domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capítulo 11

Júlia ficou feliz com a decisão do marido. Disse-lhe que iria ao quarto para arrumar as malas. Queria sair imediatamente da casa. Caminhou em direção à escada, mas não a subiu. Um som terrível se originou da cozinha, fazendo com que todos se sobressaltassem. A mulher olhou para o marido, aterrorizada.
                - Que diabos foi isso? – perguntou Rodrigues, sentindo um intenso arrepio que percorria todo o seu corpo.
                Vendo sua mulher e a filha mais nova petrificadas, levantou-se, deixando cair no chão as várias folhas xerocadas que Júlia trouxera.
                - Veio da cozinha - disse o homem, andando em sua direção.
                - Rodrigues, não vá – pediu Júlia.
                - Querida, algum gato deve ter entrado pela janela e derrubado algumas panelas – afirmou, sabendo que não era verdade. O barulho era muito alto para ser algo tão simples assim.
                Horrorizadas, Júlia e Maria Alice foram atrás. Tinham medo de se aproximar da cozinha, mas mais medo ainda de ficar longe de Rodrigues. O homem, ao chegar à porta, apenas ficou parado, olhando fixamente o interior da cozinha com cara de espanto, mas sem nada falar.
                - Rodrigues, o que foi?
                Mas o homem nada respondia. Apenas ficara parado na porta, sem se mexer.
                - Papai?
                Cautelosas, Júlia e Maria Alice se aproximaram. Quando olharam para o interior da cozinha, Júlia lembrou-se daquela madrugada em que Tassiane, aos gritos, os acordara. Pacientes, Rodrigues e Júlia conduziram a menina de volta para o seu quarto e viram uma bagunça que não podiam entender. Tudo o que foram capazes de pensar é que a menina criara toda aquela confusão, com o objetivo de se mudarem dali. Como não foram capazes de enxergar a verdade? A garota jamais teria forças para tirar a enorme televisão da estante e colocá-la em cima da cama. Mas mesmo julgando-a culpada, foi Rodrigues quem devolveu a TV à estante. Entretanto, este foi um detalhe que passou batido. Como puderam deixar um fato importante desse de lado?
                Embora tivesse recordado este episódio, Júlia sabia que não era possível comparar o estado do quarto da filha mais velha com o que estava diante de seus olhos. A cozinha estava em muito pior estado: toda a louça estava quebrada; as portas dos armários e da pia haviam sido arrancadas; restos de comida estavam grudados nas paredes, como se alguém tivesse arremessado contra elas pratos sujos com toda a força; a torneira, quebrada, jorrava água sem parar no chão, que parecia uma paisagem de terror – cacos de vidro misturados com as portas quebradas, somado ao lixo espalhado. Era uma verdadeira visão do inferno.
                - Mas que merd...
                Rodrigues não concluiu sua frase, sentia a mão da sua esposa tocá-la em seu ombro esquerdo.
                - O que foi, Júlia? – perguntou o homem, sem se virar.
                Mas sua esposa não respondeu, apenas apertava o seu ombro com mais força. Rodrigues então virou-se, mas logo preferiu não ter realizado tal movimento.
                Se antes o homem havia ficado pra lá de espantado com o que viu na cozinha, não saberia, naquele momento, achar um adjetivo que descrevesse seu novo estado. O que via desafiava as leis da física. Não era possível, dizia, em pensamento. Simplesmente não era...
                Maria Alice não percebeu que se urinou, tamanho horror que se apoderou dela. Júlia sentiu suas pernas perderem as forças e caiu de joelhos. Rodrigues se mantinha em pé, espantado demais até para praguejar.
                Os livros da estante pairavam no ar, suspensos por uma força desconhecida. Incrédulo, Rodrigues olhava-os flutuar, sem conseguir aceitar a realidade do fenômeno. Permaneceu dois minutos inteiro, boquiaberto, apenas tentando acreditar que não estava sonhando – ou, mais provavelmente, tendo um pesadelo. Depois desse tempo, encontrou forças para falar:
                - Vocês duas estão vendo o mesmo que eu?
                A mulher e a filha, ao ouvirem sua voz, pareciam saídas de um transe. Dirigiram seus olhares ao homem, mas sem emitir quaisquer palavras. O olhar de ambas transmitia puro terror. Isso fez com que Rodrigues se sentisse pior ainda.
