domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capítulo 12

O capítulo três

            — Olá, Renam, eu estava te esperando. Geralmente é você quem chega primeiro. Aconteceu alguma coisa?
            Recebemos, na sala de treinamento, mais uma visita do rei. Fiquei surpreso, Naêmia, muito surpreso quando ele apareceu em nosso ambiente mais uma vez, para falar sobre traições e passeios noturnos.
            O jovem guerreiro fez um breve momento de silêncio. Naêmia não se conteve:
            — O que ele queria, Renam? O que ele disse?
            — Bem, num primeiro momento apenas relembrou-nos sobre a última conversa que tivera conosco. Ele disse que não estava mais disposto a permitir investigações noturnas traiçoeiras, de modo que puniria severamente alguém acusado desse tipo de atividade. Em seguida, veio a surpresa: fez um sinal para um dos seguranças que estava próximo à parede. O homem encaminhou-se para a porta, abriu-a e conduziu um rapaz acorrentado, completamente vestido de preto. Até mesmo o seu rosto estava coberto, exatamente como eu, você e Joshua quando saímos em missão.
            — Renam, não vá me dizer que … — falou a frase sem terminar, com a mão direita no rosto.
            — Não, não se preocupe. Não era Joshua. No começo, também imaginei que fosse. Mas logo o segurança retirou o capuz do preso e vi que era alguém totalmente desconhecido.
            — Então estávamos certos quando imaginamos que havia outros espiões no castelo.
            — Sim, Naêmia, nossas suspeitas se confirmaram. Não faço idéia de que tipo de missão aquele rapaz executava por aqui, mas, olhando pelo lado positivo da situação, será ainda mais fácil para nós quando voltarmos as nossas investigações noturnas.
            — Por que você acha isso, Renam? O rei, com certeza, deve saber que há mais espiões no castelo.
            — Eu também pensaria assim se não estivesse lá. Você teria uma opinião diferente se visse o rei se gabar: “Eu tinha avisado vocês que não seria tolerante com traições. Este homem agora é meu prisioneiro e arrancarei dele as informações que tiver. Eu lhes preveni que acabaria com os passeios noturnos”.
            Naêmia soltou uma leve risada pela imitação perfeita de Renam.
            — Tudo bem, você me convenceu. Se acha que a segurança vai relaxar, eu acredito. Espero que esteja certo, Renam.
            — Não esqueça, Naêmia, que ainda não estamos na metade do livro. Depois teremos que trocar com Joshua pelo mapa e estudá-lo. Calculo que teremos mais uns sete dias.
            — Como nos sete dias seguintes não seremos avistados transitando pelo castelo na hora de dormir, é praticamente certo que o rei imagine tratar-se de um único espião.
            — É isso aí. Como pode ver, meu raciocínio tem fundamento.
            Renam sentou-se ao lado de Naêmia e começaram a leitura do terceiro capítulo da biografia do rei. Naquele capítulo, Julian comentava sobre a época em que atingira a maioridade:
“Eu estava com dezoito verões e era um guerreiro respeitado. Partira do reino em minha primeira missão, na companhia de diversos monges que formavam um grupo conhecido como Mover (Monges Vermelhos). Possuíam este nome porque eram extremamente violentos; meter-se com eles era encarar a morte. Mas o fato é que constituíam um grupo pequeno, pois a grande maioria dos monges apenas lutaria se não tivesse outra escolha. Embora o artista marcial aprendesse técnicas de combate impressionantes, o ensino técnico evocava a sabedoria de Kai-Nan, o pai das artes marciais. Este homem, venerado como o maior guerreiro de todos os tempos do planeta Kendora, era um pacifista. Prometeu ensinar seus conhecimentos de combate apenas às pessoas que juravam empregá-los em defesa, não em matança. Verões após sua morte, sua filosofia de vida tornara-se leis sagradas para os guerreiros. Ao menos para os guerreiros que não fossem criminosos sem escrúpulos, capazes de matar sem piedade.
