domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capítulo 9

Segunda-feira, 12 de setembro, 19h. O telefone tocou.
                - Alô.
                - Alô, Júlia?
                - É ela mesma.
                - Júlia, aqui é o padre Vicente.
- Padre Vicente, que bom que o senhor ligou. A Tassi e eu ficamos preocupadas. O senhor está bem?
                - Oh, não, por favor, não se preocupem. Eu estou ótimo.
                - Que bom, padre. Vou falar para a Tassi que o senhor está bem.
                - Obrigado. Júlia, eu liguei porque preciso de algumas informações.
                - Claro, padre, pode perguntar.
                - Antes de mais nada, quero que saiba que não lhe dei um retorno antes por falta de tempo. Sábado pela manhã, estive em sua casa. À tarde, houve atividades na igreja e, à noite, missa. Domingo passei o dia todo em função da igreja.
                “Hoje pela manhã, li a história escrita no caderninho. À tarde, escutei algumas vezes a gravação que fizemos no sábado. A sensação que tive em sua casa é que tudo parecia interligado. Mas, sinceramente, não consegui estabelecer conexão entre uma coisa e outra. Então, fui visitar a casa da esquina com a Guilherme Schell. Mas só havia uma placa de venda, fixada na área.
                “De acordo com sua história, você e seu marido estiveram na casa não faz muito tempo. Liguei para a imobiliária e perguntei há quanto tempo a casa estava para ser vendida. Eles me disseram que já faz um mês que a colocaram à venda.”
                - Mas isso não pode ser verdade, padre, não faz dez dias que estivemos lá.
                - O quê? Não pode ser...
                - É sério. Pode perguntar ao meu marido, ele confirmará o que estou dizendo.
                - Não, tudo bem, eu acredito em você. Bem, continuando a minha história, eu perguntei à moça da imobiliária o nome das pessoas que foram as últimas a morarem na casa. Ela respondeu-me que não poderia me dar essa informação, pois feria a ética profissional. Então eu lhe disse que era o padre Vicente, da paróquia São Luís, e que estava investigando um caso para ajudar uma família. Ela poderia ligar de volta para a igreja, se quisesse confirmar. Aí a garota disse que estava tudo bem, que iria me dar os nomes dos últimos proprietários. Fez uma rápida pesquisa no computador e logo falou que os últimos proprietários foram Roberto e Daniela.
                - Mas isso não é possível, padre...
                - Eu já ia chegar nesse ponto. Como havia lhe dito antes, não consegui estabelecer uma conexão entre as coisas, embora tudo parecesse estar relacionado. Faltavam algumas peças do quebra-cabeça e eu não imaginava quais seriam. Ouvi as gravações repetidas vezes, até que a ficha caiu: ao contar sobre a visita na casa da esquina, você não falou os nomes das pessoas que os receberam. Também não disse o nome da garota grávida que os visitou naquela noite chuvosa.
                - Não falei? Que estranho, eu achei que tivesse lhe dito...
                - Você não falou. Tenho aqui a gravação para provar. Lembra quando lhe disse para não omitir informações? Falei isso porque qualquer coisa, por mais banal que possa parecer, pode ser muito útil. Mas o estranho é que você pensou em falar, mas não falou. E quanto a mim, posso afirmar que também foi estranho. Minucioso como sou, como pude deixar escapar essas informações? Eu não teria me dado conta de sua importância, se não tivesse escutado a gravação várias vezes. Júlia, ainda não posso afirmar nada, é só um palpite, mas acho que esses nomes serão de grande ajuda para as minhas investigações.
                - Tudo bem, padre. Os nomes dos velhinhos que nos atenderam eram Genésio e Joana. E a garota que veio nos visitar se chamava...
                -... Rosa. Droga, tudo faz sentido agora.
                - O que foi, padre, o que o senhor descobriu?
                - Eu estava certo. Eram essas as informações que faltavam. O que quer que exista nesta casa confundiu você, enquanto falava, e impediu-me de perceber a importância de saber os nomes dessas pessoas. Essa coisa não queria me ver montar o quadro todo, mas acredito que tive sucesso.
                - O senhor vai solucionar nosso problema?
                - Você não entendeu, Júlia. É um passo de cada vez. Primeiro temos que entender o problema. Somente aí, teremos condições de lidar com a situação.
                - Tudo bem, eu entendi. Mas no que lhe ajudou saber esses nomes?
                - Já explico. Antes, preciso saber algumas coisas. Quando estava em sua casa, reparei que a Tassiane usava um colar, uma pulseira e um anel. Quando ela ganhou tais objetos?
