Novas descobertas
Renam
e Naêmia já haviam jantado. Estavam no quarto, aguardando a chegada de Joshua.
A mulher estava sentada na cama, lendo um dos livros que havia em seu quarto.
Renam, por sua vez, caminhava de um lado para o outro, parecendo extremamente
ansioso para rever o amigo. Mas não precisaram esperar por muito tempo, pois
logo a porta do quarto se abriu.
—
Joshua, até que enfim. Está com o mapa?
—
É claro — falou o bruxo, com um sorriso. — Já estudei muito, conheço todos os
caminhos que descreve. Agora é todo de vocês.
—
Obrigado. Aqui está o livro.
—
É uma história interessante e bem contada, ou é uma literatura chata?
—
O livro é ótimo — respondeu a mulher. — A história não apenas é bacana, como
também é escrita de forma envolvente. Você vai gostar, Joshua.
O
bruxo sorriu mais uma vez, cumprimentou os colegas de aventura e encaminhou-se
para o seu quarto. Renam e Naêmia não perderam tempo; abriram totalmente o mapa
e o colocaram sobre sua cama de casal.
Mesmo
tendo-o aberto na sala que encontrara através da passagem secreta, Renam não
deixou de admirar mais uma vez o esforço de quem o desenhou. Com os olhos,
percorreu o corredor que conduzia a grande sala circular, onde encontrara as
dezoito portas, cada uma conduzindo a um caminho diferente. Lembrou-se de sua
primeira exploração, quando passou pela porta mais próxima à esquerda e entrara
em um corredor sinuoso, que conduzia a um grande depósito de móveis, cujo
mobiliário estava posicionado de maneira a criar corredores, formando um imenso
labirinto. Em seguida, observou a segunda porta, que possibilitava o acesso à
escadaria de dois mil degraus. No final, encontrara uma porta decorada com
estranhas imagens. Recordou-se da grande sala retangular decorada com uma
grande quantidade do mesmo tipo de quadro, mais um corredor e uma escada em
formato caracol, que desembocava na estranha galeria, onde encontrara todas
aquelas estátuas. Ao passar pela terceira porta, relembrava o jovem guerreiro,
encontrara uma pequena sala que consistia numa passagem secreta possibilitando
o acesso a outra.
O
monge começou a analisar os caminhos que as portas seguintes ofereciam. A
quarta porta conduzia a uma sala de armas. Fascinado, observava os pequenos
quadrados com medidas em escala, que deveriam representar estantes, bancadas,
mesas e armários para guardar aqueles artefatos marciais. A porta seguinte não
apresentava nenhuma espécie de corredor que conduzisse a uma determinada sala.
Isso porque a quinta porta era a da própria sala. Renam teve um pouco de
dificuldade para assimilar a informação que estava diante de seus olhos.
Realmente, pensou o monge ao observar o conteúdo da sala, a extravagância do
rei não conhecia limites. Não bastava possuir uma biblioteca com mais de dois
milhões de livros e uma outra biblioteca numa sala acessível através de uma
passagem secreta, sem contar todos os exemplares que colocara nos quartos de
todas as pessoas que moravam no castelo? Como se isso não fosse o suficiente, o
mapa agora mostrava a Renam uma sala que devia ter uma quantidade notável de
livros. O rei devia ter reunido escritos de muitas eras atrás, numa tentativa
de criar um Museu de Literatura.
As
portas seguintes mostraram-se tão reveladoras quanto as anteriores. O monge
simplesmente não entendia como a imaginação do rei podia ser tão fértil:
corredores de todos os tipos e tamanhos, salas de variados formatos, coleções
de objetos para todos os gostos… Só poderia haver, na opinião do jovem
guerreiro, duas explicações: o rei devia não apenas ser criativo como também
ambicioso ao extremo, ou era completamente louco. Um leve sorriso passou pelos
lábios de Renam quando pensou na terceira hipótese: o rei devia ser um homem
extremamente criativo, ambicioso e louco.
