domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capítulo 18

A área isolada de Damaris

            Renam aproveitou o dia para fazer o que o rei havia sugerido: descansar. Ultimamente dormia pouco, a missão ocupava boa parte do tempo destinado ao repouso. Mas agora recuperaria o sono perdido e se sentia grato pela oportunidade. Dormira a manhã inteira, levantara para almoçar e voltara a dormir. Agora estava mais uma vez na sala real.
— Ainda falta um bom tempo para o sol se por, Renam. Quero que vá ao refeitório e tome um café reforçado. Poderá precisar! — exclamou o rei, em seu habitual tom frio.
— Quero ver a Karine.
— Você a verá após se alimentar. Então cavalgaremos até a entrada da prisão. Agora mexa-se! — bradou o rei, direcionando um olhar de desprezo ao jovem guerreiro.
Renam o encarou com olhos raivosos. Sentia o sangue esquentar em seu corpo, subir pelo pescoço e fazer seu rosto ficar enrubescido. Mas sabia que não tinha escolha a não ser fazer o jogo do rei. Ao menos por enquanto. Encaminhou-se para o refeitório e serviu-se de pãezinhos doces, salgadinhos, pedaços de pizza, uma fatia de torta e uma xícara de café. Com o excelente almoço e a bela refeição que acabara de fazer, sentiria-se nutrido até o entardecer do dia seguinte. Embora as refeições que fizera durante o dia estivessem deliciosas, o monge não conseguiu sentir o gosto dos alimentos. Seus pensamentos voltavam-se o tempo todo para Karine. A vida da moça dependeria de sua capacidade de encontrar e trazer para o castelo a Armadura de Prata. Para isso, teria que lançar mão de toda a sua inteligência, habilidade marcial e perícia como investigador. Mas seria suficiente? A casa, que em conjunto com a área isolada servia como o presídio do reino, era de dimensões alarmantes. E teria que ser imensa, pois abrigava milhares de homens e mulheres de personalidade psicótica, que outrora foram responsáveis por quase todos os problemas sociais do reino. Dessa maneira, quanto tempo precisaria para localizar a armadura e trazê-la de volta? Quanto tempo o rei estaria disposto a esperar? Perturbado com tais idéias, levantou-se e caminhou mais uma vez em direção à sala real.
    Onde está a Karine? — perguntou bruscamente.
— Mandarei buscá-la, mas devo avisar que não tolerarei traições. E provarei o que lhe digo: lembra-se do traidor que apresentei na sala dos monges? Pois bem, está morto.
O rei sorriu maliciosamente e balançou a cabeça para um de seus seguranças. O homem saiu da sala e, poucos momentos depois, retornou com Karine… e Joshua. Renam apertou os olhos em direção aos dois, ao ver como estavam sendo conduzidos à sala do trono: Karine estava rodeada por três seguranças. Os homens que a ladeavam apontavam uma espada para sua barriga e uma faca para a garganta, como da outra vez. Mas agora o rei tornara a visão mais odiosa ainda: o homem que se encontrava atrás da moça mantinha um grande machado erguido e um brilho cruel nos olhos, numa demonstração de que faria um excelente uso de sua arma na primeira oportunidade. As lágrimas de silencioso pânico, que escorriam pelo rosto da garota, faziam o coração de Renam sangrar. Joshua estava com as mãos amarradas, a boca amordaçada, uma corda no pescoço com um laço que poderia enforcá-lo e dois homens que caminhavam ao seu lado, apontando, cada um, uma lança em sua direção. Renam também não deixou de reparar na expressão facial do amigo, que aparentava cansaço. Mas por que Joshua tinha tal aparência?
— Você queria tanto ver sua namorada, foi tão insistente que acabei cedendo. E, para não sair por aí dizendo que sou mau, trouxe o seu amigo junto. Caled, por favor, faça as honrarias da casa — falou o rei, num tom de voz debochado.
A mando do rei, o homem segurou os ombros de Joshua e o virou, de modo que ficasse de costas para o monge. Em seguida, arrancou-lhe o casaco. Para extremo horror de Renam, as costas do amigo estavam totalmente cortadas. Joshua havia levado dezenas de chibatadas, assistidas por Karine. Em seguida, jogaram-lhe salmoura, aumentando exponencialmente a dor que já era insuportável. Joshua virou-se para Renam e olhou para o amigo monge por alguns instantes. Em seguida, perdeu a consciência. O jovem guerreiro aproximou-se velozmente de seu amigo, abaixou-se e o abraçou. Momentos depois, chamou-o pelo nome, deu leves toques em seu rosto, mas ele continuava imóvel. Ao vê-lo cair, Renam suspeitou que o pior havia acontecido. Agora, segurando o pulso do amigo, tinha plena certeza. Joshua estava morto. As chibatadas cortaram-lhe tão fundo e o bruxo perdeu tanto sangue, que quando lhe jogaram a salmoura já era tarde. Renam entrou em desespero. Ainda ajoelhado e abraçado naquele homem que o cuidara como se fosse um filho, começou a soluçar. Seu sofrimento atingiu o auge quando sentiu a dor dilacerar sua alma, como se uma mão agarrasse seu coração e o apertasse com toda a força, para que sangrasse até morrer.
— EU VOU TE MATAR, DESGRAÇADO! — gritou Renam, olhando furiosamente na direção do rei.
— Faça isso e sua garota também morrerá.
O rei estava a vários passos de distância, cercado por muitos homens de sua Guarda Imperial, ao lado de Karine, impiedosamente ameaçada — e aterrorizada.
Quando o monge se pôs em pé, todos os soldados ergueram suas espadas. Mas embora as lágrimas ainda corressem pelo rosto, Renam calculava possibilidades e media conseqüências. Sem dizer uma palavra, saiu da sala. O rei e seus guardas esperaram alguns momentos e então também saíram. Sabiam para onde o monge estava se dirigindo.
