O
capítulo três
— Olá, Renam, eu estava te esperando. Geralmente é você
quem chega primeiro. Aconteceu alguma coisa?
Recebemos, na sala de treinamento,
mais uma visita do rei. Fiquei surpreso, Naêmia, muito surpreso quando ele
apareceu em nosso ambiente mais uma vez, para falar sobre traições e passeios
noturnos.
O jovem guerreiro fez um breve momento de silêncio.
Naêmia não se conteve:
— O que ele queria, Renam? O que ele disse?
— Bem, num primeiro momento apenas relembrou-nos sobre a
última conversa que tivera conosco. Ele disse que não estava mais disposto a
permitir investigações noturnas traiçoeiras, de modo que puniria severamente
alguém acusado desse tipo de atividade. Em seguida, veio a surpresa: fez um
sinal para um dos seguranças que estava próximo à parede. O homem encaminhou-se
para a porta, abriu-a e conduziu um rapaz acorrentado, completamente vestido de
preto. Até mesmo o seu rosto estava coberto, exatamente como eu, você e Joshua
quando saímos em missão.
— Renam, não vá me dizer que … — falou a frase sem
terminar, com a mão direita no rosto.
— Não, não se preocupe. Não era Joshua. No começo, também
imaginei que fosse. Mas logo o segurança retirou o capuz do preso e vi que era
alguém totalmente desconhecido.
— Então estávamos certos quando imaginamos que havia
outros espiões no castelo.
— Sim, Naêmia, nossas suspeitas se confirmaram. Não faço idéia
de que tipo de missão aquele rapaz executava por aqui, mas, olhando pelo lado
positivo da situação, será ainda mais fácil para nós quando voltarmos as nossas
investigações noturnas.
— Por que você acha isso, Renam? O rei, com certeza, deve
saber que há mais espiões no castelo.
— Eu também pensaria assim se não estivesse lá. Você
teria uma opinião diferente se visse o rei se gabar: “Eu tinha avisado vocês
que não seria tolerante com traições. Este homem agora é meu prisioneiro e
arrancarei dele as informações que tiver. Eu lhes preveni que acabaria com os
passeios noturnos”.
Naêmia soltou uma leve risada pela imitação perfeita de
Renam.
— Tudo bem, você me convenceu. Se acha que a segurança
vai relaxar, eu acredito. Espero que esteja certo, Renam.
— Não esqueça, Naêmia, que ainda não estamos na metade do
livro. Depois teremos que trocar com Joshua pelo mapa e estudá-lo. Calculo que
teremos mais uns sete dias.
— Como nos sete dias seguintes não seremos avistados
transitando pelo castelo na hora de dormir, é praticamente certo que o rei
imagine tratar-se de um único espião.
— É isso aí. Como pode ver, meu raciocínio tem
fundamento.
Renam sentou-se ao lado de Naêmia e começaram a leitura
do terceiro capítulo da biografia do rei. Naquele capítulo, Julian comentava
sobre a época em que atingira a maioridade:
“Eu estava com
dezoito verões e era um guerreiro respeitado. Partira do reino em minha
primeira missão, na companhia de diversos monges que formavam um grupo
conhecido como Mover (Monges Vermelhos). Possuíam este nome porque eram
extremamente violentos; meter-se com eles era encarar a morte. Mas o fato é que
constituíam um grupo pequeno, pois a grande maioria dos monges apenas lutaria
se não tivesse outra escolha. Embora o artista marcial aprendesse técnicas de
combate impressionantes, o ensino técnico evocava a sabedoria de Kai-Nan, o pai
das artes marciais. Este homem, venerado como o maior guerreiro de todos os
tempos do planeta Kendora, era um pacifista. Prometeu ensinar seus
conhecimentos de combate apenas às pessoas que juravam empregá-los em defesa,
não em matança. Verões após sua morte, sua filosofia de vida tornara-se leis
sagradas para os guerreiros. Ao menos para os guerreiros que não fossem
criminosos sem escrúpulos, capazes de matar sem piedade.
