A área isolada de Damaris
Renam
aproveitou o dia para fazer o que o rei havia sugerido: descansar. Ultimamente
dormia pouco, a missão ocupava boa parte do tempo destinado ao repouso. Mas
agora recuperaria o sono perdido e se sentia grato pela oportunidade. Dormira a
manhã inteira, levantara para almoçar e voltara a dormir. Agora estava mais uma
vez na sala real.
— Ainda falta um bom tempo
para o sol se por, Renam. Quero que vá ao refeitório e tome um café reforçado.
Poderá precisar! — exclamou o rei, em seu habitual tom frio.
— Quero ver a Karine.
— Você a verá após se
alimentar. Então cavalgaremos até a entrada da prisão. Agora mexa-se! — bradou
o rei, direcionando um olhar de desprezo ao jovem guerreiro.
Renam o encarou com olhos
raivosos. Sentia o sangue esquentar em seu corpo, subir pelo pescoço e fazer
seu rosto ficar enrubescido. Mas sabia que não tinha escolha a não ser fazer o
jogo do rei. Ao menos por enquanto. Encaminhou-se para o refeitório e serviu-se
de pãezinhos doces, salgadinhos, pedaços de pizza, uma fatia de torta e uma
xícara de café. Com o excelente almoço e a bela refeição que acabara de fazer,
sentiria-se nutrido até o entardecer do dia seguinte. Embora as refeições que
fizera durante o dia estivessem deliciosas, o monge não conseguiu sentir o
gosto dos alimentos. Seus pensamentos voltavam-se o tempo todo para Karine. A
vida da moça dependeria de sua capacidade de encontrar e trazer para o castelo
a Armadura de Prata. Para isso, teria que lançar mão de toda a sua
inteligência, habilidade marcial e perícia como investigador. Mas seria
suficiente? A casa, que em conjunto com a área isolada servia como o presídio
do reino, era de dimensões alarmantes. E teria que ser imensa, pois abrigava milhares
de homens e mulheres de personalidade psicótica, que outrora foram responsáveis
por quase todos os problemas sociais do reino. Dessa maneira, quanto tempo
precisaria para localizar a armadura e trazê-la de volta? Quanto tempo o rei
estaria disposto a esperar? Perturbado com tais idéias, levantou-se e caminhou
mais uma vez em direção à sala real.
—
Onde
está a Karine? — perguntou bruscamente.
— Mandarei buscá-la, mas
devo avisar que não tolerarei traições. E provarei o que lhe digo: lembra-se do
traidor que apresentei na sala dos monges? Pois bem, está morto.
O rei sorriu
maliciosamente e balançou a cabeça para um de seus seguranças. O homem saiu da
sala e, poucos momentos depois, retornou com Karine… e Joshua. Renam apertou os
olhos em direção aos dois, ao ver como estavam sendo conduzidos à sala do
trono: Karine estava rodeada por três seguranças. Os homens que a ladeavam
apontavam uma espada para sua barriga e uma faca para a garganta, como da outra
vez. Mas agora o rei tornara a visão mais odiosa ainda: o homem que se
encontrava atrás da moça mantinha um grande machado erguido e um brilho cruel
nos olhos, numa demonstração de que faria um excelente uso de sua arma na
primeira oportunidade. As lágrimas de silencioso pânico, que escorriam pelo
rosto da garota, faziam o coração de Renam sangrar. Joshua estava com as mãos
amarradas, a boca amordaçada, uma corda no pescoço com um laço que poderia
enforcá-lo e dois homens que caminhavam ao seu lado, apontando, cada um, uma
lança em sua direção. Renam também não deixou de reparar na expressão facial do
amigo, que aparentava cansaço. Mas por que Joshua tinha tal aparência?
— Você queria tanto ver
sua namorada, foi tão insistente que acabei cedendo. E, para não sair por aí
dizendo que sou mau, trouxe o seu amigo junto. Caled, por favor, faça as
honrarias da casa — falou o rei, num tom de voz debochado.
A mando do rei, o homem
segurou os ombros de Joshua e o virou, de modo que ficasse de costas para o
monge. Em seguida, arrancou-lhe o casaco. Para extremo horror de Renam, as
costas do amigo estavam totalmente cortadas. Joshua havia levado dezenas de
chibatadas, assistidas por Karine. Em seguida, jogaram-lhe salmoura, aumentando
exponencialmente a dor que já era insuportável. Joshua virou-se para Renam e
olhou para o amigo monge por alguns instantes. Em seguida, perdeu a
consciência. O jovem guerreiro aproximou-se velozmente de seu amigo, abaixou-se
e o abraçou. Momentos depois, chamou-o pelo nome, deu leves toques em seu
rosto, mas ele continuava imóvel. Ao vê-lo cair, Renam suspeitou que o pior
havia acontecido. Agora, segurando o pulso do amigo, tinha plena certeza.
Joshua estava morto. As chibatadas cortaram-lhe tão fundo e o bruxo perdeu
tanto sangue, que quando lhe jogaram a salmoura já era tarde. Renam entrou em desespero.
Ainda ajoelhado e abraçado naquele homem que o cuidara como se fosse um filho,
começou a soluçar. Seu sofrimento atingiu o auge quando sentiu a dor dilacerar
sua alma, como se uma mão agarrasse seu coração e o apertasse com toda a força,
para que sangrasse até morrer.
— EU VOU TE MATAR,
DESGRAÇADO! — gritou Renam, olhando furiosamente na direção do rei.
— Faça isso e sua garota
também morrerá.
O rei estava a vários
passos de distância, cercado por muitos homens de sua Guarda Imperial, ao lado
de Karine, impiedosamente ameaçada — e aterrorizada.
Quando o monge se pôs em
pé, todos os soldados ergueram suas espadas. Mas embora as lágrimas ainda
corressem pelo rosto, Renam calculava possibilidades e media conseqüências. Sem
dizer uma palavra, saiu da sala. O rei e seus guardas esperaram alguns momentos
e então também saíram. Sabiam para onde o monge estava se dirigindo.
Renam saiu do castelo,
andou em direção aos cavalos, escolheu um e cavalgou até chegar na entrada da
prisão. O bruxo Jeofrey já estava lá algum tempo, pois o feitiço que estava
fazendo era muito complexo — o portão não existiria para Renam nos próximos
cinco dias.
Ao se aproximar, desceu do
cavalo e observou por alguns momentos o bruxo, que gesticulava e realizava o
que parecia ser um canto numa linguagem desconhecida. Após um tempo, o
feiticeiro silenciou. Olhou para o monge, estendeu a mão em direção ao portão e
balançou levemente a cabeça, indicando que o monge podia entrar na área isolada
da cidade. O jovem guerreiro aproximou-se e projetou sua mão em direção à
maçaneta do portão, com o objetivo de abri-lo. Porém, ficou surpreso ao ver sua
mão atravessá-lo. Olhou para o bruxo, que apenas lhe disse:
— Você tem somente cinco
dias.
E Renam compreendeu. O
bruxo abriu uma espécie de porta mágica que o permitiria atravessar o portão,
como se ele não estivesse ali.
No momento em que entrou
na área isolada da cidade, o sol já havia se escondido e o monge se guiava pela
luz do luar. Cego pelo ódio e dor que devastavam sua alma, o jovem guerreiro
não conseguiu observar com atenção a paisagem na qual agora se encontrava. A
lua estava iluminando o ambiente muito bem, mas o guerreiro era incapaz de
contemplar a agricultura e a pecuária local; não enxergava as terras
impecavelmente cultivadas, exibindo plantações de tomate, cenoura, beterraba,
batata, abóbora, morango e alface, entre outros; não reparou na organização
relacionada à criação de animais – e havia muitos tipos de atividades de
criatório: avicultura, suinocultura, apicultura, sericultura, etc.
Tudo ali era limpo e
organizado, sugerindo uma aldeia com pessoas de excelentes hábitos de higiene,
em vez de um local que reunia marginais da pior espécie. Mas Renam estava
machucado, triste e enraivecido demais para observar tantos detalhes a sua volta.
O monge apenas queria encontrar a grande casa-prisão, invadi-la, localizar a
Armadura de Prata e roubá-la. Teria que ser extremamente cauteloso, pois
encontrava-se sozinho para enfrentar milhares de homens e mulheres criminosos.
Teria que ser sorrateiro, esgueirando-se pelas sombras, indetectável. A vida de
Karine dependia de toda a sua habilidade. Não poderia falhar.
Após passar pelo portão,
Renam seguiu à risca as instruções que recebera do rei na noite anterior,
ocasião em que fora informado sobre como chegar a grande casa. Caminhou sempre
em frente, atravessando um bosque que se iniciava logo após a área cultivada e
terminava cerca de mil passos depois. Em seguida, dobrou à direita e atravessou
um lago, passando por uma ponte. Continuou em linha reta, cruzando uma mata que
reunia grandes e pequenas árvores, arbustos, flores, folhagens e muita grama,
numa área não muito extensa. Foi somente após atravessar aquela área pantanosa,
que o jovem guerreiro viu a casa.
A luz do luar, filtrada
pelo topo de algumas grandes árvores do pântano, iluminava parcialmente a parte
da frente da enorme residência, conferindo a ela um aspecto fantasmagórico. A
visão da casa fez com que Renam voltasse a ser o observador de antes,
analisando circunspectamente sua estrutura. A casa era extremamente larga e
alta. Exatamente em seu centro, havia uma grande porta que parecia ser a única
entrada e saída; em cada lado da porta duas colunas erguiam-se como torres,
exibindo, em toda a sua extensão, pequenas janelas semicirculares; nas paredes,
haviam outras janelas no mesmo formato, porém em tamanho maior.