Renam saiu do castelo, andou em direção aos cavalos, escolheu um e cavalgou até chegar na entrada da prisão. O bruxo Jeofrey já estava lá algum tempo, pois o feitiço que estava fazendo era muito complexo — o portão não existiria para Renam nos próximos cinco dias.
Ao se aproximar, desceu do cavalo e observou por alguns momentos o bruxo, que gesticulava e realizava o que parecia ser um canto numa linguagem desconhecida. Após um tempo, o feiticeiro silenciou. Olhou para o monge, estendeu a mão em direção ao portão e balançou levemente a cabeça, indicando que o monge podia entrar na área isolada da cidade. O jovem guerreiro aproximou-se e projetou sua mão em direção à maçaneta do portão, com o objetivo de abri-lo. Porém, ficou surpreso ao ver sua mão atravessá-lo. Olhou para o bruxo, que apenas lhe disse:
— Você tem somente cinco dias.
E Renam compreendeu. O bruxo abriu uma espécie de porta mágica que o permitiria atravessar o portão, como se ele não estivesse ali.
No momento em que entrou na área isolada da cidade, o sol já havia se escondido e o monge se guiava pela luz do luar. Cego pelo ódio e dor que devastavam sua alma, o jovem guerreiro não conseguiu observar com atenção a paisagem na qual agora se encontrava. A lua estava iluminando o ambiente muito bem, mas o guerreiro era incapaz de contemplar a agricultura e a pecuária local; não enxergava as terras impecavelmente cultivadas, exibindo plantações de tomate, cenoura, beterraba, batata, abóbora, morango e alface, entre outros; não reparou na organização relacionada à criação de animais – e havia muitos tipos de atividades de criatório: avicultura, suinocultura, apicultura, sericultura, etc.
Tudo ali era limpo e organizado, sugerindo uma aldeia com pessoas de excelentes hábitos de higiene, em vez de um local que reunia marginais da pior espécie. Mas Renam estava machucado, triste e enraivecido demais para observar tantos detalhes a sua volta. O monge apenas queria encontrar a grande casa-prisão, invadi-la, localizar a Armadura de Prata e roubá-la. Teria que ser extremamente cauteloso, pois encontrava-se sozinho para enfrentar milhares de homens e mulheres criminosos. Teria que ser sorrateiro, esgueirando-se pelas sombras, indetectável. A vida de Karine dependia de toda a sua habilidade. Não poderia falhar.
Após passar pelo portão, Renam seguiu à risca as instruções que recebera do rei na noite anterior, ocasião em que fora informado sobre como chegar a grande casa. Caminhou sempre em frente, atravessando um bosque que se iniciava logo após a área cultivada e terminava cerca de mil passos depois. Em seguida, dobrou à direita e atravessou um lago, passando por uma ponte. Continuou em linha reta, cruzando uma mata que reunia grandes e pequenas árvores, arbustos, flores, folhagens e muita grama, numa área não muito extensa. Foi somente após atravessar aquela área pantanosa, que o jovem guerreiro viu a casa.
A luz do luar, filtrada pelo topo de algumas grandes árvores do pântano, iluminava parcialmente a parte da frente da enorme residência, conferindo a ela um aspecto fantasmagórico. A visão da casa fez com que Renam voltasse a ser o observador de antes, analisando circunspectamente sua estrutura. A casa era extremamente larga e alta. Exatamente em seu centro, havia uma grande porta que parecia ser a única entrada e saída; em cada lado da porta duas colunas erguiam-se como torres, exibindo, em toda a sua extensão, pequenas janelas semicirculares; nas paredes, haviam outras janelas no mesmo formato, porém em tamanho maior.
Observando as pequenas aberturas existentes nas colunas, Renam concluiu que sua função era permitir a circulação de ar no interior da casa; jamais conseguiria passar por qualquer uma delas. As janelas das paredes eram grandes o suficiente para permitir a passagem de um adulto, mas estavam altas demais. O único jeito era tentar entrar pela porta, considerando que dar a volta pela casa seria uma perda de tempo, devido as suas absurdas dimensões. E o monge não dispunha de muito tempo. Dessa maneira, esperou apenas que a noite avançasse mais, para entrar na grande casa e iniciar sua busca.
A lua assumia uma posição alta no céu, indicando a Renam que o momento de agir chegara. O jovem guerreiro aproximou-se da porta, na expectativa de que se encontrasse aberta. Para a sorte de Renam, não havia sido chaveada. Abriu-a vagarosamente, tendo o cuidado de não produzir ruídos. Entrou numa grande sala quadrada, que parecia ser um local onde aqueles criminosos se reuniam para planejar sua fuga — ao menos foi o pensamento que se passou pela cabeça do rapaz. Nas paredes dos lados e na dos fundos, havia diversas portas, sugerindo muitos caminhos a serem explorados, fazendo-o lembrar da grande sala circular do castelo do rei. Exceto por um detalhe: na grande sala circular, havia mesa e cadeiras; nesta sala nada havia.
Sem perder tempo, encaminhou-se para a porta mais próxima. Entrou num corredor que apresentava muitas portas de ambos os lados. O monge percebeu que estava passando por dezenas de quartos. Com passos silenciosos, encaminhou-se para o final do corredor que dava acesso a uma sala enorme, cheia de quadros, estátuas de argila, madeira e pedra, bancadas e pequenas mesas quadradas e circulares que exibiam muitos outros tipos de trabalhos artísticos. Renam não pôde deixar de admirar a perfeição com que foram confeccionados. Mas seu objetivo era localizar a armadura. Precisou de um bom tempo para constatar que não se encontrava exposta ali. Foi para a sala seguinte.
Renam admirou-se de ver a imensa sala, que reunia todos os tipos de móveis: mesas, cadeiras, armários, bancos, camas, balcões, escrivaninhas, arquivos e estantes. Foram projetados móveis de todos os modelos e tamanhos, organizados na sala de uma forma tal, que sugeria ao monge que se encontrava em um imenso depósito. O que estaria acontecendo? O rei lhe dissera que o enviaria a um local que servia como prisão da cidade de Damaris, mas o jovem guerreiro tinha a impressão que estava em outro reino. Passara por uma galeria de arte e agora se encontrava num imenso depósito de móveis. Para que todo aquele material? Quem o confeccionara?
