Segunda-feira, 12 de setembro, 19h. O telefone tocou.
- Alô.
- Alô, Júlia?
- É ela
mesma.
- Júlia, aqui
é o padre Vicente.
- Padre Vicente, que bom que o senhor
ligou. A Tassi e eu ficamos preocupadas. O senhor está bem?
- Oh, não,
por favor, não se preocupem. Eu estou ótimo.
- Que bom,
padre. Vou falar para a Tassi que o senhor está bem.
- Obrigado.
Júlia, eu liguei porque preciso de algumas informações.
- Claro,
padre, pode perguntar.
- Antes de
mais nada, quero que saiba que não lhe dei um retorno antes por falta de tempo.
Sábado pela manhã, estive em sua casa. À tarde, houve atividades na igreja e, à
noite, missa. Domingo passei o dia todo em função da igreja.
“Hoje pela
manhã, li a história escrita no caderninho. À tarde, escutei algumas vezes a
gravação que fizemos no sábado. A sensação que tive em sua casa é que tudo
parecia interligado. Mas, sinceramente, não consegui estabelecer conexão entre
uma coisa e outra. Então, fui visitar a casa da esquina com a Guilherme Schell.
Mas só havia uma placa de venda, fixada na área.
“De acordo
com sua história, você e seu marido estiveram na casa não faz muito tempo.
Liguei para a imobiliária e perguntei há quanto tempo a casa estava para ser
vendida. Eles me disseram que já faz um mês que a colocaram à venda.”
- Mas isso
não pode ser verdade, padre, não faz dez dias que estivemos lá.
- O quê? Não
pode ser...
- É sério.
Pode perguntar ao meu marido, ele confirmará o que estou dizendo.
- Não, tudo
bem, eu acredito em você. Bem, continuando a minha história, eu perguntei à
moça da imobiliária o nome das pessoas que foram as últimas a morarem na casa.
Ela respondeu-me que não poderia me dar essa informação, pois feria a ética
profissional. Então eu lhe disse que era o padre Vicente, da paróquia São Luís,
e que estava investigando um caso para ajudar uma família. Ela poderia ligar de
volta para a igreja, se quisesse confirmar. Aí a garota disse que estava tudo
bem, que iria me dar os nomes dos últimos proprietários. Fez uma rápida
pesquisa no computador e logo falou que os últimos proprietários foram Roberto
e Daniela.
- Mas isso
não é possível, padre...
- Eu já ia
chegar nesse ponto. Como havia lhe dito antes, não consegui estabelecer uma
conexão entre as coisas, embora tudo parecesse estar relacionado. Faltavam
algumas peças do quebra-cabeça e eu não imaginava quais seriam. Ouvi as
gravações repetidas vezes, até que a ficha caiu: ao contar sobre a visita na
casa da esquina, você não falou os nomes das pessoas que os receberam. Também
não disse o nome da garota grávida que os visitou naquela noite chuvosa.
- Não falei?
Que estranho, eu achei que tivesse lhe dito...
- Você não
falou. Tenho aqui a gravação para provar. Lembra quando lhe disse para não
omitir informações? Falei isso porque qualquer coisa, por mais banal que possa
parecer, pode ser muito útil. Mas o estranho é que você pensou em falar, mas
não falou. E quanto a mim, posso afirmar que também foi estranho. Minucioso
como sou, como pude deixar escapar essas informações? Eu não teria me dado
conta de sua importância, se não tivesse escutado a gravação várias vezes. Júlia,
ainda não posso afirmar nada, é só um palpite, mas acho que esses nomes serão
de grande ajuda para as minhas investigações.
- Tudo bem,
padre. Os nomes dos velhinhos que nos atenderam eram Genésio e Joana. E a
garota que veio nos visitar se chamava...
-... Rosa.
Droga, tudo faz sentido agora.
- O que foi,
padre, o que o senhor descobriu?
- Eu estava
certo. Eram essas as informações que faltavam. O que quer que exista nesta casa
confundiu você, enquanto falava, e impediu-me de perceber a importância de
saber os nomes dessas pessoas. Essa coisa não queria me ver montar o quadro
todo, mas acredito que tive sucesso.
- O senhor
vai solucionar nosso problema?
- Você não
entendeu, Júlia. É um passo de cada vez. Primeiro temos que entender o
problema. Somente aí, teremos condições de lidar com a situação.
- Tudo bem,
eu entendi. Mas no que lhe ajudou saber esses nomes?
- Já explico.
Antes, preciso saber algumas coisas. Quando estava em sua casa, reparei que a
Tassiane usava um colar, uma pulseira e um anel. Quando ela ganhou tais
objetos?
- A pulseira
foi dada pela Alice, a irmã mais nova. Umas duas ou três semanas atrás, Alice a
achou entre os móveis do porão e deu para a irmã, para se desculpar por uma
discussão que tiveram. Alice e Tassiane foram novamente ao porão. Dessa vez,
foi a Tassi quem encontrou os outros objetos de prata: o colar e o anel.