                Sem aviso, o piano começou a tocar. As três pessoas, que até então se olhavam, voltaram a olhar para a sala, na direção do piano. Rodrigues então percebeu que o fundo do poço era mais embaixo. Foi sua vez de lembrar do dia em que Tassiane disse tê-lo visto tocar, enquanto o vaso preferido de Júlia se espatifava. Pensaram apenas no prejuízo material e na ideia de levarem a garota a um psicólogo. Nunca deram importância às suas histórias, até agora.
                Sentindo um remorso que não podia descrever, Rodrigues desabou, caindo de joelhos, ao lado da esposa. As lágrimas caíam em abundância. Sua consciência era agora um fardo pesado demais para suportar. Pensara apenas em si, nunca acreditara nas tolices de Tassiane. Fantasias sobrenaturais, assim rotulara os delírios da filha mais velha. E ela havia sofrido aquele tempo todo apenas porque o lógico Sr. Razão tinha que dar uma explicação científica para qualquer assunto, pensava o homem, amargamente.
                A música do piano ficou mais alta, permitindo a Rodrigues afundar ainda mais na lama de sua consciência. Ainda de joelhos, pedia desculpas à filha mais velha, numa inútil tentativa de aliviar a dor que o consumia. Os últimos minutos haviam se transformado num verdadeiro show de horrores, levando-os quase à insanidade.
                Embora dominados pelo medo, que parecia congelar suas almas, Rodrigues sabia que tinham que se recompor. Precisavam sair daquele lugar maldito, a casa que fosse para os quintos do inferno. Sua preocupação básica agora era a sobrevivência. O choque do contato com o desconhecido estava começando a passar. Rodrigues levantou-se.
                - Garotas, temos que sair – disse, ajudando Júlia a se levantar.
                Assim que Júlia se pôs em pé, o homem segurou a mão da esposa e a da filha. Deu dois passos e, em seguida, gritou. Um dos livros que estava suspenso foi arremessado em sua direção por uma mão invisível, atingindo-o no peito. A dor foi intensa e Rodrigues não conseguiu continuar de pé. Encostou a mão direita na parede, enquanto deslizava para baixo e ficou sentado, gemendo. Júlia e Maria Alice se colocaram de joelhos ao seu lado, abraçando-o.
                Era o fim, pensava o homem. Estavam todos pagando o preço pelo fato de ele não ter dado ouvidos à filha mais velha. Fora arrogante e condenara a sua família a um sofrimento extremo. Jamais conseguiriam sair daquela casa maldita. As forças que estavam operando o ambiente deixavam isto bem claro.
                A água da cozinha começava a inundar o chão da sala, mas o homem e sua família não notaram. Júlia e Maria Alice apenas tentavam apoiar Rodrigues ajoelhadas ao seu lado, abraçadas a ele. Porém, tudo o que ele era capaz de fazer naquele momento era sentir dor. Continuava ali sentado, massageando o peito e culpando-se por não ter acreditado em Tassiane.
                A princípio, nem percebeu, tão absorto estava em seus pensamentos. Mas então começou a sentir um cutucão contínuo em seu ombro esquerdo.
                - Rodrigues, Rodrigues – insistia a mulher. – Vamos, é a nossa chance.
                Precisou de vários segundos para que entendesse o que estava acontecendo. Os livros estavam todos no chão, uns por cima dos outros, como se tivessem apenas sido derrubados. O piano parara com sua atividade anormal. Tudo estava tranquilo novamente.
                - Depressa, não temos muito tempo – gritava alguém da porta de entrada, mas Rodrigues não conseguia ver muito bem, sua visão parecia embaçada.
                Com dificuldade, a mulher ajudou-o a se levantar e se dirigiram ao local onde estava um homem, que, momentos depois, quando já se encontravam na calçada, Rodrigues percebeu se tratar de um senhor de idade avançada.
                - Depressa – disse o homem, colocando o braço direito de Rodrigues sobre seus ombros, para ajudá-lo a caminhar mais rápido.
                O estranho os conduziu pelo pátio. Logo se encontravam na segurança da calçada.
                - O senhor está bem? – perguntou o velho, preocupado com a condição de Rodrigues.
                - O senhor é um anjo? – perguntou Rodrigues ao velho, já se sentindo capaz de ficar em pé, sem precisar de apoio.
                O velho sorriu diante da inesperada pergunta de Rodrigues. Era apenas um ser humano, pensava Júlia, mas transmitia algo muito agradável. De repente, a mulher se deu conta de que aquele estranho os salvara. Aproximou-se daquele senhor, abraçou-o e começou a chorar. Comovido, o velho retribuiu o abraço, dizendo que tudo ficaria bem, que não era para que se preocupassem.