Observando as pequenas
aberturas existentes nas colunas, Renam concluiu que sua função era permitir a
circulação de ar no interior da casa; jamais conseguiria passar por qualquer uma
delas. As janelas das paredes eram grandes o suficiente para permitir a
passagem de um adulto, mas estavam altas demais. O único jeito era tentar
entrar pela porta, considerando que dar a volta pela casa seria uma perda de
tempo, devido as suas absurdas dimensões. E o monge não dispunha de muito
tempo. Dessa maneira, esperou apenas que a noite avançasse mais, para entrar na
grande casa e iniciar sua busca.
A lua assumia uma posição
alta no céu, indicando a Renam que o momento de agir chegara. O jovem guerreiro
aproximou-se da porta, na expectativa de que se encontrasse aberta. Para a
sorte de Renam, não havia sido chaveada. Abriu-a vagarosamente, tendo o cuidado
de não produzir ruídos. Entrou numa grande sala quadrada, que parecia ser um
local onde aqueles criminosos se reuniam para planejar sua fuga — ao menos foi
o pensamento que se passou pela cabeça do rapaz. Nas paredes dos lados e na dos
fundos, havia diversas portas, sugerindo muitos caminhos a serem explorados,
fazendo-o lembrar da grande sala circular do castelo do rei. Exceto por um
detalhe: na grande sala circular, havia mesa e cadeiras; nesta sala nada havia.
Sem perder tempo,
encaminhou-se para a porta mais próxima. Entrou num corredor que apresentava
muitas portas de ambos os lados. O monge percebeu que estava passando por
dezenas de quartos. Com passos silenciosos, encaminhou-se para o final do
corredor que dava acesso a uma sala enorme, cheia de quadros, estátuas de
argila, madeira e pedra, bancadas e pequenas mesas quadradas e circulares que exibiam
muitos outros tipos de trabalhos artísticos. Renam não pôde deixar de admirar a
perfeição com que foram confeccionados. Mas seu objetivo era localizar a
armadura. Precisou de um bom tempo para constatar que não se encontrava exposta
ali. Foi para a sala seguinte.
Renam admirou-se de ver a
imensa sala, que reunia todos os tipos de móveis: mesas, cadeiras, armários,
bancos, camas, balcões, escrivaninhas, arquivos e estantes. Foram projetados
móveis de todos os modelos e tamanhos, organizados na sala de uma forma tal,
que sugeria ao monge que se encontrava em um imenso depósito. O que estaria
acontecendo? O rei lhe dissera que o enviaria a um local que servia como prisão
da cidade de Damaris, mas o jovem guerreiro tinha a impressão que estava em
outro reino. Passara por uma galeria de arte e agora se encontrava num imenso
depósito de móveis. Para que todo aquele material? Quem o confeccionara?
Ao sair da sala, entrou
num corredor, caminhando em linha reta do início ao fim. Ao final do corredor,
chegou numa porta. Ao abri-la, avistou a escada que se projetava para baixo.
Desceu a escadaria e começou a caminhar por um local que logo identificou como
masmorra. De ambos os lados, havia pequenas salas com portas de grades, que
poderiam servir de prisão a muitas pessoas. Embora houvesse um bom número
daquelas salas, apenas algumas tinham um presidiário. Era a primeira vez que
Renam via alguém de perto desde que entrara na área isolada da cidade. Como era
muito tarde, todos estavam dormindo profundamente. O monge continuou seu
caminho em silêncio. Ao atravessar as masmorras, encontrou outra escada e
começou a subir.
Ao sair da escada, chegou
num corredor que formava um T. Poderia seguir em linha reta, ir para a direita
ou para a esquerda. Decidiu seguir em linha reta. À medida em que avançava pelo
corredor, o jovem guerreiro observava as pinturas realizadas nas próprias
paredes, tornando-o um tanto exótico. Ao final, Renam encontrou outra porta e a
abriu cautelosamente. Chegara numa grande biblioteca. Observou que possuía um
bom acervo e era bem organizada. Analisou rapidamente diversos livros e abriu
alguns armários, na esperança de encontrar pistas da localização da Armadura de
Prata, mas não teve sorte. Tentou encontrar o mapa daquela enorme casa, mas
também não conseguiu. Desanimado, decidiu que era hora de sair dali e continuar
sua busca em outros locais da imensa residência. Chegou mais uma vez no ponto
em que o corredor se dividia em três e optou pelo caminho da direita. Caso não
tivesse sorte em localizar novas pistas, pensou o monge, ao menos estaria
fazendo um reconhecimento do lugar.
Seguiu pelo corredor,
observando os quadros nas paredes. Havia muitos rostos, retratando pessoas de
todas as idades. Nos dois lados e também nos dois sentidos daquele corredor,
havia uma infinidade de quadros. Ao final, chegou numa imensa sala circular,
que muito se assemelhava a um salão de festas. Pela enorme sala, eram
distribuídas pequenas mesas quadradas com quatro cadeiras cada; no centro da
sala, nenhum mobiliário havia, deixando-se um espaço vazio; próximo às paredes,
contornando todo o imenso salão, estavam posicionados luxuosos bancos
produzidos com madeira de Lei, o melhor tipo de tábua — e mais caro também;
alguns armários, igualmente construídos com o mais fino material, abrigavam
xícaras, pires, pratos e talheres de ouro; grandes vasos, com bonitas
folhagens, enfeitavam o ambiente de forma a deixá-lo realmente agradável. Mas
não foram as pequenas mesas com cadeiras, o espaço vazio no centro da sala, os
bancos, os armários, a prataria ou os vasos com suas belas plantas que mais
chamaram a atenção de Renam. O que deixou o monge boquiaberto foi o fato de que
as paredes eram pintadas até o teto, com uma pintura que retratava uma única
paisagem: uma floresta. A pessoa que se encontrasse naquela sala, pensava
Renam, sentiria-se como se estivesse numa clareira. Para completar o toque
realístico, o teto era construído em forma de abóbada, pintado de preto. O
globo mágico de iluminação, diferentemente dos demais da enorme casa, emitia
uma fraca luz e estava afixado não no meio da sala, mas entre o centro e o lado
esquerdo do salão, numa evidente representação da lua. Pequeníssimas esferas,
com prolongamentos em forma de pinos, realçavam a idéia de céu, pois
assemelhavam-se a um grupo de estrelas. O jovem guerreiro não pôde deixar de
admirar-se com a criatividade artística que o deixava quase hipnotizado. Tudo
tão bem detalhado: a fraca iluminação para simular uma noite iluminada pelo
brilho da lua, a disposição dos móveis, as decorações, sem falar no tapete que
cobria todo o chão da sala e se assemelhava a um gramado. Como se não bastasse
tudo isso, exatamente embaixo do globo de iluminação havia uma fonte em forma
de estátua: uma linda mulher segurava um vaso que transbordava água, que caía
no que parecia ser o poço de onde ela havia retirado a água. O lugar
apresentava um visual fascinante. Até assimilar o efeito da aparência do
ambiente, o guerreiro ficou momentaneamente esquecido de seu real objetivo. Mas
logo recompôs-se, pois sua missão era importante demais para ser ignorada.
Atravessou a sala e passou pela passagem em forma de caverna, situada no morro
que fora esculpido na própria parede — mais uma decoração que tornara o local
ainda mais incrível.
Enquanto avançava pela passagem
em forma de caverna, com suas paredes rochosas, chão esburacado e o teto
apresentando muitas estalactites, Renam refletia sobre a sala pela qual acabara
de passar. Por que alguém se daria ao trabalho de projetar e construir algo tão
criativo e belo numa prisão? Aliás, que tipo de prisão seria aquela? É bem
verdade que vira algumas pessoas presas nas masmorras, mas o que lhe disseram
era que toda a área servia como presídio. Ou seja, não deveria haver pessoas
trancadas em celas isoladas umas das outras, dentro de um mesmo prédio, como
era comum a todas as prisões. Tudo o que encontrara, até então, foi uma
estrutura que sugeria uma outra cidade e não uma simples prisão. É bem verdade
que a única casa que tinha visto, desde que cruzara os portões, fora aquela
enorme residência onde agora se encontrava, mas o fato é que a área isolada da
cidade era muito grande e bem que poderia haver outras casas por perto,
reforçando a idéia de estar em outro reino. Ao final da passagem, encontrou uma
escada. Agora tinha que subir. Mas antes de colocar o pé no primeiro degrau da
escada, parou e olhou para trás. Sentia como se alguém o tivesse observando.
Mas não viu ninguém, por isso decidiu prosseguir.
A escadaria, na qual Renam
agora se encontrava, era extremamente bonita e luxuosa: os degraus eram feitos
de madeira nobre, envernizados; em ambos os lados, a escadaria era protegida
por paredes que se projetavam até o teto, decoradas com o desenho de uma
paisagem em alto relevo; os corrimãos eram constituídos de ouro puro; o formato
curvo da escadaria, embora a embelezasse mais, limitava o alcance da visão do
jovem guerreiro. O monge andou com os ouvidos atentos, pois podia deparar-se
com alguém. Prosseguiu cautelosamente, com os sentidos sempre em estado de
alerta. Após um certo tempo naquela escada que parecia não ter fim, encontrou
uma porta na qual estavam desenhados dois guerreiros travando uma batalha. Pela
imagem esculpida na porta, Renam percebeu que encontrara a sala de armas.
