas e gavetas dos armários e pia estavam abertas.



                11h05min. Maria Alice chegava a sua casa.
                - O que está fazendo na calçada, mãe?
                - Estava esperando você, querida. Vamos – respondeu Júlia, pegando na mãozinha da filha e começando a caminhar em direção ao restaurante mais próximo – a mulher votaria a sua casa somente à tardinha, quando o marido também se encontrasse lá.



                Sexta-feira, 23 de setembro, 8h15min. Júlia dirigiu-se ao quarto, com o objetivo de localizar um pequeno caderno, onde anotava seus lembretes: serviços, compras e etc. Ao sair do quarto, começou a andar pelo corredor em direção à escada. Ao passar por um corredor perpendicular, teve a estranha sensação de ver, de relance, um vulto ao final do corredor, onde ficava o banheiro.
                Júlia parou e voltou alguns passos. Olhou para o final daquele corredor e surpreendeu-se.
                - Alice, por que você não foi à escola?
                A menina nada respondeu. Continuava com o corpo de frente para o banheiro, mas o rosto virado em sua direção. Júlia começou a caminhar ao encontro da filha e a viu entrar rapidamente no banheiro. Ao chegar ao banheiro, Júlia ficou arrepiada. Não havia ninguém ali.
                A mulher afastou-se o mais rápido que pôde. Foi para a sala, local onde mais se sentia segura – isso porque dava acesso à rua.
                Júlia pegou o telefone.
                - Paróquia São Luiz, bom-dia.
                - Bom-dia, eu queria falar com o padre.
                - Quem gostaria?
                - Meu nome é Júlia.
                - Um momento, por favor.
                - Obrigada.
                - Olá, Júlia.
                - Padre, que bom ouvir o senhor.
                - Também é bom ouvir sua voz, Júlia. A Tassiane está bem?
                - Muito bem, padre. Ela está segura na casa da minha amiga.
                - Quando pretende buscá-la?
                - Não sei padre, no momento aqui não é um bom lugar para ela ficar. Deixarei-a na casa de Luciana, até que o senhor consiga solucionar o problema desta casa. Agora, sou eu quem está vendo coisas, padre. O senhor vai conseguir nos ajudar, não vai? Padre? O senhor ainda está aí?
                - Alô? – falou mais uma vez a voz da recepcionista.
                - Alô, aqui é a Júlia. Eu pedi pra falar com o padre e perdi a ligação.
                - Os nossos telefones estão com problemas. Já transfiro novamente.
                - Obrigada.
                - Bom-dia, em que posso ajudá-la?
                - Oi, eu queria falar com o padre Vicente.
                - Sinto muito, mas isso não é possível.
                - Como assim?
                - O padre Vicente não esta mais disponível, senhora.
                - Quem é o senhor?
                - Padre Gregório.
                - Padre Gregório, eu estava falando agora mesmo com o padre Vicente. Como é que ele vai estar disponível em um minuto e não vai estar no outro?
                - Você está enganada, senhora. Não pode ter falado com o padre Vicente.
                - E por que não?
                - Porque ele foi transferido semana passada para São Paulo e eu estou em seu lugar.
                - O quê? Mas como...
                - Ordens superiores, senhora. Não podemos recusar ou colocar impedimentos. Mas não se preocupe, estou aqui para ajudá-la. Por que não me conta o seu problema? Senhora? Ainda esta na linha?
                Júlia desligou o telefone, frustrada. O padre Vicente, que estava tentando ajudá-la de verdade, foi tirado de seu caminho. Naquele momento, Júlia entendeu que qualquer pessoa que tentasse enfrentar a maldição da casa, seria afastada dela. E então, o que faria? Como lutar sozinha contra o mal que ali habitava?
                Outra sensação de vulto. Era como se alguém caminhasse na cozinha. Júlia levantou-se e foi para a rua rapidamente. Afastou-se o máximo que pôde da casa. Próximo ao portão, olhou para a casa mais uma vez. Viu claramente a menina parecida com a Maria Alice olhar em sua direção, virar as costas e sair da janela.



                11h50min.
- Estava me esperando na calçada novamente, mãe?
                - Sim, querida, hoje vamos a um restaurante. Que tal o Italianíssimo?
                - Legal, vou só largar a mochila.
                - Não precisa, deixa que eu levo para você.
                Júlia levou Maria Alice ao restaurante, mas pensava no que fazer depois. Seu marido estaria de volta somente às 17h e ela não estava disposta a chegar em casa antes disso.
                - Um amigo meu da escola falou-me que foi ao shopping assistir ao filme “O Gato de Botas” – disse Maria Alice, à mesa.
                - Ei, é uma boa ideia, que tal irmos hoje?
                - Legal, mãe. Que horas a gente vai?
                - Após o almoço.
                - Beleza.
                Júlia sentia-se aliviada. Do restaurante iria direto ao shopping e passaria a tarde lá.
                Somente agora a mulher compreendia o horror da filha mais velha, a única, até então, a ver aparições. Hoje cedo, achara que estivesse falando com o padre Vicente ao telefone. Era a voz do padre, mas não era ele. O padre se encontrava em São Paulo há dias. Mas o que a voz lhe dissera? Ah, sim, perguntara sobre Tassiane, quando a menina voltaria a casa.
                Talvez fosse esse o motivo de estar vendo coisas, imaginou Júlia. A coisa maligna a estava intimando para que buscasse Tassiane. Antes, era só a filha mais velha que via as coisas. Agora, ela própria estava sendo aterrorizada por essas assombrações. Antes e depois da ligação que fizera, vira a criança parecida com a Maria Alice. Dois dias atrás, aquele episódio de portas e gavetas se abrindo e se fechando na cozinha.
                Uma coisa era certa: ela não traria Tassiane de volta àquela casa maldita. Quando o marido chegasse, teria uma conversa com ele. Mas como convencê-lo a sair? Rodrigues estava enfeitiçado pela casa, não a abandonaria apenas por causa de umas ideias bobas inventadas pela filha mais velha e alimentadas pela mãe. Tinha que ter algo em mãos, uma prova, mas de que tipo?
               