Os Monges Vermelhos empreenderam uma viagem a vários
reinos do norte, numa desesperada tentativa de descobrir a localização da
lendária Ametista Mágica e roubá-la, conforme lhes pediram os reis, que já
possuíam o Livro Negro e a Armadura de Prata. Os meus pais e meus avós
desejavam unir os três elementos e obter o guerreiro invencível, para poderem
terminar com os terríveis crimes que ocorriam na cidade. Como o reino era
enorme em extensão territorial, com medidas aproximadas de sessenta mil passos
de largura por duzentos e oitenta mil passos de comprimento e população de
trinta milhões de habitantes, o índice de roubos e assassinatos crescia
assustadoramente. A situação de Damaris era praticamente incontrolável, nem
mesmo todos os guardas dos reis poderiam fazer frente à quantidade absurda de
organizações criminosas e bandidos que operavam sozinhos. A única saída que
encontraram foi apostar na lenda do guerreiro invencível. Uma vez unidos todos
os elementos da mais terrível história do planeta, teriam o poder de erradicar
o mal que ameaçava o seu Império há tanto tempo.
Embora jamais
tivesse sido escrita, a história foi transmitida oralmente por milhares de
gerações. Por esse motivo, apresentava várias versões, mas sua essência era a
mesma:
‘Há muitos verões, vivia, nas terras do
norte, um monge-bruxo que queria tornar-se mestre nas artes marciais. Era um
feiticeiro excepcional, mas nas artes marciais deixava a desejar. Viajou para
os mais distantes lugares, tornando-se discípulo de famosos lutadores. Porém,
nunca passara de um monge medíocre. Percebendo que não possuía condições de se
tornar mestre, mesmo treinando da maneira como fazia, decidiu apelar para a
feitiçaria, numa tentativa de aumentar seus talentos marciais. Após pesquisar
muito, não descobriu um único feitiço que pudesse realizar tal feito.
Partiu
em viagem pelos grandes reinos do mundo, conversou com poderosos bruxos e não
descobriu absolutamente nada do que precisava. Chegou à conclusão que o tal
feitiço que tanto procurava simplesmente não existia.
Certo dia, estava
atravessando uma floresta para chegar ao reino de Ayume. Em determinado
momento, sentiu muita sede e resolveu desviar o caminho para beber a água de um
lago, vertente ou rio que pudesse encontrar ali. Após avançar algumas centenas
de passos numa região inexplorada da floresta, chegou num açude. Saciada a
sede, sentou-se sob uma árvore para descansar, pois viajara grande parte do
dia. Dormiu durante um curto espaço de tempo, porém suficiente para recuperar
suas forças. Sentiu fome. Levantou-se e logo avistou um coelho. O animal também
o viu e, assustado, correu para um lado que afastava ainda mais o monge de seu
caminho. Mas o guerreiro perseguiu o animal, que sumiu entre arbustos. O monge
aproximou-se e, afastando a vegetação com as mãos, emitiu uma exclamação de
surpresa.
O
buraco que avistara no chão, logo após os arbustos, só poderia ter sido
construído por mãos humanas, considerando que era um quadrado perfeito. Em seu
interior, projetava-se uma escada cujo final não era possível divisar. Sentindo
o impulso de descobrir que mistério era aquele que se colocava em seu caminho,
sem vacilar, começou a descer a enorme escadaria. Ao final, chegara ao interior
de uma imensa caverna.
Se encontrar a
passagem escondida após os arbustos deixara o monge em estado de espanto, então
ao chegar à caverna ficou, no mínimo, perplexo. Graças às muitas tochas
espalhadas pela caverna, o monge – bruxo pôde deleitar-se com a visão que lhe
causava um impacto atordoante: descobrira uma cidade, uma cidade subterrânea.
Nunca lera ou ouvira falar de coisa semelhante e agora estava ali, diante de um
acontecimento fantástico. Durante um longo momento, apenas conseguiu observar o
que se estendia diante de seus olhos: a cidade era constituída de casas de
diversos tamanhos e alturas e todas pareciam circundar uma grande construção,
passando, a quem observasse, a impressão de que era o centro administrativo
daquele povoado.
Passado o momento
que o deixara em estado de choque, o monge – bruxo começou a caminhar em
direção à cidade, na tentativa de contatar as pessoas que deviam ali estar
morando. Mas após andar por algumas ruas, percebeu que estava sozinho. Os
habitantes daquele reino do interior da terra, fossem quem fossem, haviam
abandonado o local. Mas qual seria o motivo? Acreditara que encontraria os
habitantes porque, logo na entrada, avistara as tochas. Mas então compreendeu
que foram feitas para queimar com fogo eterno.