A sala era quadrada e
enorme. As armas estavam colocadas sobre pinos afixados nas paredes. Havia
armas de todos os tipos e tamanhos, em quantidade suficiente para suprir as
necessidades de centenas de guerreiros. Como todo o conteúdo estava pendurado
nas paredes, o interior daquela sala formava um enorme espaço vazio.
Renam estava admirado com
a sala. Olhava atentamente para as armas, reconhecendo o belo trabalho dos
ferreiros e artesãos que as confeccionaram. Tinha vindo sem nenhuma arma, com o
objetivo de se locomover com mais facilidade e rapidez por aquela enorme casa.
De repente, olhou para os
lados. A estranha sensação de que alguém o observava voltara. Mas estava
sozinho, como era possível? Estaria ficando paranóico? Decidido a deixar a
sensação de lado, passou a observar as armas com mais atenção. Se houvesse
necessidade de retornar ali, saberia o que escolher para levar consigo.
Momentos depois, avistou outra porta. Começou a se encaminhar para ela, mas
parou após três passos. Em silêncio, esperou que a porta atrás de si, pela qual
entrara naquele lugar, fosse aberta.
— Lá está ele – gritou
alguém.
Sem se virar, permitiu que
as pessoas o cercassem. Quando o primeiro homem o atacou, Renam abaixou-se,
abrindo totalmente suas pernas. Acertou um fortíssimo soco na barriga do homem.
Colocou as mãos no chão, girou o corpo e projetou suas pernas para o alto. Num
movimento incrível, acertara mais dois guerreiros. Pulando agilmente para trás,
evitou um chute rasteiro de um adversário. Mas antes que seus pés tocassem o
chão, acertou em cheio os peitos de outro. Quatro já estavam fora de combate.
Saltando e girando o corpo, acertou um chute no rosto de outros dois
adversários. Restava apenas um. O último era grande e forte. Fez uma seqüência
de socos que foi facilmente evitada pelo monge. Em seguida, Renam projetou um
chute na altura do rosto do homem. Como era muito forte, conseguiu segurar a
perna de Renam. Mas antes que fizesse qualquer coisa, o monge projetou-se num
salto espetacular, acertando com o pé que estava livre o queixo daquele homem.
O monge girou no ar, dando uma volta completa. Quando seus pés tocaram
novamente o chão, seu adversário era lançado a vários passos, caindo
inconsciente.
O monge atravessou a sala,
em direção à porta que avistara. Ao abri-la, começou a descer a escada em formato
caracol que tinha diante de si. Sentiu-se como se estivesse numa estreita
torre, pois uma imensa parede circular revestia a enorme escadaria, limitando o
campo de visão do jovem guerreiro. A sorte do rapaz era que estava
acostumadíssimo a exercícios físicos, do contrário ficaria cansado ao descer
aquela escada de três mil degraus.
Finalmente terminara a
escadaria. Renam agora se encontrava numa sala que o fez lembrar do castelo do
rei Julian: uma sala com variado mobiliário, sugerindo múltiplas funcionalidades.
Havia apenas duas diferenças em relação à sala do castelo, onde encontrara a
biografia e uma parte do mapa: a sala onde se encontrava agora era bem maior e
com mais móveis; além disso, apresentava duas portas — uma por onde o rapaz
entrara e outra que poderia utilizar para sair dali. Renam observou a grande
escrivaninha, os armários e as estantes. Eram os três tipos de possibilidades
de descobrir informações sobre a Armadura de Prata. Por onde começar? Para
alguém que adorava a leitura, essa era uma pergunta fácil de ser respondida.
Sem perder tempo, encaminhou-se para as estantes. Com seu olhar de leitor
experiente, percorreu as lombadas dos livros de geografia, numa tentativa de
encontrar algo que tratasse daquela região. Mas aqueles livros comentavam
apenas sobre comércio, produções artesanais em larga escala, agricultura e
pecuária. Na estante em que se situavam os livros de biografia, não conseguiu
localizar nenhum nome conhecido. E, após a leitura da biografia do rei, Renam
conhecera muitos nomes de pessoas que faziam parte do reino de Damaris. Não
precisou muito tempo para perceber que os livros daquelas estantes não o
ajudariam, a exemplo de sua tentativa na biblioteca. Decidiu tentar a sorte na
escrivaninha. Abriu todas as gavetas, analisou os documentos que encontrara, e
mais uma vez frustrou-se com a falta de pistas sobre a armadura. Mas se
houvesse alguma pista que o conduzisse ao objeto de sua procura, tinha que
estar naquele lugar que parecia ser o centro administrativo daquela enorme residência.
Com esta idéia fixa em seus pensamentos, dirigiu-se aos armários. Revistou um
por um, mas não havia nada que pudesse servir de ajuda. Nem mesmo um mapa havia
naquela sala, que pudesse orientá-lo naquela imensa mansão que parecia se
igualar, em extensão, ao castelo do rei. Percebeu que dependeria única e
exclusivamente da sorte para completar sua missão. Encaminhou-se para a segunda
porta, com o objetivo de sair por um caminho diferente pelo qual entrara.
Ao passar pela porta,
entrou numa sala semicircular que apresentava várias portas, embora fosse uma
sala não muito grande. Mas o fato é que naquela parede semicircular havia
trinta portas, o que reforçava a idéia de que a sala ao lado realmente
funcionava como um centro administrativo da gigantesca mansão. Daquele ponto,
seria possível acessar os principais compartimentos da casa. A exemplo do que
fez na grande sala circular, no castelo do rei, Renam decidiu explorar o
caminho ocultado pela primeira porta à esquerda, retornando àquela sala, se fosse
o caso, e tentando a próxima porta. Sem perder tempo, dirigiu-se à primeira
porta. Entrou em um corredor de péssimo aspecto, apresentando muitas rachaduras
nas paredes, partes do reboco descascados e várias lajotas do chão quebradas,
passando a impressão de que aquela parte da casa outrora havia sido
terrivelmente depredada. Isso era muito estranho, pensava Renam, uma vez que
todos os outros lugares pelos quais passara estavam em perfeito estado de
conservação. Por que aquele corredor estava então daquele jeito, como se alguém
o tivesse demolido deliberadamente? Os questionamentos iam se avolumando na
cabeça do monge, na medida em que avançava. A cada passo, observava que o
estado precário de conservação se estendia por todo o corredor. Enfim chegou em
outra porta. Da mesma forma que o corredor, seu estado era péssimo; estava
inclinada, com a dobradiça inferior arrebentada. Por causa de sua inclinação,
não podia fechar totalmente, permanecendo apenas encostada em seu quadro. Ao
tentar abri-la, desprendeu-se totalmente do quadro e foi deixada encostada na
parede.
O
jovem guerreiro entrou numa grande sala circular, cuja aparência reproduzia o
péssimo estado do corredor. Além das paredes e o teto estarem precisando de um
novo reboco, assim como o piso que necessitava a troca de várias lajotas, havia
também muitos móveis quebrados naquela sala. Que lógica poderia haver nisso?
Por que algumas partes daquela casa pareciam novas, sendo que outras estavam em
completo estado de destruição? Renam procurou outra saída, mas não encontrou.
Resolveu retornar à sala semicircular e tentar a segunda porta.
Desta
vez, não havia corredor. Ao passar pela segunda porta, Renam entrou numa imensa
sala. Embora fosse larga, o seu comprimento excedia em muito a largura,
tornando-a retangular. Igualmente depredada, apresentava grandes blocos de
reboco descascado, rachaduras nas paredes e piso, além de móveis quebrados.
Pequenos animais como aranha, baratas e ratos infestavam o lugar e fugiam da
presença do monge, escondendo-se entre os destroços ou sumindo pelas muitas
rachaduras que as paredes apresentavam. Renam não pôde procurar pistas entre os
móveis, tamanho o estado de sua destruição. Sem encontrar outra porta, retornou
mais uma vez à sala semicircular.
Retornando
várias vezes à sala que lhe oferecia tantas opções de caminhos, Renam entrou em
muitas outras salas e percorreu vários corredores. Desde que iniciara a
exploração das possibilidades da sala semicircular, constatara que o estado
precário das paredes e piso se estendia por trás de todas aquelas portas. Ao
menos foi assim até que passasse pela décima oitava porta. Renam começou a
caminhar em um corredor que, inicialmente, também apresentava rachaduras e
partes do reboco descascadas. O monge olhava para as paredes, que apresentavam
belos desenhos. Era realmente uma pena o péssimo estado das paredes, pensava o
jovem guerreiro. Não podia deixar de imaginar a beleza que devia ter, na época
em que fora construído. Prosseguiu caminhando naquele imenso corredor, que
apresentava muitas curvas. Depois de um tempo, observou que o caminho se
estendia retamente a uma grande distância. Renam continuou sua caminhada pelo
corredor. Após um tempo, percebeu que algo mudara; as paredes, o chão e o teto
pareciam diferentes. O monge apenas demorou para perceber a diferença porque,
enquanto avançava, estava em profundos pensamentos. Mas em determinado momento,
observou o que fazia a diferença: a partir de um certo ponto, o corredor estava
totalmente restaurado; as pequenas rachaduras haviam sido tapadas; o reboco
estava refeito e as lajotas do piso, que estavam quebradas, haviam sido
trocadas. Faltava apenas completar a restauração com uma pintura. Após vários
passos, Renam parou. Ainda poderia continuar, se quisesse, mas algo lhe chamara
a atenção: encontrava-se mais uma vez no ponto do corredor que possuía formato
de T. Estivera ali antes, ao sair da masmorra. Acabara de percorrer todas as
direções que aquele ponto de encontro de corredores oferecia. Mais uma vez
sentiu alguém o observando. Preocupado ao achar que estava imaginando coisas,
ignorou novamente tal sensação. Bem, pensou o rapaz, se seguisse em frente,
passaria mais uma vez pela parte do corredor que apresentava quadros afixados
em ambos os lados, chegando na grande sala que simulava o ambiente de uma
floresta. Se retornasse, voltaria mais uma vez à sala semicircular e poderia
tentar a sorte na décima nona porta. E se optasse pelo outro corredor que
aquele estava ligado, então retornaria à biblioteca.