                - Quem é o senhor? Como chegou a tempo de nos tirar daquele pesadelo? Como sabia a encrenca em que estávamos metidos? – disparou Rodrigues todas essas perguntas, assim que Júlia se afastou do velho.
                - Eu sou o padre Gregório – respondeu com simplicidade.
                O queixo de Júlia caiu.
                - Padre Gregório? O senhor é o padre Gregório?
                - Vocês se conhecem? – perguntou Rodrigues, confuso.
                O padre Gregório sorriu. Queria explicar àquelas pessoas o que havia acontecido, mas não ali. Estavam perto demais da casa maldita, precisavam tomar mais distância.
                Convidou-os a irem até o seu escritório, na igreja, e lhes contaria tudo. Júlia e Rodrigues balançaram a cabeça e nem olharam para o portão da casa. Apenas começaram a se afastar, na companhia do padre. Naquele momento, observou o padre Gregório, não havia o menor motivo para se preocupar com a segurança da casa. Que ficasse aberta, eram eles que importavam.
                Na igreja, o padre conduziu-os pelo pátio, até chegarem à sala dos fundos. Havia uma recepção e a moça que trabalhava já estava saindo, mas, ao vê-los chegar, puxou a cadeira e sentou-se, pronta para cumprir suas obrigações.
                - Não se preocupe, Mariana, pode ir embora. Apenas tranque o portão ao sair, está bem? – falou o padre, bondosamente.
                A garota pareceu em dúvida.
                - Tem certeza, padre? Se quiser, eu...
                - Não, está tudo bem. Até amanhã.
                - Obrigada, padre.
                O padre Gregório sorriu. Ele é muito gentil com as pessoas, pensaram Rodrigues e Júlia.
                Júlia reconheceu a voz da recepcionista. Falara com ela em quase todas as vezes em que precisou ligar para a igreja.
                - Fiquem à vontade – disse o padre, ao passar pela mesa da recepção e abrir a porta de seu escritório.
                Rodrigues e Júlia agradeceram a hospitalidade do padre e entraram na sala. O padre Gregório entrou atrás e convidou-as a se sentarem.
                - Gostariam de tomar alguma coisa? Tenho café e chá – ofereceu.
                - Não, obrigada, padre.
                - Não, obrigado.
                - Eu quero um copo d’água – falou Maria Alice.
                O padre sorriu para a garotinha, encheu o copo e alcançou a ela.
                - Obrigada – falou Maria Alice.
                Ainda sorrindo, o padre sentou-se em sua poltrona. Por um momento pareceu pensativo, como se quisesse organizar as idéias antes de começar. Rodrigues e Júlia apenas esperaram.
                - Bem, felizmente aqui estamos – disse o padre. – Creio que é chegado o momento de tirar todas as dúvidas de vocês. O senhor havia me perguntado antes, Sr. Rodrigues, como eu sabia que vocês estavam em apuros. Confesso que não foi fácil juntar as peças do quebra-cabeça, mas ainda bem que consegui.
                Júlia lembrou-se, naquele momento, de uma vez em que conversou com o padre Vincente. O padre Gregório falava como ele. Inclinou a cabeça e esboçou um leve sorriso.
                - Quando o padre Vincente foi afastado, fui chamado para ocupar o seu lugar. À noite, ao chegar a minha casa, recebi uma ligação que me deixou muito preocupado. Ao ligar a secretária eletrônica, o padre Vincente me deixara uma rápida mensagem. Pedia-me para ligar pra ele com urgência, pois tinha um assunto inacabado aqui e temia que talvez não pudesse cumprir a promessa que fizera a uma jovem chamada Tassiane. Finalizou dizendo que era questão de vida ou morte.
                “Liguei imediatamente para o número que ele me deixara, mas ninguém atendeu. No dia seguinte, insisti, ligando várias vezes para aquele número, mas sem sucesso. Era como se o padre nunca pudesse estar ali.
                “Pesquisei a lista telefônica e consegui alguns números de igreja. Entrei em contato com todas, mas apenas na última tentativa é que sabiam onde o padre Vincente estava”
                O padre Gregório parou um pouco para recuperar o fôlego. Júlia e Rodrigues olhavam para ele, percebendo uma mudança repentina em sua expressão – era como se tivesse envelhecido anos em poucos segundos.
                Seu rosto agora não mais irradiava alegria como antes. A testa franzida, combinada com um olhar cansado, conferia à sua face uma grande tristeza.
                - O que foi, padre? – perguntou Júlia, tendo a sensação de que ouviria algo muito desagradável.