Nos
dois dias seguintes, Naêmia e Renam continuaram a estudar exaustivamente o mapa
do castelo. Já haviam memorizado grande parte da planta e calcularam que, com
apenas mais dois dias de análise, teriam condições de se lembrar de cada
corredor, sala, galeria ou passagem secreta. Era o terceiro dia de estudo
daquele mapa quando Naêmia tocou no assunto:
—
Embora o castelo seja imenso, Renam, e este mapa, embora incompleto também seja
enorme, logo conheceremos estes dois pavimentos como a palma da mão.
—
Sim, estive pensando nisso. Estamos nos dedicando ao máximo.
O
monge ia dizer mais alguma coisa, mas calou-se ao ouvir a porta do quarto se
movimentar. Era Joshua.
—
Boa noite, colegas.
—
Joshua, que prazer revê-lo. Não vá me dizer que já leu toda a biografia do rei
– falou Naêmia.
—
Não, mas em dois dias termino. Aí podemos nos reunir para trocar idéias e ver o
que fazer.
—
Em dois dias terminaremos de memorizar totalmente o mapa, Joshua, mas idéias
podemos trocar agora comentou Renam. — Está vendo este corredor? É o que conduz
ao quarto do rei. Ele pode ser acessado através da passagem secreta que
descobri por acidente. Observem este ponto.
Renam
apontou para uma parte do mapa onde havia um corredor que se dividia em três.
Um daqueles três caminhos conduziam aos aposentos do rei.
—
Com certeza, o quarto do rei deve ser fortemente vigiado, de modo que seria um
ótimo local para guardar coisas de valor.
—
Então você acredita que a pedra esteja lá, Renam? – indagou Joshua, curioso.
—
Não duvido que um dia estivesse, mas não acredito que ainda possa estar.
—
Onde quer chegar afinal, Renam? — perguntou Joshua, agora intrigado.
—
Quando descobri a passagem secreta, voltei em segurança para o quarto. O rei
não parece querer dividir com ninguém o conhecimento de tais passagens. Mas uma
vez que alguém descobriu uma que permite o acesso a seu quarto, imagino que o
nosso rei não considere mais o seu lugarzinho de dormir tão seguro assim. Ele
pode reforçar a porta secreta de seu quarto para impedir ou ao menos dificultar
a entrada de alguém, mas jamais colocar um de seus seguranças neste local. Se
ele quer que a passagem seja secreta, ela será. Mesmo que isso torne seu
dormitório menos seguro.
—
Mas, Renam, você não havia dito que o espião foi pego? Neste caso, por que o
rei não manteria a pedra em seu quarto?
—
Porque a esta hora, Naêmia, o espião deve ter sido tão torturado que jamais
conseguiria contar mentiras ao rei. E ele deve ter deixado claro que
desconhecia a passagem.
Joshua
e Naêmia olharam-se com grande preocupação. O quadro pintado por Renam não era
dos mais animadores.
—
Mas nem tudo está perdido. Observem este outro corredor. Ele conduz a esta
sala.
—
Sala do e do touros, Renam? Que espécie de lugar é esse? — quis saber Naêmia. —
Além disso, achei tão estranho este nome. É esquisito ver duas preposições
unidas pela conjunção e. Eles devem ter errado a escrita. E acho estranho
também a palavra touros. Por que está no plural se a preposição que a antecede
se encontra no singular?
—
Talvez não tenham errado a escrita, Naêmia. Na verdade, a palavra “do” não é
uma preposição, mas uma contração; é a soma da preposição de mais o artigo o.
Além disso, este estilo de escrita repetitiva é comum no povo ameríndio.
—
Mas é claro, Renam — concordou Joshua, colocando a mão na testa. — Como não
percebi antes?
Com
um leve sorriso, o monge prosseguiu:
—
Para os ameríndios, a palavra touros se refere a objetos que são valiosos do
ponto de vista emocional: presentes recebidos de amigos, objetos que passam
gerações nas famílias, etc.