Ao sair da sala, entrou num corredor, caminhando em linha reta do início ao fim. Ao final do corredor, chegou numa porta. Ao abri-la, avistou a escada que se projetava para baixo. Desceu a escadaria e começou a caminhar por um local que logo identificou como masmorra. De ambos os lados, havia pequenas salas com portas de grades, que poderiam servir de prisão a muitas pessoas. Embora houvesse um bom número daquelas salas, apenas algumas tinham um presidiário. Era a primeira vez que Renam via alguém de perto desde que entrara na área isolada da cidade. Como era muito tarde, todos estavam dormindo profundamente. O monge continuou seu caminho em silêncio. Ao atravessar as masmorras, encontrou outra escada e começou a subir.
Ao sair da escada, chegou num corredor que formava um T. Poderia seguir em linha reta, ir para a direita ou para a esquerda. Decidiu seguir em linha reta. À medida em que avançava pelo corredor, o jovem guerreiro observava as pinturas realizadas nas próprias paredes, tornando-o um tanto exótico. Ao final, Renam encontrou outra porta e a abriu cautelosamente. Chegara numa grande biblioteca. Observou que possuía um bom acervo e era bem organizada. Analisou rapidamente diversos livros e abriu alguns armários, na esperança de encontrar pistas da localização da Armadura de Prata, mas não teve sorte. Tentou encontrar o mapa daquela enorme casa, mas também não conseguiu. Desanimado, decidiu que era hora de sair dali e continuar sua busca em outros locais da imensa residência. Chegou mais uma vez no ponto em que o corredor se dividia em três e optou pelo caminho da direita. Caso não tivesse sorte em localizar novas pistas, pensou o monge, ao menos estaria fazendo um reconhecimento do lugar.
Seguiu pelo corredor, observando os quadros nas paredes. Havia muitos rostos, retratando pessoas de todas as idades. Nos dois lados e também nos dois sentidos daquele corredor, havia uma infinidade de quadros. Ao final, chegou numa imensa sala circular, que muito se assemelhava a um salão de festas. Pela enorme sala, eram distribuídas pequenas mesas quadradas com quatro cadeiras cada; no centro da sala, nenhum mobiliário havia, deixando-se um espaço vazio; próximo às paredes, contornando todo o imenso salão, estavam posicionados luxuosos bancos produzidos com madeira de Lei, o melhor tipo de tábua — e mais caro também; alguns armários, igualmente construídos com o mais fino material, abrigavam xícaras, pires, pratos e talheres de ouro; grandes vasos, com bonitas folhagens, enfeitavam o ambiente de forma a deixá-lo realmente agradável. Mas não foram as pequenas mesas com cadeiras, o espaço vazio no centro da sala, os bancos, os armários, a prataria ou os vasos com suas belas plantas que mais chamaram a atenção de Renam. O que deixou o monge boquiaberto foi o fato de que as paredes eram pintadas até o teto, com uma pintura que retratava uma única paisagem: uma floresta. A pessoa que se encontrasse naquela sala, pensava Renam, sentiria-se como se estivesse numa clareira. Para completar o toque realístico, o teto era construído em forma de abóbada, pintado de preto. O globo mágico de iluminação, diferentemente dos demais da enorme casa, emitia uma fraca luz e estava afixado não no meio da sala, mas entre o centro e o lado esquerdo do salão, numa evidente representação da lua. Pequeníssimas esferas, com prolongamentos em forma de pinos, realçavam a idéia de céu, pois assemelhavam-se a um grupo de estrelas. O jovem guerreiro não pôde deixar de admirar-se com a criatividade artística que o deixava quase hipnotizado. Tudo tão bem detalhado: a fraca iluminação para simular uma noite iluminada pelo brilho da lua, a disposição dos móveis, as decorações, sem falar no tapete que cobria todo o chão da sala e se assemelhava a um gramado. Como se não bastasse tudo isso, exatamente embaixo do globo de iluminação havia uma fonte em forma de estátua: uma linda mulher segurava um vaso que transbordava água, que caía no que parecia ser o poço de onde ela havia retirado a água. O lugar apresentava um visual fascinante. Até assimilar o efeito da aparência do ambiente, o guerreiro ficou momentaneamente esquecido de seu real objetivo. Mas logo recompôs-se, pois sua missão era importante demais para ser ignorada. Atravessou a sala e passou pela passagem em forma de caverna, situada no morro que fora esculpido na própria parede — mais uma decoração que tornara o local ainda mais incrível.
Enquanto avançava pela passagem em forma de caverna, com suas paredes rochosas, chão esburacado e o teto apresentando muitas estalactites, Renam refletia sobre a sala pela qual acabara de passar. Por que alguém se daria ao trabalho de projetar e construir algo tão criativo e belo numa prisão? Aliás, que tipo de prisão seria aquela? É bem verdade que vira algumas pessoas presas nas masmorras, mas o que lhe disseram era que toda a área servia como presídio. Ou seja, não deveria haver pessoas trancadas em celas isoladas umas das outras, dentro de um mesmo prédio, como era comum a todas as prisões. Tudo o que encontrara, até então, foi uma estrutura que sugeria uma outra cidade e não uma simples prisão. É bem verdade que a única casa que tinha visto, desde que cruzara os portões, fora aquela enorme residência onde agora se encontrava, mas o fato é que a área isolada da cidade era muito grande e bem que poderia haver outras casas por perto, reforçando a idéia de estar em outro reino. Ao final da passagem, encontrou uma escada. Agora tinha que subir. Mas antes de colocar o pé no primeiro degrau da escada, parou e olhou para trás. Sentia como se alguém o tivesse observando. Mas não viu ninguém, por isso decidiu prosseguir.