                O padre Gregório olhou para a mulher e hesitou, como se não tivesse que contar aquela parte da história. Mas não podia mentir, sabia que isso era um grave pecado.
                - Após o recado que deixou para mim, o padre Vincente sofreu um acidente, deixando-o em coma.
                A princípio, Júlia não entendeu muito bem o que ouvira. Apenas ficou olhando para o padre, boquiaberta, tentando assimilar aquelas últimas palavras. E então ela levou as mãos em direção ao rosto e soltou um gemido que partiu o coração de todos naquela sala. Rodrigues, o padre e Maria Alice olhavam para ela, sentindo seu sofrimento se estender a eles.
                Gentilmente Rodrigues a abraçou. Maria Alice também se grudou na mãe, que agora chorava como se fosse criança.
                - É minha culpa, ele está ferido por minha culpa – afirmava a mulher, em meio a soluços.
                - Querida, você apenas tentou ajudar a nossa família – falou gentilmente Rodrigues.
                - Fui eu quem o chamou. Eu que telefonei a ele e o convenci a nos visitar – prosseguiu a mulher, incapaz de parar de soluçar.
                Foram necessários vários minutos para que Rodrigues e o padre acalmassem a mulher. Júlia finalmente se recompôs. Os olhos continuavam vermelhos, mas agora voltara à realidade e estava disposta a continuar a conversa com o padre Gregório.
                - Após saber do que se sucedera ao padre Vincente – prosseguiu o padre Gregório -, imaginei uma maneira de tentar descobrir o que ele estava querendo me dizer. Ouvi a mensagem novamente e percebi que tinha uma pista – era o nome de uma garota chamada Tassiane.
                - É a nossa filha mais velha – comentou Rodrigues.
                O padre balançou a cabeça.
                - Perguntei à Mariana sobre a garota e ela me disse que nunca havia ouvido falar daquele nome. Achei que estivesse de volta à estaca zero, mas uma ideia me surgiu e eu pedi uma relação de pessoas que ligavam para cá, a fim de manterem contato com o padre Vincente.
                “Em alguns minutos, Mariana deu-me uma lista de quinze nomes. Sabia que não era grande coisa, considerando o fato de que minha recepcionista não imaginava quem pudesse ser a Tassiane.
                “Percorrendo os nomes da lista, um em especial me chamou a atenção: Júlia. No momento, não sabia o porquê de aquele nome se destacar dos demais, mas havia alguma coisa diferente nele e eu precisava descobrir o que era. Mas não havia nenhum dado para contato, nenhum endereço ou número de telefones – apenas os nomes.”
                O Padre Gregório interrompeu momentaneamente sua narrativa. Levantou-se e encheu uma xícara de café. Todo aquele falatório deixara sua garganta seca.
                Ainda em pé, sorveu um longo e delicioso gole de uma das mais famosas bebidas do planeta. Sentindo-se revigorado, sentou-se novamente e prosseguiu:
                - Talvez tivesse sido algo da minha imaginação me fixar em um determinado nome, numa lista de quinze. Achei que era o estresse da situação. O enigma a ser resolvido, somado ao trabalho da igreja e à minha idade avançada eram os ingredientes necessários para a mente começar a pregar suas peças. E, em determinado momento, confesso que estava muito cansado com essa história. Mas não iria desistir.
                “Voltei a falar com Mariana e lhe perguntei se o padre Vincente havia lhe telefonado ou enviado uma mensagem por fax, já imaginando qual seria a resposta. Mais uma vez, encontrava-me em um beco sem saída.
                “Notando meu interesse no padre Vincente, Mariana falou algo que despertou minha curiosidade. Mostrou-me um velho caderninho, abrindo-o ao meio para que eu pudesse vê-lo cheio de anotações com uma letra bem bonita.”
                - O diário da Rosa! – exclamou Júlia.
                O padre Gregório sorriu.
                - Sim, era o diário da Rosa. Perguntei o que era aquilo e o porquê de Mariana estar me mostrando e sua resposta foi direta, disse-me que tudo o que tinha sobre o padre Vincente era aquele caderninho. Isso porque, na pressa de sair, ele o esquecera numa gaveta.
                “Interpretei aquilo como um sinal do céu. Levei-o para o meu escritório e, ao abri-lo, encontrei, afixado na primeira página, um pequeno bilhete.
                O padre pegou o bilhete de uma das gavetas de sua mesa e o leu em voz alta:
                                              
ENCONTRADO POR JÚLIA. LEITURA OBRIGATÓRIA!