- Entendo.
Você havia dito que Tassiane completara quatorze anos na sexta-feira. Quantas
pessoas compareceram à festa?
- Uma centena
ou mais, padre. Não sei dizer a quantidade exata.
Júlia ouviu o
padre suspirar.
- Olha, o que
vou lhe pedir pode ser meio complicado, mas asseguro-lhe que é importante para
as minhas pesquisas.
- Claro,
padre, peça o que quiser.
- Bem, eu
preciso da lista completa de todos os presentes que a Tassiane ganhou.
Júlia riu.
- Júlia? Eu
não entendo, por que está rindo?
- Você falou
como se fosse algo muito difícil para eu fazer, mas lhe dou a resposta agora:
Tassi ganhou um vestido de mim e um violão do pai. Ou seja, dois presentes.
Júlia pensou
um pouco, enquanto o padre tomava nota dos presentes.
- Espere,
padre, eu diria que Tassi ganhou mais um presente.
- Estou
ouvindo.
- Ela estava
muito feliz, dizendo que o garoto mais bonito da escola lhe fora apresentado na
festa e a convidara para sair.
- Júlia,
responda-me uma coisa: você leu a biografia de Rosa?
- É claro que
sim, padre, eu...
Júlia parou
de falar. Graças à conversa com o padre Vicente, teve uma súbita revelação. Mas
como não havia percebido antes? Tudo começou com o atropelamento da galinha,
pelo marido, na calcada de sua residência – Rosa foi batizada com sangue de
galinha. A partir daquele dia, coisas estranhas começaram a acontecer. A
pulseira que Tassi ganhara de Maria Alice, o colar e o anel encontrados pela
filha mais velha no porão, o vestido e o violão ganhados como presentes de
aniversário... Foram justamente esses os presentes que Rosa mencionara em seu
diário. Agora ficava fácil entender o interesse do padre em querer saber o nome
da garota grávida que os visitara e o nome de seus pais; entender o interesse
do padre nos presentes que a filha ganhou. Sim, agora tudo estava claro: o que
aconteceu com Rosa, estava acontecendo com Tassiane.
- Padre, o
que vamos fazer?
- Júlia, você
entendeu o perigo que Tassiane está enfrentando. Preste atenção: ela não pode
ficar nem mais uma noite nesta casa. Você deve levá-la a outro lugar o mais
rápido possível. Agora.
- Sim, o
senhor tem razão, padre. Quando ela estiver segura, telefonarei avisando.
- Ótimo.
Boa-noite, Júlia.
- Boa-noite,
padre. Obrigada.
21h30min.
Tocou o interfone de Luciana.
- Olá.
- Olá,
Luciana. Sou eu, a Júlia.
- Ah, claro.
Já vou destrancar o portão.
Júlia e
Tassiane se aproximavam da casa de Luciana, que se encontrava na área, junto à
porta de entrada.
- Obrigada
pela ajuda, Luciana – falou Júlia, abraçando a amiga.
- Imagina,
vai ser um prazer ficar com esta moça. Tudo bem, linda?
- Tudo,
Luciana. Obrigada.
- Chega de me
agradecer, tá? Como disse, será uma satisfação ficar com você. Entrem, meninas.
Júlia e a
filha acomodaram-se na sala. Luciana foi à cozinha e voltou com uma bandeja com
três xícaras de café.
- Quando você
me ligou, pedindo-me para deixar a Tassi alguns dias comigo, fiquei preocupada.
O que aconteceu?
- Você estava
certa, Lu. Alguma coisa está muito errada naquela casa.
A partir
daquele momento, Júlia desatou a falar. Contou sobre a visita de Rosa, seus
pais, a capa sobre sua sepultura, o caderninho que contava sobre sua biografia
e a valiosa ajuda do padre Vicente, que descobriu que as coisas sofridas um dia
por Rosa, repetiam-se agora na vida de Tassiane.
- Minha
nossa, Júlia, você sempre foi cética, mas agora está falando coisas que, para
mim, soam inacreditáveis.
- Você...
acha que eu estou inventando tudo isso?
- Não, Júlia,
eu não disse isso. Ocorre que a igreja católica e o espiritismo são duas
crenças completamente diferentes. Os católicos acreditam na existência dos
anjos caídos, ou seja, os demônios. Nós, os espíritas, acreditamos que o diabo
não existe. Os espíritos “demoníacos” que andam por aí são almas que se
tornaram malignas.
- Para mim,
são nomes diferentes para um mesmo ser. O que importa quem ou o que são? Ou de
onde vêm? Eles são espíritos e podem nos prejudicar.