A escadaria, na qual Renam agora se encontrava, era extremamente bonita e luxuosa: os degraus eram feitos de madeira nobre, envernizados; em ambos os lados, a escadaria era protegida por paredes que se projetavam até o teto, decoradas com o desenho de uma paisagem em alto relevo; os corrimãos eram constituídos de ouro puro; o formato curvo da escadaria, embora a embelezasse mais, limitava o alcance da visão do jovem guerreiro. O monge andou com os ouvidos atentos, pois podia deparar-se com alguém. Prosseguiu cautelosamente, com os sentidos sempre em estado de alerta. Após um certo tempo naquela escada que parecia não ter fim, encontrou uma porta na qual estavam desenhados dois guerreiros travando uma batalha. Pela imagem esculpida na porta, Renam percebeu que encontrara a sala de armas.
A sala era quadrada e enorme. As armas estavam colocadas sobre pinos afixados nas paredes. Havia armas de todos os tipos e tamanhos, em quantidade suficiente para suprir as necessidades de centenas de guerreiros. Como todo o conteúdo estava pendurado nas paredes, o interior daquela sala formava um enorme espaço vazio.
Renam estava admirado com a sala. Olhava atentamente para as armas, reconhecendo o belo trabalho dos ferreiros e artesãos que as confeccionaram. Tinha vindo sem nenhuma arma, com o objetivo de se locomover com mais facilidade e rapidez por aquela enorme casa.
De repente, olhou para os lados. A estranha sensação de que alguém o observava voltara. Mas estava sozinho, como era possível? Estaria ficando paranóico? Decidido a deixar a sensação de lado, passou a observar as armas com mais atenção. Se houvesse necessidade de retornar ali, saberia o que escolher para levar consigo. Momentos depois, avistou outra porta. Começou a se encaminhar para ela, mas parou após três passos. Em silêncio, esperou que a porta atrás de si, pela qual entrara naquele lugar, fosse aberta.
— Lá está ele – gritou alguém.
Sem se virar, permitiu que as pessoas o cercassem. Quando o primeiro homem o atacou, Renam abaixou-se, abrindo totalmente suas pernas. Acertou um fortíssimo soco na barriga do homem. Colocou as mãos no chão, girou o corpo e projetou suas pernas para o alto. Num movimento incrível, acertara mais dois guerreiros. Pulando agilmente para trás, evitou um chute rasteiro de um adversário. Mas antes que seus pés tocassem o chão, acertou em cheio os peitos de outro. Quatro já estavam fora de combate. Saltando e girando o corpo, acertou um chute no rosto de outros dois adversários. Restava apenas um. O último era grande e forte. Fez uma seqüência de socos que foi facilmente evitada pelo monge. Em seguida, Renam projetou um chute na altura do rosto do homem. Como era muito forte, conseguiu segurar a perna de Renam. Mas antes que fizesse qualquer coisa, o monge projetou-se num salto espetacular, acertando com o pé que estava livre o queixo daquele homem. O monge girou no ar, dando uma volta completa. Quando seus pés tocaram novamente o chão, seu adversário era lançado a vários passos, caindo inconsciente.
O monge atravessou a sala, em direção à porta que avistara. Ao abri-la, começou a descer a escada em formato caracol que tinha diante de si. Sentiu-se como se estivesse numa estreita torre, pois uma imensa parede circular revestia a enorme escadaria, limitando o campo de visão do jovem guerreiro. A sorte do rapaz era que estava acostumadíssimo a exercícios físicos, do contrário ficaria cansado ao descer aquela escada de três mil degraus.
Finalmente terminara a escadaria. Renam agora se encontrava numa sala que o fez lembrar do castelo do rei Julian: uma sala com variado mobiliário, sugerindo múltiplas funcionalidades. Havia apenas duas diferenças em relação à sala do castelo, onde encontrara a biografia e uma parte do mapa: a sala onde se encontrava agora era bem maior e com mais móveis; além disso, apresentava duas portas — uma por onde o rapaz entrara e outra que poderia utilizar para sair dali. Renam observou a grande escrivaninha, os armários e as estantes. Eram os três tipos de possibilidades de descobrir informações sobre a Armadura de Prata. Por onde começar? Para alguém que adorava a leitura, essa era uma pergunta fácil de ser respondida. Sem perder tempo, encaminhou-se para as estantes. Com seu olhar de leitor experiente, percorreu as lombadas dos livros de geografia, numa tentativa de encontrar algo que tratasse daquela região. Mas aqueles livros comentavam apenas sobre comércio, produções artesanais em larga escala, agricultura e pecuária. Na estante em que se situavam os livros de biografia, não conseguiu localizar nenhum nome conhecido. E, após a leitura da biografia do rei, Renam conhecera muitos nomes de pessoas que faziam parte do reino de Damaris. Não precisou muito tempo para perceber que os livros daquelas estantes não o ajudariam, a exemplo de sua tentativa na biblioteca. Decidiu tentar a sorte na escrivaninha. Abriu todas as gavetas, analisou os documentos que encontrara, e mais uma vez frustrou-se com a falta de pistas sobre a armadura. Mas se houvesse alguma pista que o conduzisse ao objeto de sua procura, tinha que estar naquele lugar que parecia ser o centro administrativo daquela enorme residência. Com esta idéia fixa em seus pensamentos, dirigiu-se aos armários. Revistou um por um, mas não havia nada que pudesse servir de ajuda. Nem mesmo um mapa havia naquela sala, que pudesse orientá-lo naquela imensa mansão que parecia se igualar, em extensão, ao castelo do rei. Percebeu que dependeria única e exclusivamente da sorte para completar sua missão. Encaminhou-se para a segunda porta, com o objetivo de sair por um caminho diferente pelo qual entrara.