O jovem guerreiro sabia que só havia uma única alternativa
a considerar: retornar ao caminho pelo qual chegara naquele ponto. Poderia
seguir em frente para voltar à sala semicircular, mas seria muito demorado:
andaria pelo corredor, atravessaria a sala que parecia uma floresta e utlizaria
a passagem em forma de caverna para chegar numa escada, que dava acesso à sala
de armas. Em seguida, teria que descer mais uma vez a escada de três mil
degraus para somente então chegar na sala que dava acesso à sala semicircular.
E era necessário retornar àquela sala, pois havia explorado apenas
dezoito possibilidades entre trinta. Mal havia concluído este pensamento,
avistou, no corredor que se ligava aquele no qual agora se encontrava, pessoas
que gritavam e lhe apontavam. Virou-se para correr na direção da sala
semicircular pelo mesmo caminho que acabara de utilizar, mas não deu um único
passo. Imaginou que uma boa estratégia seria despistá-los na imensa sala
escura, que apresentava a pintura de uma paisagem que cobria todas as paredes,
fazendo a pessoa sentir-se no interior de uma floresta. A própria escuridão o
ajudaria a ocultar sua presença, uma vez que seu traje era preto. Sem pensar
duas vezes, Renam começou a correr até chegar outra vez na sala mal iluminada.
O monge encostou-se na parede, próximo à escultura da colina. Ali formava-se um
canto escuro, capaz de ocultar a presença do jovem guerreiro. Momentos depois,
Renam observou vários homens passarem por ele, numa corrida desenfreada.
Calculou que havia entre cinqüenta e sessenta homens. Entrar em confronto
direto com eles seria uma terrível perda de tempo. Despistando-os desta
maneira, pensava o monge, atrairia-os para um caminho que poderia também
levá-los ao lugar onde pretendia ir, é verdade. Porém, demorariam muito mais
tempo para chegar lá. E não saberiam qual porta Renam teria utilizado.
Ao
ver o último de seus perseguidores sumir de vista, Renam esperou mais alguns
instantes para voltar ao local onde os corredores se encontravam, formando um
T. Prosseguiria em direção a sala semicircular, com o objetivo de passar pela
décima nona porta. Nesse momento, o jovem guerreiro começou a se sentir
cansado. Não sabia exatamente quanto tempo havia transcorrido desde que entrara
naquela enorme residência e iniciara sua exploração, mas calculava que, no mínimo,
estava um dia e uma noite, sem parar, percorrendo salas e corredores sem fim.
Mesmo um mestre das artes marciais possuía limitações. Precisava encontrar um
local para descansar e não só isso, também precisava de alimentos. Mas como
conseguiria atender a essas necessidades? Estava perdido naquela enorme mansão,
não agüentaria continuar gastando sua força daquela maneira. Era necessário
repor suas energias. A única saída era continuar a exploração das
possibilidades oferecidas pela sala semicircular e apostar na sorte. Ao chegar
no local onde os corredores se uniam, continuou a avançar na direção que tinha
em mente. Após uma centena de passos, pela quarta vez teve a sensação de estar
sendo observado. Na primeira vez, foi no final da passagem em forma de caverna;
na segunda vez, foi na sala de armas, momentos antes de enfrentar aqueles sete
guerreiros; e na terceira vez, foi ao chegar novamente no ponto em que os
corredores formavam um T. Agora, tinha a mesma sensação. Renam confiava em seus
instintos de guerreiro e sabia, portanto, que seus sentidos não o enganavam.
Alguém, neste exato momento, o observava. Mas como era possível? Não havia
ninguém a sua frente ou a suas costas. Estava completamente sozinho naquele
corredor. Ou não? Prosseguiu cautelosamente, conseguindo, afinal, chegar mais
uma vez na sala semicircular.
O
jovem guerreiro dirigiu-se à décima nona porta. Curioso para ver o que
encontraria do outro lado, abriu-a rapidamente. Estava no alto de uma escada,
que se inclinava retamente aos seus olhos. Renam avançava escadaria abaixo em
um ritmo contínuo, cobrindo boa quantidade de degraus em poucos momentos.
Pareceu ter passado uma eternidade quando finalmente a escadaria chegou ao fim.
Encontrava-se agora em um corredor, cuja largura permitia que dez homens
pudessem caminhar lado a lado. Seguiu em frente, observando o aspecto do local.
O reboco das paredes e do teto estava intacto, embora a pintura estivesse muito
desgastada, o que sugeria que aquelas paredes deviam estar naquele estado por
muito tempo. A poeira acumulada no chão indicava que aquele caminho não era
utilizado há muitos verões. O corredor prosseguiu até chegar numa curva. Após a
curva, Renam parou. O monge não conseguia acreditar em seus olhos. Como era
possível imaginar algo assim? Desde que chegara neste reino, surpreendera-se
com a fabulosa criatividade arquitetônica, mas isso extrapolava tudo o que vira
até então: diante de si, havia uma ponte com o comprimento de uns vinte passos;
a presença da ponte era perfeitamente justificável, pois permitia atravessar o
abismo — que estava no interior daquela
mansão; vigas colossais, da largura de dois braços e da altura de um homem,
sustentavam as paredes, permitindo que o corredor também atravessasse o abismo.
O jovem guerreiro começou a andar pela ponte e, ao chegar na metade, olhou para
o precipício. Não era possível divisar sua profundidade, oculta pela escuridão
que começava a se formar não muito abaixo do ponto onde o monge se encontrava.
Sentindo-se curioso em relação a isso, juntou um bastão de ferro que alguém
deixara na ponte e o deixou cair pelo abismo. Esperou um pouco com os ouvidos
atentos, mas não ouviu o som da pancada contra o chão. Devia ser muito fundo
mesmo, pensou. Sentindo que não podia mais perder tempo, seguiu em frente. Ao
sair da ponte, o corredor adquiriu um formato sinuoso. Perdeu a noção de tempo
e direção, devido à extensão absurda do corredor e as inúmeras curvas que
apresentava. Após a décima curva, observou outra escadaria diante de si. Agora
teria que subir. Ao final, encontrava-se diante de mais uma porta. Renam
hesitou. Estava cansado de percorrer caminhos que pareciam não ter fim, sem
nunca conseguir encontrar pista que o ajudassem em sua missão. Além disso,
sentia fome. Quanto tempo se passara, desde que entrara naquela gigantesca
mansão? Um dia? Dois? Não sabia, mas tinha em mente a necessidade de descansar
e se alimentar. Nesse ritmo, não agüentaria muito mais tempo. Com certa
relutância, abriu a porta. Renam quase entrou em pânico, pois chegara mais uma
vez à sala semicircular, entrando pela vigésima porta. Antes que colocasse suas
idéias em ordem, aconteceu algo que serviu apenas para complicar ainda mais a
situação: a quinta porta se abriu, revelando os homens que despistara na sala
que simulava o ambiente de uma clareira, numa noite de lua cheia.
Renam
passou imediatamente pela vigésima primeira porta. Considerou que, cansado como
estava, seria tolice enfrentar aqueles homens. Correu desenfreadamente pelo
corredor, formado por pequenos espaços retos ligados por curvas. Ao chegar no
final, abriu a porta, que de um lado tinha formato de porta, mas do outro lado
parecia ser um pedaço da parede, assemelhando-se aos quadros que estavam
esculpidos em alto relevo. Ao fechá-la, o monge percebeu que poderia haver muitas
portas por ali, pois não tinha como saber quantos daqueles desenhos cumpriam
unicamente a função de quadro. A segunda coisa que chamou a atenção do jovem
guerreiro era o fato de que estava mais uma vez próximo ao ponto onde os
corredores se uniam, formando um T. Seu desespero aumentou um pouco mais. Desde
que começara a explorar a mansão, parecia andar por becos sem saída ou em
círculos. Ao chegar no local onde os corredores se encontravam, novamente mediu
suas chances. Renam optou por se dirigir à sala de armas. Afinal, era um
guerreiro e, se fosse hora de morrer, então morreria lutando. Iniciou sua
caminhada pelo corredor, ciente de que sua trajetória chegava ao fim. Quando
estava no meio do corredor, ouviu um deslizar de porta. Voltou-se pronto para o
combate. Porém, surpreendeu-se ao ver que não tinha diante de si um adversário,
mas uma menina loira, de apenas uns doze verões de idade.