                Enquanto o padre tomava mais um pouco de café, o silêncio voltava a reinar na sala. Pelo conteúdo do bilhete, Rodrigues percebeu o que Júlia já havia compreendido muito tempo atrás: o padre Vicente estava realmente tentando ajudá-los. Assim, a única maneira para as forças que operavam sua casa era afastá-lo ao máximo possível. Como se não bastasse a distância, a força maligna também provocara o acidente, a fim de garantir que nenhuma ajuda chegasse à sua residência.
                - Mais uma vez o nome Júlia apareceu e então percebi que não era algo apenas da minha cabeça. Havia uma ligação e aquele nome era a chave para solucionar a charada deixada por meu colega.
                “O nome estava na lista e também no caderno, mas e daí? Não havia nada além disso. Eu precisava era de um contato telefônico...
                “Ao pensar nisso, entendi o motivo de ter achado o nome Júlia um destaque entre os demais: eu havia recebido uma ligação sua há vários dias.”
                Júlia não sabia se ficava vermelha ou roxa, mas preferia a cor pálida. Aparentar sentir-se doente era muito melhor do que demonstrar a vergonha que agora sentia. Levantou-se e serviu-se de uma xícara de café.
                - Júlia, você está bem? – perguntou Rodrigues, estranhando a atitude da mulher. O ideal seria pedir licença, perguntar se podia se servir de uma xícara de café, enfim, essas regras de etiqueta. Mas não fizera nada disso. Parecia apenas distante.
                - Júlia, está tudo bem... – começou o padre, mas a mulher não o deixou terminar.
                - Não, padre, não está – respondeu com tristeza. – Eu bati o telefone na cara do senhor.
                - Como é que é? – perguntou Rodrigues, incrédulo. – Você... está falando sério?
                - Desculpe-me, padre, eu não...
                Dessa vez foi o padre quem interrompeu.
                - Júlia, você e sua família passaram por uma terrível provação – disse gentilmente. – Não há motivo algum para ficar envergonhada. Em seu lugar, acha que eu não teria feito o mesmo?
                Júlia sentou-se e olhou, agradecida, para o padre Gregório. Não era só a vergonha, mas também o fato de que sua atitude impulsiva quase impossibilitara o padre Gregório de ajudá-los. Tinha sido uma idiota, quase condenara a sua família a um destino horrível. Mas, como tudo acabara bem, era melhor deixar pra lá.
                - Obrigado pela compreensão padre – disse Rodrigues. – Mas como o senhor conseguiu montar o quebra-cabeça?
                - Bem, na ligação você não havia me dito o seu nome. Assim, tive de perguntar a Mariana. Também perguntei se você já havia ligado antes e a recepcionista me disse que sim, várias vezes, na verdade.
                “Esse episódio me marcou muito. A voz ao telefone parecia apreensiva, como se estivesse precisando muito de ajuda. E eu não sabia como poderia ajudá-la, uma vez que seu contato estava com o padre Vincente e eu não sabia como localizá-lo, pois ele ainda não havia entrado em contato comigo.
                “Ao abrir o caderninho, era a terceira vez que eu estava tendo contato com o seu nome. Então restava-me apenas...”
                - ...ler o diário da Rosa – concluiu Júlia, a frase do padre.
                - Exatamente. E, durante a leitura, percebi dois endereços próximos à igreja.
                - A nossa casa e a casa da esquina – dessa vez foi Rodrigues quem falou. Não tinha lido o diário da garota, mas havia tido, com sua mulher, uma experiência bem desagradável na casa dos moradores-fantasmas.
                O padre sorriu, mas foi um sorriso triste. Aquelas pessoas eram boas e não mereciam os horrores que haviam enfrentado naquela casa do inferno.

                - Fui à casa da esquina e a encontrei para venda. O jeito era tentar a 871. Quando cheguei à casa de vocês, pressionei o botão do interfone, mas, em vez de alguém da família, foi uma voz espectral que me respondeu. Sua ordem era clara, eu não era bem vindo ali. Girei a maçaneta, achando que o portão estava trancado, mas não estava. Avancei com dificuldade pelo pátio, vozes e imagens inundando a minha mente. Ao chegar à porta, empurrei-a e olhei para o interior. A visão era mesmo do inferno: vocês estavam a vários metros de onde eu me encontrava, sentados e acuados. Temi que minhas forças se esgotassem, caso resolvesse entrar na casa. Assim, decidi que o melhor era chamá-los. Foi Júlia quem me ouviu e, bem, o resto vocês sabem – concluiu o padre.

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