            Os Monges Vermelhos empreenderam uma viagem a vários reinos do norte, numa desesperada tentativa de descobrir a localização da lendária Ametista Mágica e roubá-la, conforme lhes pediram os reis, que já possuíam o Livro Negro e a Armadura de Prata. Os meus pais e meus avós desejavam unir os três elementos e obter o guerreiro invencível, para poderem terminar com os terríveis crimes que ocorriam na cidade. Como o reino era enorme em extensão territorial, com medidas aproximadas de sessenta mil passos de largura por duzentos e oitenta mil passos de comprimento e população de trinta milhões de habitantes, o índice de roubos e assassinatos crescia assustadoramente. A situação de Damaris era praticamente incontrolável, nem mesmo todos os guardas dos reis poderiam fazer frente à quantidade absurda de organizações criminosas e bandidos que operavam sozinhos. A única saída que encontraram foi apostar na lenda do guerreiro invencível. Uma vez unidos todos os elementos da mais terrível história do planeta, teriam o poder de erradicar o mal que ameaçava o seu Império há tanto tempo.
Embora jamais tivesse sido escrita, a história foi transmitida oralmente por milhares de gerações. Por esse motivo, apresentava várias versões, mas sua essência era a mesma:
            ‘Há muitos verões, vivia, nas terras do norte, um monge-bruxo que queria tornar-se mestre nas artes marciais. Era um feiticeiro excepcional, mas nas artes marciais deixava a desejar. Viajou para os mais distantes lugares, tornando-se discípulo de famosos lutadores. Porém, nunca passara de um monge medíocre. Percebendo que não possuía condições de se tornar mestre, mesmo treinando da maneira como fazia, decidiu apelar para a feitiçaria, numa tentativa de aumentar seus talentos marciais. Após pesquisar muito, não descobriu um único feitiço que pudesse realizar tal feito.
            Partiu em viagem pelos grandes reinos do mundo, conversou com poderosos bruxos e não descobriu absolutamente nada do que precisava. Chegou à conclusão que o tal feitiço que tanto procurava simplesmente não existia.
            Certo dia, estava atravessando uma floresta para chegar ao reino de Ayume. Em determinado momento, sentiu muita sede e resolveu desviar o caminho para beber a água de um lago, vertente ou rio que pudesse encontrar ali. Após avançar algumas centenas de passos numa região inexplorada da floresta, chegou num açude. Saciada a sede, sentou-se sob uma árvore para descansar, pois viajara grande parte do dia. Dormiu durante um curto espaço de tempo, porém suficiente para recuperar suas forças. Sentiu fome. Levantou-se e logo avistou um coelho. O animal também o viu e, assustado, correu para um lado que afastava ainda mais o monge de seu caminho. Mas o guerreiro perseguiu o animal, que sumiu entre arbustos. O monge aproximou-se e, afastando a vegetação com as mãos, emitiu uma exclamação de surpresa.
            O buraco que avistara no chão, logo após os arbustos, só poderia ter sido construído por mãos humanas, considerando que era um quadrado perfeito. Em seu interior, projetava-se uma escada cujo final não era possível divisar. Sentindo o impulso de descobrir que mistério era aquele que se colocava em seu caminho, sem vacilar, começou a descer a enorme escadaria. Ao final, chegara ao interior de uma imensa caverna.
            Se encontrar a passagem escondida após os arbustos deixara o monge em estado de espanto, então ao chegar à caverna ficou, no mínimo, perplexo. Graças às muitas tochas espalhadas pela caverna, o monge – bruxo pôde deleitar-se com a visão que lhe causava um impacto atordoante: descobrira uma cidade, uma cidade subterrânea. Nunca lera ou ouvira falar de coisa semelhante e agora estava ali, diante de um acontecimento fantástico. Durante um longo momento, apenas conseguiu observar o que se estendia diante de seus olhos: a cidade era constituída de casas de diversos tamanhos e alturas e todas pareciam circundar uma grande construção, passando, a quem observasse, a impressão de que era o centro administrativo daquele povoado.
            Passado o momento que o deixara em estado de choque, o monge – bruxo começou a caminhar em direção à cidade, na tentativa de contatar as pessoas que deviam ali estar morando. Mas após andar por algumas ruas, percebeu que estava sozinho. Os habitantes daquele reino do interior da terra, fossem quem fossem, haviam abandonado o local. Mas qual seria o motivo? Acreditara que encontraria os habitantes porque, logo na entrada, avistara as tochas. Mas então compreendeu que foram feitas para queimar com fogo eterno.