- Em linhas
gerais, você até pode estar certa. Mas ainda não entendeu o que falei. Veja
bem, se os cristãos acreditam que o demônio pode engravidar alguém, nós, os
espíritas, julgamos impossível uma pessoa engravidar outra, se ela se encontrar
apenas em sua forma espiritual, isto é, desencarnada.
- Lu, eu
também não sei se isso é possível. Mas fico horrorizada só em pensar que tudo o
que aconteceu me leva a crer que o objetivo desse espírito, seja diabo, seja o
que for, é causar este dano em Tassi.
Antes que
Luciana começasse a defender sua teoria mais uma vez, Júlia prosseguiu:
- Quando
esteve em minha casa, você falou que coisas horríveis haviam acontecido no
porão. Ao subir a escada, disse que a pior coisa tinha ocorrido no quarto da
Tassi. Você pode descrever o que viu?
Luciana
empalideceu. A visão que tivera naquele quarto ainda a atormentava.
- Vi uma
adolescente, que devia estar com uns seis ou sete meses de gravidez. Ela estava
deitada na cama. De repente, esfaqueou a própria barriga repetidas vezes. A
criança em seu ventre deu um grito pavoroso. Um belo rapaz apareceu. Ao ver a
menina e a criança mortas, soltou um grito tão forte que os vidros das janelas
se despedaçaram. Em seguida, ele deu um soco na parede e um bloco de tijolos
caiu, deixando a parede semidestruída. Não sei dizer a você o que isso
significa.
Júlia e Tassiane se entreolharam. Lembravam-se bem do
estado em que a casa se encontrava, antes de ser reformada.
- E o porão?
– perguntou Júlia.
- O que tem o
porão?
- Você disse
que coisas ruins aconteceram ali também.
Mas eu não
estive no porão, por isso não vi nada. Apenas senti uma coisa ruim ao olhar na
direção da porta do porão.
- Mas você
não conhecia a casa. Como sabia que aquela porta dava acesso ao porão?
- Eu apenas
sabia. Vocês vão sair da casa?
- Eu bem que
gostaria. Tassi, então, nem se fala. Mas o meu marido pretende ficar lá o resto
da vida, pelo jeito.
- Mas, Júlia,
você mesma contou que a visita da Rosa terminou com o ceticismo de seu marido.
- É, eu
achei, na ocasião, que tinha terminado. Mas o fato é que, desde que adquirimos
a propriedade, o ceticismo do meu marido vai e vem. Rodrigues reformou a casa
sozinho porque nenhum pedreiro queria o serviço. Achou isso muito estranho, mas
logo imaginou que todos os que contatara estavam com suas agendas lotadas.
Depois de acharmos a capa na sepultura de Rosa, falou que nenhum gasparzinho
lhe correria de sua própria casa. Dias depois, teorizou que isso foi um plano
engenhoso para fazer com que vendêssemos a casa pelo menor preço possível. Fiquei
quase uma hora tentando convencê-lo a deixar que Tassi ficasse com você por
alguns dias. Ele disse que isso só pioraria mais a situação porque você é
maluca.
Júlia
suspirou, frustrada.
- Lu, as
meninas e eu encontramos objetos nos móveis do porão. O detalhe é que, antes
que Rodrigues os colocasse no porão, revistou um por um e não encontrou nada em
nenhum daqueles móveis. Quando lhe pedi uma explicação científica para isso,
ele me disse que talvez estivesse cansado demais para perceber alguma coisa naqueles
móveis.
“Minha
esperança agora é o padre Vicente. Por falar nisso, eu poderia usar o telefone?
Esqueci o celular e prometi ao padre que o informaria quando a Tassi estivesse
em segurança.”
- Claro,
Júlia, não precisa nem pedir. Use o fixo. Esta extensão não está funcionando.
Use o do meu quarto. Não te ofereço o celular porque ele está em manutenção.
- Obrigada,
Lu...
- Momentos
depois, Júlia retornava. Tassi ria de um caso engraçado que Luciana contava.
Júlia sentiu-se bem. Tinha acertado em deixar Tassi com Luciana, pensou.
- Lu, eu não
quero ser chata, mas posso lhe dizer algo?
- Claro,
querida, o que quiser.
- Meu marido
me fez prometer que eu pediria a você para não falar em religião com a Tassi,
em momento algum.
- Sem
religião, sargento – falou Luciana, batendo continência.
Tassi começou
a rir e Júlia acompanhou a filha.
- Devo ir
agora, já está tarde.
Júlia
aproximou-se da filha.
- Amor, logo
o padre resolverá a nossa situação. Amo você – disse a mulher, abraçando a
filha.
Virou-se para
Luciana.
- Você é um
anjo, Lu.
As duas se
abraçaram.
Júlia saiu da
casa de Luciana, sentindo como se um peso fosse tirado de suas costas. Com a
amiga, a filha estaria segura.
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