Ao passar pela porta, entrou numa sala semicircular que apresentava várias portas, embora fosse uma sala não muito grande. Mas o fato é que naquela parede semicircular havia trinta portas, o que reforçava a idéia de que a sala ao lado realmente funcionava como um centro administrativo da gigantesca mansão. Daquele ponto, seria possível acessar os principais compartimentos da casa. A exemplo do que fez na grande sala circular, no castelo do rei, Renam decidiu explorar o caminho ocultado pela primeira porta à esquerda, retornando àquela sala, se fosse o caso, e tentando a próxima porta. Sem perder tempo, dirigiu-se à primeira porta. Entrou em um corredor de péssimo aspecto, apresentando muitas rachaduras nas paredes, partes do reboco descascados e várias lajotas do chão quebradas, passando a impressão de que aquela parte da casa outrora havia sido terrivelmente depredada. Isso era muito estranho, pensava Renam, uma vez que todos os outros lugares pelos quais passara estavam em perfeito estado de conservação. Por que aquele corredor estava então daquele jeito, como se alguém o tivesse demolido deliberadamente? Os questionamentos iam se avolumando na cabeça do monge, na medida em que avançava. A cada passo, observava que o estado precário de conservação se estendia por todo o corredor. Enfim chegou em outra porta. Da mesma forma que o corredor, seu estado era péssimo; estava inclinada, com a dobradiça inferior arrebentada. Por causa de sua inclinação, não podia fechar totalmente, permanecendo apenas encostada em seu quadro. Ao tentar abri-la, desprendeu-se totalmente do quadro e foi deixada encostada na parede.
            O jovem guerreiro entrou numa grande sala circular, cuja aparência reproduzia o péssimo estado do corredor. Além das paredes e o teto estarem precisando de um novo reboco, assim como o piso que necessitava a troca de várias lajotas, havia também muitos móveis quebrados naquela sala. Que lógica poderia haver nisso? Por que algumas partes daquela casa pareciam novas, sendo que outras estavam em completo estado de destruição? Renam procurou outra saída, mas não encontrou. Resolveu retornar à sala semicircular e tentar a segunda porta.
            Desta vez, não havia corredor. Ao passar pela segunda porta, Renam entrou numa imensa sala. Embora fosse larga, o seu comprimento excedia em muito a largura, tornando-a retangular. Igualmente depredada, apresentava grandes blocos de reboco descascado, rachaduras nas paredes e piso, além de móveis quebrados. Pequenos animais como aranha, baratas e ratos infestavam o lugar e fugiam da presença do monge, escondendo-se entre os destroços ou sumindo pelas muitas rachaduras que as paredes apresentavam. Renam não pôde procurar pistas entre os móveis, tamanho o estado de sua destruição. Sem encontrar outra porta, retornou mais uma vez à sala semicircular.
            Retornando várias vezes à sala que lhe oferecia tantas opções de caminhos, Renam entrou em muitas outras salas e percorreu vários corredores. Desde que iniciara a exploração das possibilidades da sala semicircular, constatara que o estado precário das paredes e piso se estendia por trás de todas aquelas portas. Ao menos foi assim até que passasse pela décima oitava porta. Renam começou a caminhar em um corredor que, inicialmente, também apresentava rachaduras e partes do reboco descascadas. O monge olhava para as paredes, que apresentavam belos desenhos. Era realmente uma pena o péssimo estado das paredes, pensava o jovem guerreiro. Não podia deixar de imaginar a beleza que devia ter, na época em que fora construído. Prosseguiu caminhando naquele imenso corredor, que apresentava muitas curvas. Depois de um tempo, observou que o caminho se estendia retamente a uma grande distância. Renam continuou sua caminhada pelo corredor. Após um tempo, percebeu que algo mudara; as paredes, o chão e o teto pareciam diferentes. O monge apenas demorou para perceber a diferença porque, enquanto avançava, estava em profundos pensamentos. Mas em determinado momento, observou o que fazia a diferença: a partir de um certo ponto, o corredor estava totalmente restaurado; as pequenas rachaduras haviam sido tapadas; o reboco estava refeito e as lajotas do piso, que estavam quebradas, haviam sido trocadas. Faltava apenas completar a restauração com uma pintura. Após vários passos, Renam parou. Ainda poderia continuar, se quisesse, mas algo lhe chamara a atenção: encontrava-se mais uma vez no ponto do corredor que possuía formato de T. Estivera ali antes, ao sair da masmorra. Acabara de percorrer todas as direções que aquele ponto de encontro de corredores oferecia. Mais uma vez sentiu alguém o observando. Preocupado ao achar que estava imaginando coisas, ignorou novamente tal sensação. Bem, pensou o rapaz, se seguisse em frente, passaria mais uma vez pela parte do corredor que apresentava quadros afixados em ambos os lados, chegando na grande sala que simulava o ambiente de uma floresta. Se retornasse, voltaria mais uma vez à sala semicircular e poderia tentar a sorte na décima nona porta. E se optasse pelo outro corredor que aquele estava ligado, então retornaria à biblioteca.
            O jovem guerreiro sabia que só havia uma única alternativa a considerar: retornar ao caminho pelo qual chegara naquele ponto. Poderia seguir em frente para voltar à sala semicircular, mas seria muito demorado: andaria pelo corredor, atravessaria a sala que parecia uma floresta e utlizaria a passagem em forma de caverna para chegar numa escada, que dava acesso à sala de armas. Em seguida, teria que descer mais uma vez a escada de três mil degraus para somente então chegar na sala que dava acesso à sala semicircular. E era necessário retornar àquela sala, pois havia explorado apenas dezoito possibilidades entre trinta. Mal havia concluído este pensamento, avistou, no corredor que se ligava aquele no qual agora se encontrava, pessoas que gritavam e lhe apontavam. Virou-se para correr na direção da sala semicircular pelo mesmo caminho que acabara de utilizar, mas não deu um único passo. Imaginou que uma boa estratégia seria despistá-los na imensa sala escura, que apresentava a pintura de uma paisagem que cobria todas as paredes, fazendo a pessoa sentir-se no interior de uma floresta. A própria escuridão o ajudaria a ocultar sua presença, uma vez que seu traje era preto. Sem pensar duas vezes, Renam começou a correr até chegar outra vez na sala mal iluminada. O monge encostou-se na parede, próximo à escultura da colina. Ali formava-se um canto escuro, capaz de ocultar a presença do jovem guerreiro. Momentos depois, Renam observou vários homens passarem por ele, numa corrida desenfreada. Calculou que havia entre cinqüenta e sessenta homens. Entrar em confronto direto com eles seria uma terrível perda de tempo. Despistando-os desta maneira, pensava o monge, atrairia-os para um caminho que poderia também levá-los ao lugar onde pretendia ir, é verdade. Porém, demorariam muito mais tempo para chegar lá. E não saberiam qual porta Renam teria utilizado.
