domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capítulo 14

O último capítulo

            Renam estava sentado, como de costume, esperando Naêmia. Não demorou muito, a porta do quarto se abriu. Naêmia entrou, foi para o reservado trocar a roupa, sentou-se de seu lado e começaram a ler as últimas sessenta páginas da biografia do rei:
            “Um monge foi escolhido. Mas antes que vestisse a armadura, os bruxos do reino realizaram diversos feitiços nele para que ficasse protegido contra a Magia Negra nela contida, que poderia enlouquecer qualquer guerreiro. Por cinco dias, o monge poderia usá-la sem enlouquecer e se tornar um déspota cruel, como aconteceu com os que a vestiram em outras épocas. O guerreiro usaria o poder da armadura apenas para erradicar o mal das ruas do reino, aprisionando essas pessoas no espaço isolado da cidade.
            Ao colocar a armadura, o monge encaminhou-se imponentemente para o local que reunia os elementos da pior espécie: o Bairro dos Estranhos. Não havia, em toda a cidade, vila mais violenta, feia, suja e, portanto, horrível quanto aquele lugar. As pessoas eram violentas ao extremo; bastava um olhar levemente demorado, para iniciar uma discussão que resultasse em briga. As casas, ruas, muros e calçadas estavam depredados devido à violência das terríveis pessoas que infestavam o lugar. Além disso, a sujeira das ruas e calçadas atraíam animais como ratos, baratas, cobras e aranhas, que conferiam ao ambiente um aspecto horrendo.
As roupas utilizadas pelas pessoas naquele bairro eram simplesmente grotescas, o que não contribuía em nada para melhorar o visual daquela parte da cidade. Era comum a presença de grupos que se vestiam totalmente de preto, conhecidos como Treckers. Os Hitpunks, por sua vez, não demonstravam importância na cor das roupas, mas os penteados eram esquisitos ao extremo: cabelo raspado apenas no lado direito da cabeça – no lado esquerdo, o cabelo crescia até quase arrastar no chão; alguns usavam penteados em forma de ninho de ratos, não sendo incomum criarem suas mascotes na própria cabeça; além destes, havia também outros penteados que conferiam às pessoas que os usavam uma aparência bem animalesca. Os Ciberhops pouco ligavam para estilos de penteado ou cores de roupa; apenas se preocupavam em usar vestes rasgadas – pareciam maltrapilhos que ficam mendigando nas ruas, mas sua aparência enganava, pois eram “cidadãos” dos piores tipos. Já os Thanatos e os Mefistos não davam a mínima para a aparência, sua filosofia de vida consistia em comer apenas carne assada. Embora todos os grupos tivessem opiniões diferentes acerca de vestuário e hábitos alimentares, uma coisa possuíam em comum: eram terrivelmente violentos e cruéis. Além disso, eram tantos grupos diferentes e cada grupo possuía tantos integrantes, que o número total de criminosos ultrapassava, naquele bairro, a marca de trezentos mil.
O confronto foi violento. Em apenas um dia, o monge da armadura arrasou dezenas de quadrilhas, aprisionando cerca de nove mil pessoas. A notícia de que um monge, armado com apenas armadura e espada, estava atacando deliberadamente as mais poderosas famílias do crime organizado, espalhou-se com incrível velocidade. Naquele mesmo dia, os oitenta maiores chefões de quadrilha se reuniram para decidir o que fazer. Após uma longa discussão, decidiram organizar um ataque com duzentos mil homens, que foram derrotados no dia seguinte. Com a Armadura de Prata, o guerreiro não se tornava apenas invencível, mas também incansável. Percebendo sua derrota iminente, as grandes quadrilhas se desfizeram momentaneamente. A idéia era voltarem a se organizar, apenas quando o monge da Armadura de Prata não estivesse no reino.
            Mas nenhum criminoso conhecia a história da armadura. Nenhum deles sabia que o monge a usaria por apenas cinco dias. No terceiro dia, o monge apenas caminhava, exibindo seu traje de guerra, sem que ninguém tivesse a coragem de o desafiar.
            Sabendo que o monge dispunha de apenas mais dois dias, os reis elaboraram uma estratégia muito inteligente: solicitaram aos ferreiros do reino que fizessem uma réplica da Armadura de Prata. Esta seria diariamente usada pelo monge, como forma de continuar a intimidação. A idéia deu tão certo que logo as famílias de crime organizado formavam cooperativas, integrando-se no mercado de forma a contribuir com a economia da cidade, gerando empregos, produtos e impostos. Os crimes foram, pouco a pouco, tornando-se cada vez mais casos isolados, e eram fáceis de serem resolvidos pelo monge, uma vez que as atividades ilegais contavam agora com poucos participantes. E cada pequeno grupo de criminosos que derrotava e prendia, servia apenas para comprovar a fama de “invencível”, dando-lhe a oportunidade de continuar fazendo com que os bandidos restantes ainda se sentissem receosos. E o melhor era que os reis colocaram todos os seus guerreiros para ajudá-lo. Os monges e a guarda imperial atacavam e prendiam, com eficiência, os delinqüentes das organizações que ainda resistiam. Em poucos verões, quase todos os criminosos do reino estavam presos na área menor da cidade. Naquele lugar, havia apenas homens e mulheres terrivelmente cruéis e traiçoeiros; as “ovelhas negras” da cidade, agora encarceradas naquele local construído para elas.
            Renam e Naêmia haviam terminado a leitura do último capítulo. O monge fechou o livro e trocou olhares com sua companheira de aventuras.
            — Descobrimos mais alguma coisa — disse, por fim, o jovem guerreiro.
            — Tem razão. Agora pelo menos sabemos a finalidade da área isolada da cidade: trata-se de uma imensa prisão a céu aberto.
            — Sim. Este é um fato interessante, mas não é importante para a nossa missão. Eu esperava mais respostas, Naêmia. O que temos é muito pouco. Como encontraremos a Ametista Mágica com informações tão precárias? – perguntou, demonstrando irritação.
            A mulher pensou um pouco antes de responder.
            — Amanhã começaremos a estudar o mapa. Talvez ele nos dê alguma pista.
            — Você lembra o que Joshua falou ontem, a respeito do mapa? Ele não é completo, não mostra nem a metade do castelo.
            — Bem, após estudarmos o mapa talvez tenhamos que continuar nossa missão como fazíamos nos primeiros dias, quando explorávamos o castelo nas altas horas da noite. Mas agora haverá uma diferença, Renam, considerando que poderemos, com o mapa, planejar aonde ir.

            O monge refletiu um momento, antes de concordar com Naêmia. Em seguida, trataram de dormir. Ao menos foi que fez Naêmia, pois Renam não conseguia sentir sono. Falara de forma agressiva com Naêmia ao finalizarem a leitura da biografia e tinha consciência do fato. A razão que alegara para a sua ira era dispor de poucas informações para a missão de resgate da gema sagrada. Mas isso era apenas uma parte da verdade, uma pequena parte. O fato é que estava furioso não apenas com as respostas superficiais que encontrara até aqui, mas também consigo mesmo. Passara na rua por Karine, não fora cumprimentado e nem a cumprimentara. Sentia-se muito mal com isso. Agira de forma errada e este erro agora cobrava o seu preço, pesando-lhe na consciência.

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