—
Mas, Renam, não podemos afirmar que a Ametista Mágica tenha valor emocional,
portanto ela não pode estar aí — protestou Naêmia.
—
Quando olhei para esta sala pela primeira vez, Naêmia, tive o mesmo raciocínio.
Mas hoje percebi que estava errado. O rei não guarda objetos de valor
sentimental nesta sala.
—
Não? Mas e a escrita ameríndia? — questionou Joshua.
—
É só para confundir, conferindo a esta sala uma imagem falsa de seu conteúdo.
Percebendo
os olhares intrigados, Renam pegou uma folha e lápis. Rabiscou, em letras
maiúsculas, o nome da sala: SALA DO E DO TOUROS. Em seguida, apagou uma das
duas palavras repetidas e reposicionou as letras da última palavra,
acrescentando nela a conjunção “e”, transformando a expresão em: SALA DO
TESOURO.
—
Um anagrama! — exclamaram Joshua e Naêmia ao mesmo tempo.
—
Renam, desta vez você se superou.
O
monge sorriu, desajeitado. Sempre fora muito modesto. Mas antes que
respondesse, ouviram alguém bater na porta. Naêmia falou alto para que
esperasse, pois ela e seu “marido” precisavam se vestir. Joshua escondeu-se no
reservado e rapidamente, Naêmia e Renam dobraram o mapa e o guardaram.
—
O que deseja? — questionou Naêmia, após abrir a porta do quarto.
—
Preciso falar com a senhora e seu marido. Estou a serviço do rei.
A
mulher abriu um pouco mais a porta e o homem entrou.
—
O rei mandou-me avisar que necessitará da senhora nos próximos dias, numa
tarefa que a manterá momentaneamente longe de seu marido.
Virou-se
para Renam e prosseguiu:
—
O rei pede que o desculpe por tal solicitação que, para o senhor, deve ser
desagradável. E diz que esta foi a melhor alternativa que encontrou.
Renam
acenou positivamente a cabeça, concordando, e acrescentou que o rei era muito
bondoso para que tal pedido lhe fosse negado. Naêmia acompanhou o homem,
sumindo pelo corredor sem maiores explicações.
—
Pode sair, Joshua.
—
Eu ouvi tudo. Não faço idéia do que o rei possa querer com Naêmia, mas receio
que ela não volte a tempo.
—
Se for este o caso, agiremos sem ela?
—
Imagino que não temos escolha, Renam. Cada dia que passa é uma batalha vencida
pelo nosso inimigo, que deseja alcançar o poder supremo. Se Naêmia não estiver
aqui em dois dias, teremos que agir sozinhos.
—
E se formos descobertos e houver complicações? Ela é nossa amiga, Joshua, não
apenas uma companheira de guerra.
—
Se algo acontecer a Naêmia, jamais me perdoarei — respondeu o bruxo, com ar
pesaroso. — Apenas estarei consciente de que não tive opção.
—
Não gosto disso.
— Eu também não, Renam.
Mas o que mais podemos fazer?
Após uma pausa, Joshua
acrescentou:
— Termine seus estudos com
o mapa, enquanto que eu finalizo a leitura da biografia do rei. Em dois dias,
agiremos e aceitaremos as conseqüências. Procure não pensar muito nisso, Renam,
pois será pior se ficarmos refletindo tais possibilidades negativas.