—
Ei, moço, venha comigo, por favor.
Sem
perder tempo, passou pela porta aberta pela menina, que, por sua vez, tratou de
fechá-la rapidamente.
—
Venha por aqui.
Renam
não a questionou. Apenas seguiu a garota, acreditando que chegara seu momento
de sorte. Acompanhou-a pelo corredor, até chegar em outra porta que se ocultava
na parede. A exemplo da porta anterior, esta também parecia um dos muitos
quadros do corredor. O monge e a menina entraram numa sala pequena. A garota
virou-se para o guerreiro e ficou olhando-o, sem dizer nada. Renam retirou o
capuz, revelando seu rosto. Sentia que aquela menina iria ser de grande ajuda.
Sem conter a curiosidade, passou a questioná-la:
—
Quem é você?
—
Meu nome é Amanda. Preciso da sua ajuda. E você, como se chama?
—
Renam. Eu estou exausto, Amanda, e faminto também. Receio não ter condições de
fazer algo por você.
—
Utilizo esta sala como meu quarto. Aqueles tecidos dobrados no chão são a minha
cama. Pode repousar ali. A cozinha não é longe. Trarei alimentos. E aqui há um
pequeno reservado — falou a menina, abrindo outra porta.
Renam
dirigiu-se ao reservado enquanto Amanda foi até a cozinha buscar alimentos. Ao
sair do reservado, esperou a volta de Amanda. O que faria uma jovenzinha como
ela naquele lugar? Era apenas uma menina, mas parecia conhecer bem as passagens
secretas para se manter oculta naquela mansão. Mas quais eram seus objetivos?
Poderia confiar nela? E se o atraíra para uma armadilha? Bem, com suas forças
exauridas, o jovem guerreiro sabia que não tinha escolha. Aquela menina era a
única oportunidade de dar prosseguimento à missão. Isso se ela não traísse sua
confiança, buscando os homens que estavam em seu encalço em vez dos alimentos
que prometera. Esperou mais alguns momentos e finalmente a garota estava de
volta. Amanda trazia duas sacolas cheias de alimentos. Colocou-as sobre uma
bancada que havia numa das paredes e começou a tirar os alimentos e
distribuí-los, um ao lado do outro sobre a bancada. Renam alegrou-se de ver a
menina retirar das sacolas cuca, coxinhas de galinha frita, algumas frutas,
suco de laranja e pedaços de bolo de chocolate. Ambos se serviram e começaram a
refeição. Amanda parecia estar com um pouco de fome, mas nada que se comparasse
a Renam, que parecia completamente faminto: após uma fatia da cuca, comia uma
coxinha de galinha, em seguida uma fruta e um pedaço de bolo. Finalizava com um
copo de suco, que sorvia num só gole. Repetiu três vezes.
—
Nossa, mas você estava mesmo com fome!
—
Hum, bem, é… — respondeu Renam, um pouco embaraço. — Acredito estar dois dias
inteiros nesta casa. Fiquei o tempo todo percorrendo caminhos intermináveis, sem
nunca chegar a lugar nenhum.
—
E não dormiu este tempo todo?
—
Não, Amanda. Esta casa é absurdamente grande. Parece ser maior ainda que o
castelo do rei.
—
Sim, ela é maior — respondeu a garota, com um sorriso. — Há muitos quartos,
salas de todos os tipos, uma grande quantidade de corredores e uma infinidade
de passagens secretas. Também existem muitos atalhos, de modo que às vezes se
chega em becos sem saída, mas há momentos em que os caminhos vão se ligando de
uma forma tal, que é possível cobrir grandes distâncias.
—
Como sabe disso tudo?
—
Você parece exausto, Renam. Por que não descansa agora? Prometo que, ao
acordar, vou lhe contar tudo.
Cansado
da maneira como estava, o monge não discutiu. Deitou-se e dormiu imediatamente.
Ao se acordar, viu Amanda deitada ao seu lado. Levantou-se sem fazer ruídos,
para não acordá-la. Devia ter dormindo muito e a garota não agüentou esperar
que acordasse, pensou o rapaz. Dirigiu-se ao reservado, fez sua higiene pessoal
e retornou à sala. Ainda sobrara um pouco de alimentos e resolveu fazer mais
uma refeição. Ao terminá-la, Amanda se acordou.
—
Olá, Renam, dormiu bem?
—
Ah, sim, muito obrigado. E você?
—
Dormi um pouco, não estava com muito sono.
—
Eu ainda senti fome ao acordar e devorei o restante dos alimentos. Espero que
não se importe.
—
Não, claro que não. Você passou tanto tempo dormindo que eu tive tempo de ir à
cozinha buscar mais alimentos. Depois que você dormiu, eu fiz mais duas
refeições.
A
menina fez uma pausa e sorriu para Renam, que retribuiu.
—
Bem, vou ao reservado. Quando voltar, vou lhe contar a minha história e você
saberá como me ajudar.
Ao
voltar do reservado, Amanda sentou-se no chão, próximo à Renam. Olhou para seus
braços musculosos, tórax e pernas bem desenvolvidos. O jovem guerreiro ainda
usava apenas uma bermuda, pois deixara seu traje de guerra secando no
reservado, pendurado em pequenos ganchos afixados nas paredes, com o objetivo
de estender roupas.
—
Você é bem forte. E muito habilidoso também. Eu o vi derrotar vários homens na
sala de armas. Onde aprendeu a lutar tão bem?
—
Eu… hum… sou um monge.
—
Ah, entendo. Treinou sua vida inteira, não?
—
É, foi isso — respondeu, sacudindo os ombros.
—
Você é deste reino?
— Não, eu sou de Daran.
Estou aqui numa missão especial.
— Conhece a história da
minha cidade?
— Sim, li a biografia do
rei Julian.
Amanda sorriu e balançou
levemente a cabeça para os lados.
— Não acredite em tudo o
que aquele canalha escreveu.
Com um suspiro, começou a
impressionante narrativa:
— Meus avós maternos foram
os rei e rainha do reino de Lituânia. Promoveram, com os reis de Valença, o
casamento de minha mãe com o príncipe desta cidade, unindo os dois reinos.
Minha mãe e o príncipe tiveram quatro filhos: Augusto, Julian, Cassiano e eu.
Meus avós maternos faleceram quando eu ainda nem era nascida. Meus pais
assumiram os seus lugares, governando os reinos em conjunto com os avós por
parte de pai. Logo que fui concebida, esses avós também partiram. Meus pais
assumiram sozinhos a administração de dois reinos, que agora estavam unidos e
se chamavam Damaris. Deram início à construção dos grandes muros, com o
objetivo de tornar o reino mais seguro. Augusto, o meu irmão mais velho, tinha,
nessa época, vinte e cinco verões de idade. Dez verões depois, a muralha que
circundava a cidade inteira estava pronta. Uma outra muralha seria ainda
construída, isolando uma área da cidade. Era neste local que havia o castelo
onde meus pais moravam. Porém, após a morte dos outros governantes, decidiram
mudar para o castelo deles e fazer deste uma prisão. Criaram um poderoso
exército, que passou a prender os criminosos neste local. Em poucas luas
cheias, havia milhares de presidiários nesta região. Porém, antes que
prendessem uma única pessoa, contrataram agricultores para plantar em grande
parte destas terras. Também enviaram para cá um rebanho numeroso, além de abrir
muitos poços artesianos e encher o lago de peixes. Criaram todas as condições
para que as pessoas que fossem condenadas a morar aqui tivessem meios de
sobrevivência.
Renam ouvia atentamente a
narrativa de Amanda. Algumas coisas coincidiam com o que lera em ambos os
volumes que formavam a obra biográfica do rei, mas outras divergiam. O muro,
por exemplo, não demorara vinte verões para ser erguido, apenas dez; foi um exército
que tirou os criminosos da rua, e não o guerreiro da Armadura de Prata; o rei
comentava que a área isolada da cidade era uma região desértica, onde só havia
um lago, mas o fato é que a casa que servia como prisão já existia e tinha sido
morada de reis. Enquanto ouvia, Renam comparava a narrativa da menina com a
história dos livros.
— Mesmo prendendo milhares
de criminosos, ainda restavam muitas quadrilhas — prosseguiu Amanda. —
Sentindo-se ameaçadas de uma maneira numa antes vista, os criminosos elaboraram
um plano para assassinar meus pais. Eu tinha quase onze verões de idade quando
eles foram mortos. Meu irmão mais velho assumiu o trono, mas Julian, o segundo
irmão a ter o direito de se tornar o governante, fez Augusto renunciar o poder.
Para conseguir isso, seqüestrou a mim e o meu irmão mais novo e ameaçou Augusto
que iria nos matar se não fosse embora deste reino. Receoso de que algo nos
pudesse acontecer, nosso irmão mais velho não teve escolha. Fomos trancados no
calabouço do outro castelo. Não nos puseram em uma cela, podíamos caminhar
livremente entre elas, mas as portas que davam acesso ao calabouço foram
chaveadas. Mas o fato é que meus pais, percebendo a insanidade de Julian, nunca
conseguiram demonstrar confiança nele, o que o deixava mais louco do que já
era. Por esse motivo, segredaram a mim e aos outros irmãos assuntos
relacionados aos dois castelos, que só podiam ser conhecidos por pessoas da
família. Informaram-nos sobre o caminho secreto que foi construído para unir os
dois castelos, ligados por portas ocultas em ambos os calabouços. Deram-nos os
mapas de ambos os castelos e nos fizeram estudá-los exaustivamente. Pouco tempo
depois disso, foram assassinados e Julian tomou o poder ao executar seu plano
cruel. Aproveitara-se da morte de nossos pais para colocar em prática uma
estratégia que, embora terrivelmente maligna, tornava-o o rei de Damaris. Mas
meu irmão e eu não ficamos presos muito tempo. No mesmo dia escapamos pela
porta oculta, que permitia o acesso à passagem secreta.