            Ao ver o último de seus perseguidores sumir de vista, Renam esperou mais alguns instantes para voltar ao local onde os corredores se encontravam, formando um T. Prosseguiria em direção a sala semicircular, com o objetivo de passar pela décima nona porta. Nesse momento, o jovem guerreiro começou a se sentir cansado. Não sabia exatamente quanto tempo havia transcorrido desde que entrara naquela enorme residência e iniciara sua exploração, mas calculava que, no mínimo, estava um dia e uma noite, sem parar, percorrendo salas e corredores sem fim. Mesmo um mestre das artes marciais possuía limitações. Precisava encontrar um local para descansar e não só isso, também precisava de alimentos. Mas como conseguiria atender a essas necessidades? Estava perdido naquela enorme mansão, não agüentaria continuar gastando sua força daquela maneira. Era necessário repor suas energias. A única saída era continuar a exploração das possibilidades oferecidas pela sala semicircular e apostar na sorte. Ao chegar no local onde os corredores se uniam, continuou a avançar na direção que tinha em mente. Após uma centena de passos, pela quarta vez teve a sensação de estar sendo observado. Na primeira vez, foi no final da passagem em forma de caverna; na segunda vez, foi na sala de armas, momentos antes de enfrentar aqueles sete guerreiros; e na terceira vez, foi ao chegar novamente no ponto em que os corredores formavam um T. Agora, tinha a mesma sensação. Renam confiava em seus instintos de guerreiro e sabia, portanto, que seus sentidos não o enganavam. Alguém, neste exato momento, o observava. Mas como era possível? Não havia ninguém a sua frente ou a suas costas. Estava completamente sozinho naquele corredor. Ou não? Prosseguiu cautelosamente, conseguindo, afinal, chegar mais uma vez na sala semicircular.
            O jovem guerreiro dirigiu-se à décima nona porta. Curioso para ver o que encontraria do outro lado, abriu-a rapidamente. Estava no alto de uma escada, que se inclinava retamente aos seus olhos. Renam avançava escadaria abaixo em um ritmo contínuo, cobrindo boa quantidade de degraus em poucos momentos. Pareceu ter passado uma eternidade quando finalmente a escadaria chegou ao fim. Encontrava-se agora em um corredor, cuja largura permitia que dez homens pudessem caminhar lado a lado. Seguiu em frente, observando o aspecto do local. O reboco das paredes e do teto estava intacto, embora a pintura estivesse muito desgastada, o que sugeria que aquelas paredes deviam estar naquele estado por muito tempo. A poeira acumulada no chão indicava que aquele caminho não era utilizado há muitos verões. O corredor prosseguiu até chegar numa curva. Após a curva, Renam parou. O monge não conseguia acreditar em seus olhos. Como era possível imaginar algo assim? Desde que chegara neste reino, surpreendera-se com a fabulosa criatividade arquitetônica, mas isso extrapolava tudo o que vira até então: diante de si, havia uma ponte com o comprimento de uns vinte passos; a presença da ponte era perfeitamente justificável, pois permitia atravessar o abismo —  que estava no interior daquela mansão; vigas colossais, da largura de dois braços e da altura de um homem, sustentavam as paredes, permitindo que o corredor também atravessasse o abismo. O jovem guerreiro começou a andar pela ponte e, ao chegar na metade, olhou para o precipício. Não era possível divisar sua profundidade, oculta pela escuridão que começava a se formar não muito abaixo do ponto onde o monge se encontrava. Sentindo-se curioso em relação a isso, juntou um bastão de ferro que alguém deixara na ponte e o deixou cair pelo abismo. Esperou um pouco com os ouvidos atentos, mas não ouviu o som da pancada contra o chão. Devia ser muito fundo mesmo, pensou. Sentindo que não podia mais perder tempo, seguiu em frente. Ao sair da ponte, o corredor adquiriu um formato sinuoso. Perdeu a noção de tempo e direção, devido à extensão absurda do corredor e as inúmeras curvas que apresentava. Após a décima curva, observou outra escadaria diante de si. Agora teria que subir. Ao final, encontrava-se diante de mais uma porta. Renam hesitou. Estava cansado de percorrer caminhos que pareciam não ter fim, sem nunca conseguir encontrar pista que o ajudassem em sua missão. Além disso, sentia fome. Quanto tempo se passara, desde que entrara naquela gigantesca mansão? Um dia? Dois? Não sabia, mas tinha em mente a necessidade de descansar e se alimentar. Nesse ritmo, não agüentaria muito mais tempo. Com certa relutância, abriu a porta. Renam quase entrou em pânico, pois chegara mais uma vez à sala semicircular, entrando pela vigésima porta. Antes que colocasse suas idéias em ordem, aconteceu algo que serviu apenas para complicar ainda mais a situação: a quinta porta se abriu, revelando os homens que despistara na sala que simulava o ambiente de uma clareira, numa noite de lua cheia.