            Enquanto avançava pelas ruas, observava que muitas casas estavam parcialmente destruídas; outras tantas estavam totalmente destruídas; apenas algumas não apresentavam um único vestígio de depredação. O que poderia ter ocorrido? As dúvidas do monge – bruxo aumentavam a cada passo. Não imaginava que uma cidade pudesse ser construída no interior da terra, para em seguida ser devastada e abandonada. Haveria uma explicação lógica para isso? Conseguiria descobrir? Bem, realizaria suas investigações, a começar pela grande casa central.
            Finalmente chegara na grande casa. A mansão era extremamente bela, digna de um rei. Na parede da frente, em cada extremidade erguia-se uma torre, totalmente decorada com pedras. A torre da direita terminava no formato de um trapézio, enquanto que a da esquerda assemelhava-se, em seu topo, a uma elipse; próxima às torres, havia duas janelas enormes, com uma saliência de concreto sob elas, que permitia o plantio de flores para decorá-las; no centro, achava-se a larga e bonita porta, decorada com o desenho de uma bela paisagem. O monge estava fascinado diante de algo que jamais vira: uma casa com decorações externas. Não precisou forçar a porta para entrar, pois estava destrancada.
            O interior da residência mostrou-se mais surpreendente ainda: uma ampla sala circular, com belas poltronas, estantes, armários, pequenas mesas com cadeiras e um trono, erguido sobre a parte mais elevada da sala. Três paredes estavam pintadas de amarelo, mas a que ficava próxima ao trono apresentava cor verde-clara. O teto era branco e fora colocado, como piso, lindas pedras roxas. O monge – bruxo imaginou como o dono daquela mansão deveria se sentir, com uma residência tão linda. Embriagado pela beleza do lugar, o aventureiro não chegou a notar, de imediato, um livro que se encontrava sobre o trono. Quando o percebeu, dedicou-lhe total atenção.
            Sentou-se no trono e apreciou a capa escura e bem elaborada do livro, cujo título era O Diário de Anápoles. A princípio, achou estranho o nome da pessoa a quem o diário se referia. Mas quando começou a ler, percebeu que não se tratava da vida de uma pessoa, mas da história de uma cidade. O guerreiro permaneceu sentado no trono por muito tempo, absorvendo cada palavra:
Tudo começou com três bruxos malignos, que abriram um portal para um mundo onde habitavam criaturas demoníacas, conhecidas como Nagarais. Queriam conhecer a fonte de força daqueles seres e ficaram vários dias naquele mundo, dominado pelo terror. Viram seres humanos sendo escravizados e espancados e deliciaram-se com a idéia de se apropriar do poder dos Nagarais, retornar ao planeta Kendora e se tornarem os senhores do mundo. Mas antes que alcançassem seus objetivos, foram descobertos pelos monstros. Passaram a ser caçados e não tiveram alternativa a não ser voltar ao lugar onde se encontrava o portal e atravessá-lo. Executaram um feitiço para selar o portal, mas antes que se fechasse totalmente vários seres o haviam cruzado.
Em pouco tempo, aquela horda, constituída por trinta e dois demônios, passou a devastar os reinos do mundo todo. A notícia se espalhou pelos quatro cantos do planeta com velocidade jamais imaginada. Cavaleiros percorriam os reinos do mundo, alertando-os para a chegada da horda.
Nosso reino recebeu a notícia várias luas cheias antes da chegada dos monstros. Tivemos tempo para construir a cidade subterrânea. Homens, mulheres, crianças, guerreiros e bruxos trabalharam com afinco. Cerca de quinze dias antes da chegada da horda, o povoado mudou-se para a cidade subterrânea. Mas então percebemos que alguma coisa precisava ser feita, do contrário só restaria a nossa cidade e jamais poderíamos sair do interior da terra. Os bruxos e guerreiros se reuniram e, deste encontro, surgiu uma grande idéia: criar o guerreiro invencível. Os bruxos tiveram que estudar as Artes das Trevas, que resultou no livro O Tomo Negro. O livro descrevia poderosos feitiços para encantar uma armadura e uma pedra, bastando unir ambas em um ritual descrito no próprio livro, para que o guerreiro que vestisse a armadura se tornasse invencível. Enquanto os bruxos trabalhavam nos terríveis feitiços que iriam conferir grandes poderes à pedra, os ferreiros produziram a Armadura de Prata. Ao finalizar o encantamento com a pedra — coisa que precisou de vários dias —, dedicaram-se a executar diversos rituais com a armadura. Nesse meio tempo, os monges lutavam entre si para saber quem era o mais habilidoso e, portanto, o que deveria utilizar a armadura.