Amanda parou um momento
para tomar fôlego. Havia em seus olhos uma tristeza que fez Renam imaginar que
o pior ainda estava por vir.
— Antes de nos prender,
Julian confessou seu mais ambicioso plano: estava com a Armadura de Prata e
aguardava ansiosamente pela Ametista Mágica. Seu bruxo estava em posse do Tomo
Negro e logo ele se tornaria o dono do mundo. No dia seguinte, meu irmão voltou
ao castelo e encontrou as portas da masmorra abertas. Julian, ao saber de nossa
fuga, deve ter imaginado que seria tolice manter as portas chaveadas. Dessa
maneira, meu irmão pôde explorar o castelo nas altas horas da noite, localizar
e roubar a armadura, trazendo-a para cá e escondendo-a nesta sala. Meu irmão
voltou várias vezes ao castelo, numa desesperada tentativa de localizar a ametista.
Há algumas luas-cheias, durante sua exploração pelo castelo, foi pego e
confessou ter roubado a armadura e a escondido nesta casa-prisão. Mas conseguiu
fugir e continuar sua missão de localizar a gema. Nos dias seguintes, Julian
enviou muitos homens para este local, onde acabaram sendo assassinados pelos
moradores desta área. Há vários dias, meu irmão partiu para o castelo e não
retornou mais. Imagino que tenha sido pego novamente, mas acho que logo
escapará mais uma vez.
Enquanto a menina fazia outra
pausa, Renam sentia um frio na barriga. Tinha a certeza de que suas próximas
palavras iriam ferir a garota, mas não havia alternativa; tinha que lhe fazer
uma pergunta:
— Seu irmão é loiro, da
minha altura, com uma pequena mancha no lado direito do rosto e usava roupas
pretas, similares às minhas?
Amanda olhou-o espantado.
— Como você sabe?
A voz do monge soou suave
e gentil, quando relatou à menina o dia em que o rei apareceu na sala de
treinamento, exibindo seu prisioneiro. Apresentara-o como um traidor, mas agora
Renam sabia que se tratava de outra mentira do rei, talvez com o propósito de
inibir práticas semelhantes. Renam também contou a Amanda que, no dia em que
havia sido enviado para este lugar, além de ver o rei Julian matar Joshua,
também ouviu dele que mandara matar o traidor que capturara. Amanda ouvia
atentamente Renam, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Chorava mais uma perda,
pois o odiado rei cumprira uma de suas muitas promessas. Renam se aproximou e a
abraçou carinhosamente. Doía-lhe o coração vê-la soluçar daquela maneira.
Ficaram abraçados, um tempo, até que Amanda ergueu a cabeça e, olhando
fixamente nos olhos de Renam, perguntou:
— Você vai me ajudar?
— O que preciso fazer?
Com movimentos delicados,
Amanda afastou-se de Renam e prosseguiu em sua narrativa:
— Como meu irmão estava
demorando muito para retornar, decidi levar a armadura e atirá-la no abismo. A
armadura não era muito pesada, eu podia carregá-la. Mas no meio do caminho,
alguns homens me viram. Tive que soltá-la, pois embora conseguisse andar com
ela, jamais poderia correr ao carregá-la. Um deles apoderou-se da armadura, mas
os outros vieram atrás de mim. Despistei-os rapidamente, entrando numa das
muitas passagens secretas. A partir daí, comecei a procurar pela armadura e a
localizei numa sala que, por reunir objetos de valor, acredito que a
transformaram na sala do tesouro. O problema é que sempre ficam vários
seguranças em cada um dos corredores que dá acesso à sala.
— Seguranças? Mas as
únicas pessoas mandadas para cá eram criminosas, de acordo com o rei. Por que
mandaria seguranças para este lugar se o local é isolado e, para torná-lo um
presídio do qual a fuga seja impossível, várias casas de vigias foram
construídas no alto dos muros, impedindo-os assim de os escalarem?
— Você sabe muito pouco
sobre o nosso reino, Renam. E boa parte do que sabe não passa de mentira.
Quando a área isolada da cidade ficou pronta, os reis, ou seja, meus pais,
contrataram vários trabalhadores para trazer a este local uma boa quantidade de
gado e cultivar a terra. Além do gado, também enviaram vários outros animais
como aves, coelhos e abelhas. A idéia era que os presidiários pudessem ter
meios de se sustentar. Quando o poderoso exército formado por meus pais iniciou
sua implacável perseguição aos criminosos, bastou poucos dias para que este
lugar estivesse infestado de pessoas da pior espécie. Esses homens e mulheres,
ao chegar aqui, mantiveram seus péssimos hábitos de higiene. A sujeira
espalhada pelo ambiente trouxe consigo insetos, baratas, aranhas, cobras,
camundongos e outras pragas que geraram doenças suficientes para começar a
dizimar os animais e plantas da região. Logo os presos começaram a perceber
que, devido ao péssimo estado em que a área isolada se encontrava, era só
questão de tempo até que ficassem sem comida. Formou-se então um comitê que
tinha por objetivo disciplinar as pessoas condenadas a viver aqui. Agora teriam
responsabilidades. Seriam divididas em grupo e cada grupo realizaria um
trabalho diferente. Aqueles que não conseguissem se enquadrar neste novo
sistema, seriam mandados para o calabouço. Ficariam um tempo lá e então lhes
seria oferecida uma nova oportunidade de se adaptar no atual regime.
— Como sabe tanto sobre
esta área?
— O comitê elegeu um líder
que governaria este região com mãos de ferro. Seu cargo era equivalente ao de
um rei. Meu irmão e eu, escondidos nos locais secretos deste casarão,
localizamos a sala que este homem utiliza como seu escritório. A partir de
então, começamos a ler os relatórios que ele fazia sobre as reuniões com o
comitê e os pedidos das pessoas que o formavam. Desta maneira, passamos a
conhecer todos os problemas que este lugar apresentava e suas possíveis
soluções. Foi lendo estes relatórios que descobrimos a localização da Armadura
de Prata.
— O líder fazia algum
comentário sobre a armadura? Pretendia utilizá-la de alguma forma?
— Não creio. Como todo
mundo sabe, pelo menos os que conhecem a história, uma das medidas de
segurança, adotadas pelas pessoas que queriam evitar novas utilizações para a
armadura, foi replicá-la centenas de vezes. Dessa maneira, ficaria difícil
localizar a verdadeira armadura. Não acredito que o líder e os que formam o
comitê saibam que esta é a original. Imagino que pensam tratar-se apenas de uma
imitação. Se não fosse assim, certamente a armadura seria muito comentada nos
relatórios e não apenas guardada na sala do tesouro.
— Bem, se eles ignoram que
seja a verdadeira armadura, então temos uma grande vantagem: ela será
considerada apenas como um entre muitos objetos de algum valor.
— Entendo o que você quer
dizer, Renam. Se soubessem o que têm em mãos, provavelmente a esconderiam.
— E neste caso, poderia
ser impossível localizá-la.
— Sim, mas isso não quer
dizer que nossa tarefa seja mais fácil. Muitos guardas protegem as entradas que
dão aceso à sala onde a armadura se encontra. Além disso, vários outros
permanecem dentro da sala o tempo todo.
— Dentro da sala? Mas como
é que sabe?
— Daqui a pouco lhe
mostrarei. Mas o que me preocupa agora é que, se houver luta dentro da sala, o
som será ouvido nos corredores. Você provou que pode enfrentar sete ao mesmo
tempo, mas será capaz de lutar da mesma maneira contra sessenta?
O monge sentiu um frio na
barriga. Apesar da menina ser apenas uma garotinha, conseguia intimidá-lo de
uma maneira que ninguém era capaz. Percebendo a surpresa no rosto do rapaz,
Amanda acrescentou:
— Quatro corredores dão
acesso àquela sala. Em cada corredor permanecem doze vigias, e no interior da
sala mais doze.
— A quantidade de guardas
pode ser um forte indício…
—… de que o líder e o
comitê saibam a verdade sobre aquela armadura? — completou Amanda, o pensamento
de Renam. — Sim, isso também havia se passado em minha cabeça. É uma
possibilidade, admito.
— Você emprega palavras
difíceis para alguém da sua idade.
— Eu leio muito —
respondeu Amanda, sorrindo.
— Você disse que me
mostraria como ficou sabendo a respeito do que ocorreu dentro da sala.
— Claro. Venha comigo.
Saíram da sala e
caminharam por um corredor, até que chegassem numa porta oculta, disfarçada de
pintura em alto relevo. Amanda abriu a porta e entrou na frente, conduzindo
Renam por uma imensa escada que dava acesso a uma sala escura. Ao entrar na
sala, esperaram alguns momentos para que os olhos se ajustassem à falta de luz.
— Este local parece um
sótão.
— É um respiradouro.