                17h10min. Júlia e Maria Alice entravam no pátio. Rodrigues já devia estar em casa, pensava a mulher.
                - Oi, amor, foram passear? – perguntou Rodrigues à esposa, ao vê-la entrar na casa.
                - Pois é, querido, a Alice se divertiu. Assistimos ao filme “O Gato de Botas”.
                Rodrigues sorriu. Gostava de ver a sua família feliz. Esforçara-se muito para dar à mulher e às filhas a casa confortável onde hoje viviam.
                - Querido, a Tassi precisa de ajuda na escola. Como ela está um pouco longe, eu irei à biblioteca pública por ela.
                - Agora?
                - Sim, preciso ir agora. Mas acho que não vou demorar.
                Júlia pegou o carro e saiu. Sabia que não tinha muito tempo, pois a biblioteca fechava pela tardinha. Enquanto estava no shopping, pensava em como convencer o marido a deixar a maldita casa. Rodrigues sempre achava uma explicação científica para tudo. Então era necessário apresentar provas consistentes do perigo que a casa representava aos seus ocupantes.
                Quando ela e Maria Alice estavam saindo do shopping, passaram por uma professora que conduzia um grupo de criancinhas em fila. A professora dizia:
                - Agora estamos indo embora. Alguém aqui lembra aonde a gente irá amanhã?
                Uma criancinha respondeu:
                - Amanhã iremos à biblioteca.
                - Isso mesmo, Mateus.
                A biblioteca pública! Como não pensara nisso antes? Lá encontraria o que precisava, pensou.
                Júlia estacionou e dirigiu-se rapidamente à biblioteca.
                - Bom-dia.
                - Bom-dia, senhora, em que posso ajudá-la?
                - Queria informações sobre uma casa. Reportagens, coisas do tipo.
                - Que tipo de casa, senhora? Residencial, cultural ou comercial?
                - Residencial.
                - Bem, neste caso conseguirá essas informações no arquivo histórico.
                - Onde fica?
                - Nesta mesma rua, quase no fim, à esquerda. É no mesmo prédio que o museu histórico.
                Júlia agradeceu e saiu. Momentos depois, encontrava-se no Arquivo histórico. A atendente localizara várias reportagens sobre a casa da rua Teófilo Gama, 871.
                As reportagens contavam coisas terríveis: rituais satânicos no porão da casa, torturas, mortes e assassinatos. Um dos artigos chamou a atenção de Júlia: dizia que algumas vezes os bombeiros foram chamados, mas tinham que voltar ao chegar a casa, pois não havia fogo algum. O detalhe é que várias pessoas testemunharam, em diversas ocasiões, a casa parecendo pegar fogo e pessoas lá dentro gritando, como se estivessem sendo torturadas no meio das chamas. Júlia também localizou várias reportagens que traziam fragmentos da biografia de Rosa.
                - Com licença, eu poderia conseguir cópias desse material? – falou Júlia à atendente.
                - Claro, senhora. São R$ 0,20 a cópia.
                - Faça para mim, por favor.
                - Pois não.
                - Júlia gastou cinco reais e saiu do arquivo histórico com todo aquele material xerocado. Agora tinha em mãos a prova de que precisava.
                Ao chegar a sua casa, viu seu marido, sentado no sofá, com uma xícara de café.
                - Oi, querido, precisamos conversar – falou Júlia, séria.
                - Qual o nome dele?
                - O quê?
                - Qual o nome dele?
                - Dele quem? – perguntou a mulher, confusa.
                - Você sabe quem. Você mentiu pra mim. Quando saiu, liguei para a Tassi. Não há trabalho nenhum na biblioteca.
                - Tudo bem, eu menti. Mas não estou lhe traindo.
                - Como posso saber que está falando a verdade agora?
                - Eu estive na biblioteca. Também fui ao museu histórico. Mas não para a Tassi. Fui porque eu queria pesquisar.
                - Ah, conta outra, você nem estuda.
                - Não é mentira. Aqui está o que fui buscar – falou Júlia, alcançando as folhas para o marido.
                - O que é isso? – perguntou Rodrigues sem se dar ao trabalho de ler as reportagens.
                Júlia começou a falar sobre as aparições. Contou tudo o que viu e sentiu nesses últimos dias. Mas Rodrigues não pareceu impressionado.
                - Tenho certeza de que...
                -... há uma explicação lógica para tudo isso? – completou Júlia, a fala do marido. – Então leia as reportagens.
                - Rodrigues começou a ler o material trazido por Júlia. A cada página, ficava mais surpreso.
                - Caramba...
                - É, não estou louca nem estou inventando nada. Essas reportagens fecham bem com a história de Rosa e com as aparições que Tassi e eu vimos. Eu não vou ficar mais uma noite sequer neste lugar. Você vem comigo?
                Rodrigues olhou para a sua mulher e viu a expressão de medo em seu rosto. Ele a amava. Achava que tinha dado a ela e às filhas uma casa confortável, mas estivera enganado. Júlia e Tassiane estavam sofrendo. Tassi estava morando em outro lugar, talvez não quisesse mais voltar. Agora Júlia estava indo também. Nesse ritmo, em pouco tempo estaria sozinho. E isso não podia aceitar.
                - E então, o que decidiu?
                - Vou com você, Júlia.

                - Vamos fazer as malas – disse Júlia, alegremente.

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