Finalmente a pedra e a armadura estavam prontas e o monge escolhido. Todas as pessoas do reino se reuniram para assistir a última etapa da criação do guerreiro mais poderoso do mundo. Bastaria agora um pequeno feitiço para unir o guerreiro, a armadura e a pedra. O monge vestiu a armadura e esperou um bruxo encaixar a pedra no orifício do peito. E assim foi feito. A multidão deu vivas e aplaudiu, enquanto o guerreiro se encaminhava para o mundo exterior, a fim de erradicar o mal do planeta. Somente retornaria quando tivesse concluído sua missão.
Várias luas cheias se passaram e o guerreiro voltou. Mas estava totalmente diferente, parecendo movido a ódio. Exigiu tornar-se o rei do povoado. As pessoas reagiram e uma parte do reino foi destruída. Por fim, o guerreiro exigiu que todos nós saíssemos daquele reino, pois queria nos governar lá fora. Levou-nos à antiga cidade que habitávamos. Estava maior, com muito mais casas e havia diversas pessoas. Fomos severamente escravizados e espancados por aquele homem cruel. Isso durou até que ele morresse de velhice. Eu também estava velho, mas tive forças para terminar o meu diário e deixá-lo num local onde alguém pudesse talvez um dia achá-lo e alertar as pessoas sobre os perigos de unir a Ametista Mágica, a Armadura de Prata e o Tomo Negro. Estes três objetos deixamos sepultados nesta casa, acreditando que, a julgar pela localização de nossa cidade, jamais serão encontrados.
            O guerreiro levantou-se do trono, pensativo, imaginando que estava muito próximo de seu objetivo. Mas estava cansado. Assim, procurou um quarto para que pudesse dormir. Ao se acordar, estava com muita fome e caçou um pequeno animal, que se tornou a primeira refeição do dia. Em seguida, voltou à enorme residência e começou a procurar a Armadura de Prata, a Ametista Mágica e o Tomo Negro em toda a mansão, até que finalmente os encontrou. Vestiu a armadura e realizou o feitiço descrito no livro. Mais uma vez a história do guerreiro invencível se repetiu. Enlouquecido pelo poder, dominou e escravizou todos os reinos do mundo. Ao morrer, vários bruxos se reuniram e lançaram poderosos feitiços para separar a pedra da armadura. O Tomo Negro permaneceu no reino onde o tirano falecera, enquanto que a Armadura de Prata e a Ametista Mágica foram mandadas para reinos longínquos, onde permaneceriam fortemente guardadas pelos reis daquelas cidades.’”
            Renam e Naêmia tinham chegado ao final de mais um capítulo. O monge fechou o livro.
            — Mais umas duas noites de leitura e terminaremos a biografia do rei, Naêmia.
            — Sim — respondeu a mulher, pensativa. — Esta história é tão inacreditável, não é?
            — Por quê?
            — Sempre achei que não passava de uma lenda, o tal do guerreiro invencível. Apenas fiquei sabendo da pedra mágica no dia posterior ao seu sumiço. Até então, nem imaginava que realmente existia.
    Bem, não é apenas uma lenda, como podemos ver. Se falharmos em
nossa missão, poderemos apenas esperar pelo pior. Agora precisamos descansar. Boa-noite, Naêmia.
    Boa-noite, Renam – respondeu a mulher, acomodando-se na cama.
            Naêmia dormiu imediatamente, mas o jovem guerreiro estava sem sono. A história era realmente fantástica, como dissera Naêmia, mas por que motivo ela imaginava que tudo não passava de uma lenda? O monge recordava a preocupação de Naêmia quando ele e Joshua foram informados pelo rei sobre o sumiço da Ametista Mágica: “O resgate da gema deverá preceder quaisquer atividades de busca”. Como poderia estar tão preocupada para encontrar algo que nem chegou a ver e considerava apenas um mito?
            Renam chegou à conclusão de que estava se tornando cada vez mais obcecado e frustrado com a missão. Já se passara um bom tempo desde que chegaram naquele reino e tudo o que encontraram foi um mapa do castelo e a biografia do rei. E se ambos os objetos não fornecessem todas as respostas que procurava?

            Toda a preocupação não pôde evitar o sono que, pouco a pouco, foi se apoderando dele. Logo também dormiu.

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