— O quê? — perguntou
Renam, surpreendido com uma palavra que nunca tinha ouvido.
— Este reino é muito
antigo e sempre foi governado pelos membros da minha família. Há centenas de
verões, um de meus ancestrais sonhou em construir o maior castelo do mundo.
Embora fosse rei, não era rico, pois quando moço gastara toda a fortuna
herdada. Ao assumir o trono, estava endividado. Mas os impostos geravam uma boa
renda. Em alguns verões, quitou todas as dívidas e começou a colocar em prática
sua idéia de construir uma casa absurdamente grande. Como só tinha os impostos,
a construção se desenvolveu de maneira lenta. Ao falecer, apenas a vigésima
parte da mansão estava concluída. Além disso, deixara grandes dívidas que
deveriam ser pagas pelo filho, que assumiria seu lugar. Até o final de seu
governo, o rapaz ficou apenas pagando contas. Seu herdeiro deu prosseguimento à
construção e, durante toda uma vida, não conseguiu chegar nem na metade da
obra. E assim, de geração em geração, a construção foi se arrastando. Mas todos
os reis que participaram da tarefa de construir esta mansão seguiram fielmente
a planta, que foi elaborada por aquele homem que imaginou que esta casa, devido
ao seu imenso tamanho, tornaria o ar rarefeito. Assim, desenhou várias colunas
em forma de torre, que circundam toda a mansão e apresentam pequenas janelas,
que permitem a passagem do ar. Entre um pavimento e outro há um espaço vazio
que recebe o ar canalizado por essas pequenas aberturas. Cada respiradouro distribuirá,
através de pequenos quadrados no chão, o ar apenas para o pavimento que se
encontra sob ele.
Amanda caminhou até um
pequeno quadrado no chão, que apresentava uma grade de ferro. Ajoelharam-se
para olhar pelo orifício. Embora a visão de Renam fosse limitada, percebeu
estar olhando para a sala do tesouro, como lhe dissera a garota. De onde se
encontrava, pôde ver belas cadeiras e bancos, armários feitos com o melhor tipo
de madeira, vasos, bandejas, jarras, pratos, copos e talheres de ouro e muitos
quadros, que pareciam pintados a óleo. No centro da sala, sobre uma pilha alta
que estava afastada de todas as outras, estava a Armadura de Prata. Mas, como
dissera Amanda, também havia vários homens cuidando da segurança do local.
Apontando para um lado, Amanda mostrou a Renam uma pilha de objetos sobre uma
mesa de ouro, atrás da qual se escondia uma passagem secreta. Sugeriu ao monge
que a utilizasse, caso não conseguisse entrar ou sair da sala por qualquer uma
de suas portas.
— Já vi o suficiente. Venha
— falou o monge, tocando no braço da menina.
— Para onde vamos?
— À sala de armas. Leve-me
até lá por um atalho. Quero chegar o mais rápido possível.
A garota ficou
momentaneamente sem fala, tão surpresa estava. Conduzia Renam por um caminho
seguro para chegar até a sala de armas, admirada com o fato de que o guerreiro
enfrentaria tantos oponentes de uma só vez.
Chegaram no local mais
rápido do que Renam previra. Armou-se de uma forma que deixou Amanda espantada:
colocou dois braceletes, cada um do tamanho de seus antebraços; em suas costas
posicionou duas espadas, que ficaram em forma de X; também prendeu uma lança
que, embora pequena, ultrapassava um pouco a altura de sua cabeça; pôs um cinto
que continha acessórios para múltiplas funções — pequenas esferas para produzir
fumaça, lâminas em forma de estrelas em miniatura e cubos mágicos explosivos;
entre o joelho e o tornozelo, fixou um nunchaku em cada perna.
— Não há outra maneira.
Terei que entrar em confronto direto com esses homens.
— Mas são sessenta
guerreiros, Renam. Dificilmente sairá com vida desta batalha.
— Não tenho escolha. Se
não levar logo a armadura para o rei…
Amanda assustou-se ao
ouvir isso o interrompeu a fala do monge:
— Como assim levar a
armadura para o rei? Em vez de me ajudar vai me trair? Eu confiei em você —
disse, furiosa, apontando um dedo para Renam.
— Amanda, eu não lhe menti
quando disse que era de outro reino e estava em missão especial nesta cidade.
— Ah, então você quer
levar a armadura para o outro rei. Mas, Renam, ela é perigosa demais. Devemos
jogá-la no abismo e…
— Não, Amanda, você está
entendendo mal. É para o rei Julian que entregarei a armadura.
Renam
fez um rápido comentário sobre sua missão. Falou de seu amigo Joshua, da
traição de Naêmia, de suas tentativas de localizar, no castelo, a Ametista
Mágica e, por fim, do que devia fazer nesta imensa casa a fim de salvar Karine.
— Eu entendo — falou
Amanda, em tom triste, após um momento. — Sei o que é perder um ente querido.
Mas tenha em mente, Renam, que poderá estar perdendo muito mais se lhe entregar
a armadura. Talvez devesse considerar que o ideal é sacrificar a moça…
— Não vai ser necessário.
Confie em mim, Amanda, eu tenho um plano.
— Um plano? Que plano será
suficiente, depois que o meu irmão se tornar invencível?
— Confie em mim, Amanda,
por favor. Não podemos mais perder tempo, o momento agora é o de salvar Karine.
Depois cuidamos do rei.
— Sei que você é um
lutador excepcional, o melhor que já vi. Mas conseguirá derrotar alguém
invencível?
— Ele será derrotado antes
de se tornar invencível. Confie em mim — disse o monge, com um leve sorriso.
Amanda analisou aquele
rosto tranqüilo e, após alguns momentos, balançou a cabeça em sinal de
aprovação ao pedido do monge.
— Muito bem, Renam. Venha
comigo.
Amanda conduziu o jovem
guerreiro através de algumas passagens que se cruzavam, saindo próximo a um dos
corredores onde estavam os seguranças.
— Espere-me na sala onde
se esconde, Amanda.
— Tenha cuidado.
Renam sorriu para a menina
e observou-a afastar-se em direção ao local que servia como seu quarto. Ela
havia salvado a vida dele, na medida em que lhe proporcionara alimentos e um
lugar para dormir. Dessa maneira, o guerreiro não poderia desapontá-la; teria
que dar o máximo de si. Começou a andar pelo corredor, ciente de que sua
batalha logo iniciaria. Após alguns momentos de caminhada, o corredor fez uma
curva. Em seguida tornou-se reto novamente, possibilitando ver uma das portas
da sala do tesouro. Não foi somente a porta de entrada da sala do tesouro que
Renam avistou, logo após a curva; em pé, com as costas próximas às paredes,
estavam duas fileiras de seis guerreiros, uma de frente para outra. Mesmo
observando o monge se aproximar, não esboçaram reação. Apenas olharam em sua
direção por um breve instante. Renam sabia que seria atacado apenas quando
estivesse no meio daquelas fileiras. O objetivo daqueles homens era
surpreender, o que sugeria que fossem guerreiros letais — pensamento que se
formou rapidamente na cabeça do jovem guerreiro. Abaixou-se e retirou os dois nunchakus,
que havia colocado entre os joelhos e tornozelos. Girou-os lentamente, enquanto
caminhava na direção daqueles homens. Ao se aproximar da fila, parou. Olhou
para os homens, que apenas o encaravam com olhar desafiador. Renam atirou os
nunchakus no chão, fazendo-os cair no centro das fileiras. Ao dar meia volta,
percebeu o sorriso maldoso dos homens. Afastou-se alguns passos e parou.
Começou a dar saltos mortais para trás, alcançando, em poucos instantes, as
armas que atirara no chão. Surpreendidos pela estratégia de Renam, os
guerreiros hesitaram em atacá-lo. O breve momento de hesitação custou ao grupo
dois homens; o monge saltara, acertando dois guerreiros ao mesmo tempo com suas
armas, nocauteando-os na mesma hora. Agora não eram mais doze que enfrentaria.
Ao ver dois sendo derrubados simultaneamente, os guerreiros avançaram. Além de
usar os nunchakus para atacar, o monge também os utilizava para bloquear os
golpes daqueles homens. Combinando suas armas com técnicas de esquiva,
realizava uma defesa eficiente, com movimentos perfeitos. Quando Renam deu um
salto, acertando com um chute a cabeça de três homens que o circundavam,
restava somente mais um a ser derrotado. Mas o homem saiu correndo, certamente
com o objetivo de buscar reforços. Sem perder tempo, o monge atirou com força
um de seus nunchakus, que acertou a nuca daquele homem, fazendo-o desmaiar.
Aproximou-se da porta e
tentou abri-la, mas estava trancada. Pensou em derrubá-la com um chute, mas
parecia resistente demais. E mesmo que conseguisse, perderia o elemento
surpresa. Sua idéia era entrar furtivamente na sala, escondendo-se entre as
pilhas de objetos acumulados no local. Começou a revistar os guerreiros que
derrotara, na esperança de encontrar a chave que abrisse aquela porta. O último
que revistou foi o que tentara escapar. Renam sentiu a sorte lhe sorrir quando
colocou a mão no bolso direito da calça do homem e encontrou uma chave.