                - A pulseira foi dada pela Alice, a irmã mais nova. Umas duas ou três semanas atrás, Alice a achou entre os móveis do porão e deu para a irmã, para se desculpar por uma discussão que tiveram. Alice e Tassiane foram novamente ao porão. Dessa vez, foi a Tassi quem encontrou os outros objetos de prata: o colar e o anel.
                - Entendo. Você havia dito que Tassiane completara quatorze anos na sexta-feira. Quantas pessoas compareceram à festa?
                - Uma centena ou mais, padre. Não sei dizer a quantidade exata.
                Júlia ouviu o padre suspirar.
                - Olha, o que vou lhe pedir pode ser meio complicado, mas asseguro-lhe que é importante para as minhas pesquisas.
                - Claro, padre, peça o que quiser.
                - Bem, eu preciso da lista completa de todos os presentes que a Tassiane ganhou.
                Júlia riu.
                - Júlia? Eu não entendo, por que está rindo?
                - Você falou como se fosse algo muito difícil para eu fazer, mas lhe dou a resposta agora: Tassi ganhou um vestido de mim e um violão do pai. Ou seja, dois presentes.
                Júlia pensou um pouco, enquanto o padre tomava nota dos presentes.
                - Espere, padre, eu diria que Tassi ganhou mais um presente.
                - Estou ouvindo.
                - Ela estava muito feliz, dizendo que o garoto mais bonito da escola lhe fora apresentado na festa e a convidara para sair.
                - Júlia, responda-me uma coisa: você leu a biografia de Rosa?
                - É claro que sim, padre, eu...
                Júlia parou de falar. Graças à conversa com o padre Vicente, teve uma súbita revelação. Mas como não havia percebido antes? Tudo começou com o atropelamento da galinha, pelo marido, na calcada de sua residência – Rosa foi batizada com sangue de galinha. A partir daquele dia, coisas estranhas começaram a acontecer. A pulseira que Tassi ganhara de Maria Alice, o colar e o anel encontrados pela filha mais velha no porão, o vestido e o violão ganhados como presentes de aniversário... Foram justamente esses os presentes que Rosa mencionara em seu diário. Agora ficava fácil entender o interesse do padre em querer saber o nome da garota grávida que os visitara e o nome de seus pais; entender o interesse do padre nos presentes que a filha ganhou. Sim, agora tudo estava claro: o que aconteceu com Rosa, estava acontecendo com Tassiane.
                - Padre, o que vamos fazer?
                - Júlia, você entendeu o perigo que Tassiane está enfrentando. Preste atenção: ela não pode ficar nem mais uma noite nesta casa. Você deve levá-la a outro lugar o mais rápido possível. Agora.
                - Sim, o senhor tem razão, padre. Quando ela estiver segura, telefonarei avisando.
                - Ótimo. Boa-noite, Júlia.
                - Boa-noite, padre. Obrigada.
               


                21h30min. Tocou o interfone de Luciana.
                - Olá.
                - Olá, Luciana. Sou eu, a Júlia.
                - Ah, claro. Já vou destrancar o portão.
                Júlia e Tassiane se aproximavam da casa de Luciana, que se encontrava na área, junto à porta de entrada.
                - Obrigada pela ajuda, Luciana – falou Júlia, abraçando a amiga.
                - Imagina, vai ser um prazer ficar com esta moça. Tudo bem, linda?
                - Tudo, Luciana. Obrigada.
                - Chega de me agradecer, tá? Como disse, será uma satisfação ficar com você. Entrem, meninas.
                Júlia e a filha acomodaram-se na sala. Luciana foi à cozinha e voltou com uma bandeja com três xícaras de café.
                - Quando você me ligou, pedindo-me para deixar a Tassi alguns dias comigo, fiquei preocupada. O que aconteceu?
                - Você estava certa, Lu. Alguma coisa está muito errada naquela casa.
                A partir daquele momento, Júlia desatou a falar. Contou sobre a visita de Rosa, seus pais, a capa sobre sua sepultura, o caderninho que contava sobre sua biografia e a valiosa ajuda do padre Vicente, que descobriu que as coisas sofridas um dia por Rosa, repetiam-se agora na vida de Tassiane.
                - Minha nossa, Júlia, você sempre foi cética, mas agora está falando coisas que, para mim, soam inacreditáveis.
                - Você... acha que eu estou inventando tudo isso?
                - Não, Júlia, eu não disse isso. Ocorre que a igreja católica e o espiritismo são duas crenças completamente diferentes. Os católicos acreditam na existência dos anjos caídos, ou seja, os demônios. Nós, os espíritas, acreditamos que o diabo não existe. Os espíritos “demoníacos” que andam por aí são almas que se tornaram malignas.
                - Para mim, são nomes diferentes para um mesmo ser. O que importa quem ou o que são? Ou de onde vêm? Eles são espíritos e podem nos prejudicar.