Dizendo isso, Joshua
encaminhou-se para o seu quarto. Renam abriu mais uma vez o mapa, seguro de que
o memorizaria totalmente ainda naquela noite. Naêmia precisaria de mais dois
dias, mas Renam tinha excelente memória. Apenas mais um pouco de dedicação e
conheceria dois pavimentos do castelo de trás para frente. Aí seria o momento
de colocar em prática um plano somente seu. Quando ele e Naêmia trocaram, com
Joshua, o livro pelo mapa, Renam não revelou a descoberta que fizera em relação
à biografia do rei. Guardara esta informação apenas para si e somente contaria
aos seus amigos, caso o plano estabelecido por eles falhasse. Então, numa
tentativa de não permitir que perdessem as esperanças, contaria que havia a
possibilidade da biografia do rei estar dividida em dois volumes. Iria voltar à
sala da passagem secreta para localizar o livro segundo e, quem sabe,
encontrariam as respostas que procuravam. É claro que poderia não haver dois
livros, poderia ser um erro de impressão. Afinal constava, na ficha
catalográfica, que o livro era o primeiro de dois volumes. Mas não havia
nenhuma indicação na folha de rosto ou na capa. Sendo assim, Renam investigaria
este fato apenas como última possibilidade. Agora que lhe sobraria um espaço de
tempo — a noite seguinte —, chegaria o momento de verificar suas suspeitas.
Após oito dias
dedicando-se à leitura da biografia do rei e ao estudo do mapa, Renam estava
disposto a voltar à sala que encontrara através da passagem secreta. A
biografia do rei não fornecia muitas respostas, de modo que o jovem guerreiro
acreditava que o livro poderia ter uma continuação. Além disso, talvez
encontrasse o mapa dos outros pavimentos do castelo. Já havia escurecido e
Joshua se encontrava em seu quarto, lendo. Renam decidiu não atrapalhar Joshua
para explicar seu plano. Sabia onde ir e o caminho mais seguro a utilizar, de
forma que não precisaria preocupar o amigo. Se encontrasse alguma coisa,
colocaria-o a par no dia seguinte. Do contrário, nem tocaria no assunto.
Abriu o fundo falso de sua
mala e retirou a roupa de investigador. Vestiu-a rapidamente e saiu do quarto.
Caminhou pelo corredor até chegar na sala onde eram guardados os objetos de
limpeza. Arrastou o armário que servia de porta, entrou na passagem secreta e
caminhou até chegar mais uma vez naquela sala que reunia tantos móveis diferentes,
dando a impressão de ter múltiplas finalidades. Encaminhou-se diretamente para
a estante que reunia obras biográficas e começou a ler o título de todos os
livros. Quase no final da estante, encontrou um livro de apenas setenta
páginas, cujo título era: “Vida de Julian: parte II — Caminhos que se Separam”. Estava
certo, afinal. Havia um segundo livro escrito pelo rei para tornar sua
biografia mais completa.
Renam guardou o pequeno
livro em um de seus bolsos internos, prendendo-o com uma alça, do mesmo modo
que da outra vez. Em seguida, passou a procurar a continuação do mapa do
castelo. Deu uma rápida olhada na estante que tratava assuntos de geografia e
verificou o armário onde encontrara a primeira parte do mapa, mas foi uma busca
inútil. Temendo que demorasse muito, afinal teria apenas aquela noite para ler
o livro, decidiu voltar ao seu quarto e empregar uma busca mais meticulosa pela
seqüência do mapa em outra ocasião. Setenta páginas não era muita coisa para
alguém acostumado à leitura. Porém, o guerreiro tinha pouco tempo para ler o
livro e boa parte deste tempo gastara para achá-lo.
Ao retornar ao seu quarto,
sentou-se na cama e começou imediatamente a leitura. Ao finalizar, descobriu
muito mais informações úteis para a missão, naquelas setenta páginas, que nas
quase quinhentas do primeiro volume. Satisfeito, guardou o pequeno livro no
fundo falso de sua mala, ao lado do seu traje de combate. Deitou-se, sentindo
uma estranha mistura de alegria, tristeza, raiva e vontade de vingança.
Alegria, porque finalmente descobrira a verdade; tristeza, raiva e vontade de
vingar-se, porque fora enganado. A história, pelo jeito, estava longe de
acabar. Agora olhava para si mesmo como se fosse apenas uma peça no tabuleiro,
fazendo parte de um intrincado jogo de esquemas.
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