Enquanto avançava
pelas ruas, observava que muitas casas estavam parcialmente destruídas; outras
tantas estavam totalmente destruídas; apenas algumas não apresentavam um único
vestígio de depredação. O que poderia ter ocorrido? As dúvidas do monge – bruxo
aumentavam a cada passo. Não imaginava que uma cidade pudesse ser construída no
interior da terra, para em seguida ser devastada e abandonada. Haveria uma
explicação lógica para isso? Conseguiria descobrir? Bem, realizaria suas
investigações, a começar pela grande casa central.
Finalmente
chegara na grande casa. A mansão era extremamente bela, digna de um rei. Na
parede da frente, em cada extremidade erguia-se uma torre, totalmente decorada
com pedras. A torre da direita terminava no formato de um trapézio, enquanto
que a da esquerda assemelhava-se, em seu topo, a uma elipse; próxima às torres,
havia duas janelas enormes, com uma saliência de concreto sob elas, que
permitia o plantio de flores para decorá-las; no centro, achava-se a larga e
bonita porta, decorada com o desenho de uma bela paisagem. O monge estava
fascinado diante de algo que jamais vira: uma casa com decorações externas. Não
precisou forçar a porta para entrar, pois estava destrancada.
O interior da
residência mostrou-se mais surpreendente ainda: uma ampla sala circular, com
belas poltronas, estantes, armários, pequenas mesas com cadeiras e um trono,
erguido sobre a parte mais elevada da sala. Três paredes estavam pintadas de
amarelo, mas a que ficava próxima ao trono apresentava cor verde-clara. O teto
era branco e fora colocado, como piso, lindas pedras roxas. O monge – bruxo
imaginou como o dono daquela mansão deveria se sentir, com uma residência tão
linda. Embriagado pela beleza do lugar, o aventureiro não chegou a notar, de
imediato, um livro que se encontrava sobre o trono. Quando o percebeu,
dedicou-lhe total atenção.
Sentou-se no
trono e apreciou a capa escura e bem elaborada do livro, cujo título era O
Diário de Anápoles. A princípio, achou estranho o nome da pessoa a quem o
diário se referia. Mas quando começou a ler, percebeu que não se tratava da
vida de uma pessoa, mas da história de uma cidade. O guerreiro permaneceu
sentado no trono por muito tempo, absorvendo cada palavra:
Tudo começou com três bruxos malignos, que abriram
um portal para um mundo onde habitavam criaturas demoníacas, conhecidas como
Nagarais. Queriam conhecer a fonte de força daqueles seres e ficaram vários
dias naquele mundo, dominado pelo terror. Viram seres humanos sendo
escravizados e espancados e deliciaram-se com a idéia de se apropriar do poder
dos Nagarais, retornar ao planeta Kendora e se tornarem os senhores do mundo.
Mas antes que alcançassem seus objetivos, foram descobertos pelos monstros.
Passaram a ser caçados e não tiveram alternativa a não ser voltar ao lugar onde
se encontrava o portal e atravessá-lo. Executaram um feitiço para selar o
portal, mas antes que se fechasse totalmente vários seres o haviam cruzado.
Em pouco tempo, aquela horda, constituída por
trinta e dois demônios, passou a devastar os reinos do mundo todo. A notícia se
espalhou pelos quatro cantos do planeta com velocidade jamais imaginada.
Cavaleiros percorriam os reinos do mundo, alertando-os para a chegada da horda.
Nosso reino recebeu a notícia várias luas cheias
antes da chegada dos monstros. Tivemos tempo para construir a cidade
subterrânea. Homens, mulheres, crianças, guerreiros e bruxos trabalharam com
afinco. Cerca de quinze dias antes da chegada da horda, o povoado mudou-se para
a cidade subterrânea. Mas então percebemos que alguma coisa precisava ser
feita, do contrário só restaria a nossa cidade e jamais poderíamos sair do
interior da terra. Os bruxos e guerreiros se reuniram e, deste encontro, surgiu
uma grande idéia: criar o guerreiro invencível. Os bruxos tiveram que estudar
as Artes das Trevas, que resultou no livro O Tomo Negro. O livro descrevia
poderosos feitiços para encantar uma armadura e uma pedra, bastando unir ambas
em um ritual descrito no próprio livro, para que o guerreiro que vestisse a
armadura se tornasse invencível. Enquanto os bruxos trabalhavam nos terríveis
feitiços que iriam conferir grandes poderes à pedra, os ferreiros produziram a
Armadura de Prata. Ao finalizar o encantamento com a pedra — coisa que precisou
de vários dias —, dedicaram-se a executar diversos rituais com a armadura.