Entendeu o motivo pelo qual aquele guerreiro não quis enfrentá-lo: não apenas
queria buscar ajuda, como impedi-lo de ter acesso à sala do tesouro. O monge
aproximou-se da porta e a abriu num movimento rápido, entrando na sala e
fechando-a novamente na mesma velocidade. Havia pilhas e pilhas de objetos
depositados naquele lugar, dificultando sua visão para localizar seus inimigos,
mas, em compensação, também ser localizado por eles. Esgueirando-se entre os
objetos, começou a procurar pela Armadura de Prata. Seu plano era chegar até o
ponto onde ela se encontrava. Mas e depois? De onde ele estava não podia vê-la,
pois os objetos formavam elevações muito mais altas que o monge. Mas já tinha
visto a armadura do respiradouro. Sabia que ela se encontrava no alto de uma
pilha, bem no centro da sala, afastada de várias outras pilhas. Era como se
estivesse no meio de uma clareira. Estava, portanto, em campo aberto. De
repente, aconteceu algo que fez Renam desviar sua atenção para os seus
sentidos: ouvira um som próximo. Em seguida, uma sombra projetou-se no chão,
indicando que alguém passava pela pequena torre de objetos onde o monge se
ocultava. Quando o rosto do homem tornou-se visível, Renam chutou-o, quebrando
o nariz do segurança e nocauteando-o na hora. Segurou o corpo antes que
atingisse o chão, com o objetivo de evitar o som provocado pelo impacto.
Colocou o homem em um espaço entre dois objetos que estavam bem na base de uma
das pilhas próximas, observando que o corpo poderia passar despercebido. Uma
idéia então lhe ocorreu: poderia eliminar seus adversários daquela sala desta
forma, derrotando um de cada vez. Isso evitaria a confusão que poderia ser
ouvida pelos guardas dos outros três corredores, aumentando exponencialmente as
suas chances de sucesso. Mas o fato é que a idéia somente poderia ser colocada
em prática se a sala fosse cerca de cinco vezes menor. Como era imensa, suas
possibilidades de encontrar e derrotar todos os guerreiros daquela sala, antes
que os que estavam desmaiados no corredor recuperassem a consciência, eram
praticamente nulas. A melhor tática seria continuar se dirigindo ao centro da
sala, até chegar à torre de objetos que exibia a armadura em seu ponto mais
elevado. Dessa maneira, continuou se encaminhando ao centro da sala. Em
determinado momento, avistou o espaço vazio, com a torre de objetos e a
armadura. Circulando a armadura, havia seis homens. O monge começou a caminhar
em direção à Armadura de Prata, esperando ser atacado por aqueles guerreiros
logo que fosse avistado. Mas eles nada fizeram. Simplesmente ficaram olhando-o
até que alcançasse a pilha de objetos. Foi nesse momento que ouviu um grito. Em
poucos instantes, os sons de outros gritos foram se somando ao som do primeiro,
produzindo barulho suficiente para ser ouvido de longe. Olhando a sua volta,
percebeu que os gritos eram, na verdade, os sons produzidos pelos apitos que
aqueles homens assopravam a plenos pulmões. Enquanto escalava a coluna de
objetos empilhados, sabia que seu tempo era curto. Logo as três portas dos
corredores se abririam e ele teria quarenta e sete adversários. No alto da
pilha, retirou a corrente de sua cintura e a amarrou na armadura, com o
objetivo de prendê-la em suas costas. Ao descer, os homens continuavam parados,
apitando. Renam desprendeu a corrente, retirando a armadura de suas costas.
Assim, quando tivesse que lutar, o monge a colocaria no chão, possibilitando-lhe
total liberdade de movimentos.
Renam caminhava em direção
às colunas de objetos, que formavam um verdadeiro labirinto. Uma vez no meio de
todo aquele material, poderia despistar os seguranças e fugir por uma das
quatro portas. Deveria sair daquela sala o mais rápido possível, pois era certo
que alguns dos seguranças que se encontravam no corredor, em vez de entrar na
sala para caçá-lo, iriam buscar reforços. Em breve a sala e os corredores
estariam infestados de homens a sua procura, eliminando qualquer possibilidade
de fuga. Quando estava quase saindo do espaço aberto, parou. De todos os lados,
os guardas vinham em sua direção. Enfrentá-los seria investir em um tempo do
qual não poderia dispor. Assim, retirou de seu cinto quatro esferas de fumaça e
jogou-as no chão. A escuridão momentânea permitiu-lhe passar entre os
guerreiros sem ser detectado. Ninguém sabia para que lado o monge havia se
dirigido. Quando a fumaça se dissipou, o jovem guerreiro tinha se escondido
entre os objetos do depósito. A única certeza dos homens era que o monge não
saíra da sala ainda, pois todas as portas estavam trancadas e com vários
guardas próximo a cada uma delas, bloqueando todas as saídas. Qualquer
tentativa de fuga iria gerar barulho de luta, alto o bastante para ser ouvido
em toda a sala.
O
monge percebeu esse fato ao se mover silenciosamente entre os objetos e
aproximar-se de uma das portas. Ali estavam seis homens, fortemente armados.
Não haveria tempo para derrotar tantos homens, e escapar por aquela porta, sem
que todos os outros guerreiros o alcançassem. Afastou-se silenciosamente. Ao
olhar na direção de uma mesa de ouro próxima a uma parede, com várias caixas
empilhadas sobre ela, Renam lembrou das explicações de Amanda quando lhe
mostrou, no respiradouro, aquela pilha de objetos e lhe revelou que por trás se
escondia uma porta secreta. Tirou de seu cinto dois cubos mágicos explosivos e
atirou o primeiro contra a pilha de objetos que se erguia sobre a mesa. O
estouro repercutiu em toda a sala, propagando-se, a uma boa distância, pelos
corredores de acesso à sala do tesouro. Os objetos da pilha foram lançados com
força para os lados pelo impacto da explosão, atingindo outras colunas de
objetos e derrubando-as no chão. Poucos instantes após a primeira explosão,
Renam jogou o segundo cubo explosivo. Desta vez, sem os objetos para
atrapalhar, o cubo foi em direção à porta secreta, destruindo-a ao se chocar
contra ela.
O
jovem guerreiro permaneceu imóvel, atrás de uma grande pilha de objetos. Por
entre eles, observava os guerreiros se dirigirem em bando para o local da
explosão. Num primeiro momento, pareceram surpresos.
—
O que é isso? Não parece ser uma sala — falou o que estava mais próximo do
buraco aberto na parede. — É um corredor — gritou, espantado, ao virar-se para
os outros.
—
Ora, vamos, Gregório, deve ser um dos corredores que contornam esta sala.
—
Não, não é. Ele se inicia aqui.
—
O quê? — perguntaram vários homens ao mesmo tempo.
—
Vejam vocês mesmo — falou Gregório, afastando-se da porta estraçalhada.
Os
homens ficaram surpresos ao constatar que Gregório tinha razão. O corredor se
iniciava naquele ponto e seguia pela direita, acompanhando a parede da sala do
tesouro.
Mas
o momento de surpresa passara e agora os homens queriam ação.
— Como aquele homem sabia
desta passagem?
—
Isso não importa agora, Ferdinando. O maldito está ganhando distância. Vamos
atrás dele antes que consiga fugir.
Todos
seguiram o conselho de Kaleb e se lançaram na passagem secreta, como cavalos de
corrida. Ao ver o último homem passar pelo buraco da parede, Renam
encaminhou-se rapidamente para a porta pela qual entrara. Passou pelo grupo de
homens que derrotara, ainda inconscientes. Encaminhou-se correndo para a
passagem que o levaria à sala onde era esperado por Amanda. Em poucos momentos,
conseguiu chegar.
—
Renam! — gritou Amanda, correndo em sua direção e abraçando-o com força. — Não
pude arriscar ir ao respiradouro, tive que esperar aqui mesmo. Ouvi muitos
gritos e duas explosões. Pensei, pensei…
—
Amanda, eu estou bem — disse Renam, alisando os cabelos da menina. — Estou com
a armadura. Agora, que tal sairmos daqui?
Amanda
afastou-se com delicadeza do monge. Sorriu ao ver a armadura.
—
O que foram aquelas explosões?
—
Lembra-se da passagem secreta, escondida atrás da mesa de ouro? Pois bem,
atirei um cubo explosivo e abri caminho para atirar outro em direção à porta.
Os seguranças imaginaram que eu havia escapado por ali e trataram de percorrer
aquele caminho. A propósito, onde eles irão parar?
—
Em qualquer local deste castelo, Renam. Aquela passagem é uma das muitas que se
liga com várias outras. Se aqueles homens não tiverem senso de direção, podem
ficar um bom tempo andando em círculos.
A
garota deu um sorriso e o monge retribuiu.
—
Agora me fale uma coisa, Sr. Monge. Que gritaria era aquela?
—
Ah, sim, era o som de vários apitos.
—
Apitos? Desde quando apitos emitem gritos?
—
Eu também fiquei surpreso. Parece que há artesãos bem talentosos por aqui.
—
Artesãos… pois sim. E pensar que fiquei preocupada à toa…
—
Sabe, Amanda, acho que você gostou de mim — falou o monge, sorrindo.
—
Não seja tão convencido — respondeu a garota, retribuindo o sorriso.
—
Bem, eu não guardarei os meus sentimentos apenas para mim. Gostei muito de
você. Adoraria se fosse minha filha de verdade.
—
Vamos embora então, “papai”.
O
coração de Amanda batia acelerado. Perdera sua família, mas com Renam, talvez
tivesse encontrado outra.
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