                - Em linhas gerais, você até pode estar certa. Mas ainda não entendeu o que falei. Veja bem, se os cristãos acreditam que o demônio pode engravidar alguém, nós, os espíritas, julgamos impossível uma pessoa engravidar outra, se ela se encontrar apenas em sua forma espiritual, isto é, desencarnada.
                - Lu, eu também não sei se isso é possível. Mas fico horrorizada só em pensar que tudo o que aconteceu me leva a crer que o objetivo desse espírito, seja diabo, seja o que for, é causar este dano em Tassi.
                Antes que Luciana começasse a defender sua teoria mais uma vez, Júlia prosseguiu:
                - Quando esteve em minha casa, você falou que coisas horríveis haviam acontecido no porão. Ao subir a escada, disse que a pior coisa tinha ocorrido no quarto da Tassi. Você pode descrever o que viu?
                Luciana empalideceu. A visão que tivera naquele quarto ainda a atormentava.
                - Vi uma adolescente, que devia estar com uns seis ou sete meses de gravidez. Ela estava deitada na cama. De repente, esfaqueou a própria barriga repetidas vezes. A criança em seu ventre deu um grito pavoroso. Um belo rapaz apareceu. Ao ver a menina e a criança mortas, soltou um grito tão forte que os vidros das janelas se despedaçaram. Em seguida, ele deu um soco na parede e um bloco de tijolos caiu, deixando a parede semidestruída. Não sei dizer a você o que isso significa.
                Júlia e Tassiane se entreolharam. Lembravam-se bem do estado em que a casa se encontrava, antes de ser reformada.
                - E o porão? – perguntou Júlia.
                - O que tem o porão?
                - Você disse que coisas ruins aconteceram ali também.
                Mas eu não estive no porão, por isso não vi nada. Apenas senti uma coisa ruim ao olhar na direção da porta do porão.
                - Mas você não conhecia a casa. Como sabia que aquela porta dava acesso ao porão?
                - Eu apenas sabia. Vocês vão sair da casa?
                - Eu bem que gostaria. Tassi, então, nem se fala. Mas o meu marido pretende ficar lá o resto da vida, pelo jeito.
                - Mas, Júlia, você mesma contou que a visita da Rosa terminou com o ceticismo de seu marido.
                - É, eu achei, na ocasião, que tinha terminado. Mas o fato é que, desde que adquirimos a propriedade, o ceticismo do meu marido vai e vem. Rodrigues reformou a casa sozinho porque nenhum pedreiro queria o serviço. Achou isso muito estranho, mas logo imaginou que todos os que contatara estavam com suas agendas lotadas. Depois de acharmos a capa na sepultura de Rosa, falou que nenhum gasparzinho lhe correria de sua própria casa. Dias depois, teorizou que isso foi um plano engenhoso para fazer com que vendêssemos a casa pelo menor preço possível. Fiquei quase uma hora tentando convencê-lo a deixar que Tassi ficasse com você por alguns dias. Ele disse que isso só pioraria mais a situação porque você é maluca.
                Júlia suspirou, frustrada.
                - Lu, as meninas e eu encontramos objetos nos móveis do porão. O detalhe é que, antes que Rodrigues os colocasse no porão, revistou um por um e não encontrou nada em nenhum daqueles móveis. Quando lhe pedi uma explicação científica para isso, ele me disse que talvez estivesse cansado demais para perceber alguma coisa naqueles móveis.
                “Minha esperança agora é o padre Vicente. Por falar nisso, eu poderia usar o telefone? Esqueci o celular e prometi ao padre que o informaria quando a Tassi estivesse em segurança.”
                - Claro, Júlia, não precisa nem pedir. Use o fixo. Esta extensão não está funcionando. Use o do meu quarto. Não te ofereço o celular porque ele está em manutenção.
                - Obrigada, Lu...
                - Momentos depois, Júlia retornava. Tassi ria de um caso engraçado que Luciana contava. Júlia sentiu-se bem. Tinha acertado em deixar Tassi com Luciana, pensou.
                - Lu, eu não quero ser chata, mas posso lhe dizer algo?
                - Claro, querida, o que quiser.
                - Meu marido me fez prometer que eu pediria a você para não falar em religião com a Tassi, em momento algum.
                - Sem religião, sargento – falou Luciana, batendo continência.
                Tassi começou a rir e Júlia acompanhou a filha.
                - Devo ir agora, já está tarde.
                Júlia aproximou-se da filha.
                - Amor, logo o padre resolverá a nossa situação. Amo você – disse a mulher, abraçando a filha.
                Virou-se para Luciana.
                - Você é um anjo, Lu.
                As duas se abraçaram.

                Júlia saiu da casa de Luciana, sentindo como se um peso fosse tirado de suas costas. Com a amiga, a filha estaria segura.

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