Nesse meio tempo, os monges lutavam entre si para saber quem era o mais
habilidoso e, portanto, o que deveria utilizar a armadura.
Finalmente a pedra e a armadura estavam prontas e o
monge escolhido. Todas as pessoas do reino se reuniram para assistir a última
etapa da criação do guerreiro mais poderoso do mundo. Bastaria agora um pequeno
feitiço para unir o guerreiro, a armadura e a pedra. O monge vestiu a armadura
e esperou um bruxo encaixar a pedra no orifício do peito. E assim foi feito. A
multidão deu vivas e aplaudiu, enquanto o guerreiro se encaminhava para o mundo
exterior, a fim de erradicar o mal do planeta. Somente retornaria quando
tivesse concluído sua missão.
Várias luas cheias se passaram e o guerreiro
voltou. Mas estava totalmente diferente, parecendo movido a ódio. Exigiu tornar-se
o rei do povoado. As pessoas reagiram e uma parte do reino foi destruída. Por
fim, o guerreiro exigiu que todos nós saíssemos daquele reino, pois queria nos
governar lá fora. Levou-nos à antiga cidade que habitávamos. Estava maior, com
muito mais casas e havia diversas pessoas. Fomos severamente escravizados e
espancados por aquele homem cruel. Isso durou até que ele morresse de velhice.
Eu também estava velho, mas tive forças para terminar o meu diário e deixá-lo
num local onde alguém pudesse talvez um dia achá-lo e alertar as pessoas sobre
os perigos de unir a Ametista Mágica, a Armadura de Prata e o Tomo Negro. Estes
três objetos deixamos sepultados nesta casa, acreditando que, a julgar pela
localização de nossa cidade, jamais serão encontrados.
O guerreiro levantou-se do trono, pensativo,
imaginando que estava muito próximo de seu objetivo. Mas estava cansado. Assim,
procurou um quarto para que pudesse dormir. Ao se acordar, estava com muita
fome e caçou um pequeno animal, que se tornou a primeira refeição do dia. Em
seguida, voltou à enorme residência e começou a procurar a Armadura de Prata, a
Ametista Mágica e o Tomo Negro em toda a mansão, até que finalmente os
encontrou. Vestiu a armadura e realizou o feitiço descrito no livro. Mais uma
vez a história do guerreiro invencível se repetiu. Enlouquecido pelo poder,
dominou e escravizou todos os reinos do mundo. Ao morrer, vários bruxos se
reuniram e lançaram poderosos feitiços para separar a pedra da armadura. O Tomo
Negro permaneceu no reino onde o tirano falecera, enquanto que a Armadura de
Prata e a Ametista Mágica foram mandadas para reinos longínquos, onde
permaneceriam fortemente guardadas pelos reis daquelas cidades.’”
Renam e Naêmia tinham chegado ao final de mais um
capítulo. O monge fechou o livro.
— Mais umas duas noites de leitura e terminaremos a
biografia do rei, Naêmia.
— Sim — respondeu a mulher, pensativa. — Esta história é
tão inacreditável, não é?
— Por quê?
— Sempre achei que não passava de uma lenda, o tal do
guerreiro invencível. Apenas fiquei sabendo da pedra mágica no dia posterior ao
seu sumiço. Até então, nem imaginava que realmente existia.
—
Bem, não é apenas uma lenda, como podemos ver. Se falharmos em
nossa missão, poderemos
apenas esperar pelo pior. Agora precisamos descansar. Boa-noite, Naêmia.
—
Boa-noite, Renam – respondeu a mulher, acomodando-se na cama.
Naêmia dormiu imediatamente, mas o jovem guerreiro estava
sem sono. A história era realmente fantástica, como dissera Naêmia, mas por que
motivo ela imaginava que tudo não passava de uma lenda? O monge recordava a
preocupação de Naêmia quando ele e Joshua foram informados pelo rei sobre o
sumiço da Ametista Mágica: “O resgate da gema deverá preceder quaisquer
atividades de busca”. Como poderia estar tão preocupada para encontrar algo que
nem chegou a ver e considerava apenas um mito?
Renam chegou à conclusão de que estava se tornando cada
vez mais obcecado e frustrado com a missão. Já se passara um bom tempo desde
que chegaram naquele reino e tudo o que encontraram foi um mapa do castelo e a
biografia do rei. E se ambos os objetos não fornecessem todas as respostas que
procurava?
Toda
a preocupação não pôde evitar o sono que, pouco a pouco, foi se apoderando
dele. Logo também dormiu.
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