            Renam passou imediatamente pela vigésima primeira porta. Considerou que, cansado como estava, seria tolice enfrentar aqueles homens. Correu desenfreadamente pelo corredor, formado por pequenos espaços retos ligados por curvas. Ao chegar no final, abriu a porta, que de um lado tinha formato de porta, mas do outro lado parecia ser um pedaço da parede, assemelhando-se aos quadros que estavam esculpidos em alto relevo. Ao fechá-la, o monge percebeu que poderia haver muitas portas por ali, pois não tinha como saber quantos daqueles desenhos cumpriam unicamente a função de quadro. A segunda coisa que chamou a atenção do jovem guerreiro era o fato de que estava mais uma vez próximo ao ponto onde os corredores se uniam, formando um T. Seu desespero aumentou um pouco mais. Desde que começara a explorar a mansão, parecia andar por becos sem saída ou em círculos. Ao chegar no local onde os corredores se encontravam, novamente mediu suas chances. Renam optou por se dirigir à sala de armas. Afinal, era um guerreiro e, se fosse hora de morrer, então morreria lutando. Iniciou sua caminhada pelo corredor, ciente de que sua trajetória chegava ao fim. Quando estava no meio do corredor, ouviu um deslizar de porta. Voltou-se pronto para o combate. Porém, surpreendeu-se ao ver que não tinha diante de si um adversário, mas uma menina loira, de apenas uns doze verões de idade.
            — Ei, moço, venha comigo, por favor.
            Sem perder tempo, passou pela porta aberta pela menina, que, por sua vez, tratou de fechá-la rapidamente.
            — Venha por aqui.
            Renam não a questionou. Apenas seguiu a garota, acreditando que chegara seu momento de sorte. Acompanhou-a pelo corredor, até chegar em outra porta que se ocultava na parede. A exemplo da porta anterior, esta também parecia um dos muitos quadros do corredor. O monge e a menina entraram numa sala pequena. A garota virou-se para o guerreiro e ficou olhando-o, sem dizer nada. Renam retirou o capuz, revelando seu rosto. Sentia que aquela menina iria ser de grande ajuda. Sem conter a curiosidade, passou a questioná-la:
            — Quem é você?
            — Meu nome é Amanda. Preciso da sua ajuda. E você, como se chama?
            — Renam. Eu estou exausto, Amanda, e faminto também. Receio não ter condições de fazer algo por você.
            — Utilizo esta sala como meu quarto. Aqueles tecidos dobrados no chão são a minha cama. Pode repousar ali. A cozinha não é longe. Trarei alimentos. E aqui há um pequeno reservado — falou a menina, abrindo outra porta.
            Renam dirigiu-se ao reservado enquanto Amanda foi até a cozinha buscar alimentos. Ao sair do reservado, esperou a volta de Amanda. O que faria uma jovenzinha como ela naquele lugar? Era apenas uma menina, mas parecia conhecer bem as passagens secretas para se manter oculta naquela mansão. Mas quais eram seus objetivos? Poderia confiar nela? E se o atraíra para uma armadilha? Bem, com suas forças exauridas, o jovem guerreiro sabia que não tinha escolha. Aquela menina era a única oportunidade de dar prosseguimento à missão. Isso se ela não traísse sua confiança, buscando os homens que estavam em seu encalço em vez dos alimentos que prometera. Esperou mais alguns momentos e finalmente a garota estava de volta. Amanda trazia duas sacolas cheias de alimentos. Colocou-as sobre uma bancada que havia numa das paredes e começou a tirar os alimentos e distribuí-los, um ao lado do outro sobre a bancada. Renam alegrou-se de ver a menina retirar das sacolas cuca, coxinhas de galinha frita, algumas frutas, suco de laranja e pedaços de bolo de chocolate. Ambos se serviram e começaram a refeição. Amanda parecia estar com um pouco de fome, mas nada que se comparasse a Renam, que parecia completamente faminto: após uma fatia da cuca, comia uma coxinha de galinha, em seguida uma fruta e um pedaço de bolo. Finalizava com um copo de suco, que sorvia num só gole. Repetiu três vezes.
            — Nossa, mas você estava mesmo com fome!
            — Hum, bem, é… — respondeu Renam, um pouco embaraço. — Acredito estar dois dias inteiros nesta casa. Fiquei o tempo todo percorrendo caminhos intermináveis, sem nunca chegar a lugar nenhum.
            — E não dormiu este tempo todo?
            — Não, Amanda. Esta casa é absurdamente grande. Parece ser maior ainda que o castelo do rei.
            — Sim, ela é maior — respondeu a garota, com um sorriso. — Há muitos quartos, salas de todos os tipos, uma grande quantidade de corredores e uma infinidade de passagens secretas. Também existem muitos atalhos, de modo que às vezes se chega em becos sem saída, mas há momentos em que os caminhos vão se ligando de uma forma tal, que é possível cobrir grandes distâncias.
            — Como sabe disso tudo?
            — Você parece exausto, Renam. Por que não descansa agora? Prometo que, ao acordar, vou lhe contar tudo.
            Cansado da maneira como estava, o monge não discutiu. Deitou-se e dormiu imediatamente. Ao se acordar, viu Amanda deitada ao seu lado. Levantou-se sem fazer ruídos, para não acordá-la. Devia ter dormindo muito e a garota não agüentou esperar que acordasse, pensou o rapaz. Dirigiu-se ao reservado, fez sua higiene pessoal e retornou à sala. Ainda sobrara um pouco de alimentos e resolveu fazer mais uma refeição. Ao terminá-la, Amanda se acordou.
            — Olá, Renam, dormiu bem?
            — Ah, sim, muito obrigado. E você?
            — Dormi um pouco, não estava com muito sono.
            — Eu ainda senti fome ao acordar e devorei o restante dos alimentos. Espero que não se importe.
            — Não, claro que não. Você passou tanto tempo dormindo que eu tive tempo de ir à cozinha buscar mais alimentos. Depois que você dormiu, eu fiz mais duas refeições.
            A menina fez uma pausa e sorriu para Renam, que retribuiu.
            — Bem, vou ao reservado. Quando voltar, vou lhe contar a minha história e você saberá como me ajudar.
            Ao voltar do reservado, Amanda sentou-se no chão, próximo à Renam. Olhou para seus braços musculosos, tórax e pernas bem desenvolvidos. O jovem guerreiro ainda usava apenas uma bermuda, pois deixara seu traje de guerra secando no reservado, pendurado em pequenos ganchos afixados nas paredes, com o objetivo de estender roupas.
            — Você é bem forte. E muito habilidoso também. Eu o vi derrotar vários homens na sala de armas. Onde aprendeu a lutar tão bem?
            — Eu… hum… sou um monge.
            — Ah, entendo. Treinou sua vida inteira, não?
            — É, foi isso — respondeu, sacudindo os ombros.
            — Você é deste reino?
— Não, eu sou de Daran. Estou aqui numa missão especial.
— Conhece a história da minha cidade?
— Sim, li a biografia do rei Julian.
Amanda sorriu e balançou levemente a cabeça para os lados.
— Não acredite em tudo o que aquele canalha escreveu.
Com um suspiro, começou a impressionante narrativa:
— Meus avós maternos foram os rei e rainha do reino de Lituânia. Promoveram, com os reis de Valença, o casamento de minha mãe com o príncipe desta cidade, unindo os dois reinos. Minha mãe e o príncipe tiveram quatro filhos: Augusto, Julian, Cassiano e eu. Meus avós maternos faleceram quando eu ainda nem era nascida. Meus pais assumiram os seus lugares, governando os reinos em conjunto com os avós por parte de pai. Logo que fui concebida, esses avós também partiram. Meus pais assumiram sozinhos a administração de dois reinos, que agora estavam unidos e se chamavam Damaris. Deram início à construção dos grandes muros, com o objetivo de tornar o reino mais seguro. Augusto, o meu irmão mais velho, tinha, nessa época, vinte e cinco verões de idade. Dez verões depois, a muralha que circundava a cidade inteira estava pronta. Uma outra muralha seria ainda construída, isolando uma área da cidade. Era neste local que havia o castelo onde meus pais moravam. Porém, após a morte dos outros governantes, decidiram mudar para o castelo deles e fazer deste uma prisão. Criaram um poderoso exército, que passou a prender os criminosos neste local. Em poucas luas cheias, havia milhares de presidiários nesta região. Porém, antes que prendessem uma única pessoa, contrataram agricultores para plantar em grande parte destas terras. Também enviaram para cá um rebanho numeroso, além de abrir muitos poços artesianos e encher o lago de peixes. Criaram todas as condições para que as pessoas que fossem condenadas a morar aqui tivessem meios de sobrevivência.
Renam ouvia atentamente a narrativa de Amanda. Algumas coisas coincidiam com o que lera em ambos os volumes que formavam a obra biográfica do rei, mas outras divergiam. O muro, por exemplo, não demorara vinte verões para ser erguido, apenas dez; foi um exército que tirou os criminosos da rua, e não o guerreiro da Armadura de Prata; o rei comentava que a área isolada da cidade era uma região desértica, onde só havia um lago, mas o fato é que a casa que servia como prisão já existia e tinha sido morada de reis. Enquanto ouvia, Renam comparava a narrativa da menina com a história dos livros.
— Mesmo prendendo milhares de criminosos, ainda restavam muitas quadrilhas — prosseguiu Amanda. — Sentindo-se ameaçadas de uma maneira numa antes vista, os criminosos elaboraram um plano para assassinar meus pais. Eu tinha quase onze verões de idade quando eles foram mortos. Meu irmão mais velho assumiu o trono, mas Julian, o segundo irmão a ter o direito de se tornar o governante, fez Augusto renunciar o poder. Para conseguir isso, seqüestrou a mim e o meu irmão mais novo e ameaçou Augusto que iria nos matar se não fosse embora deste reino. Receoso de que algo nos pudesse acontecer, nosso irmão mais velho não teve escolha. Fomos trancados no calabouço do outro castelo. Não nos puseram em uma cela, podíamos caminhar livremente entre elas, mas as portas que davam acesso ao calabouço foram chaveadas. Mas o fato é que meus pais, percebendo a insanidade de Julian, nunca conseguiram demonstrar confiança nele, o que o deixava mais louco do que já era. Por esse motivo, segredaram a mim e aos outros irmãos assuntos relacionados aos dois castelos, que só podiam ser conhecidos por pessoas da família. Informaram-nos sobre o caminho secreto que foi construído para unir os dois castelos, ligados por portas ocultas em ambos os calabouços. Deram-nos os mapas de ambos os castelos e nos fizeram estudá-los exaustivamente. Pouco tempo depois disso, foram assassinados e Julian tomou o poder ao executar seu plano cruel. Aproveitara-se da morte de nossos pais para colocar em prática uma estratégia que, embora terrivelmente maligna, tornava-o o rei de Damaris. Mas meu irmão e eu não ficamos presos muito tempo. No mesmo dia escapamos pela porta oculta, que permitia o acesso à passagem secreta.
Amanda parou um momento para tomar fôlego. Havia em seus olhos uma tristeza que fez Renam imaginar que o pior ainda estava por vir.
— Antes de nos prender, Julian confessou seu mais ambicioso plano: estava com a Armadura de Prata e aguardava ansiosamente pela Ametista Mágica. Seu bruxo estava em posse do Tomo Negro e logo ele se tornaria o dono do mundo. No dia seguinte, meu irmão voltou ao castelo e encontrou as portas da masmorra abertas. Julian, ao saber de nossa fuga, deve ter imaginado que seria tolice manter as portas chaveadas. Dessa maneira, meu irmão pôde explorar o castelo nas altas horas da noite, localizar e roubar a armadura, trazendo-a para cá e escondendo-a nesta sala. Meu irmão voltou várias vezes ao castelo, numa desesperada tentativa de localizar a ametista. Há algumas luas-cheias, durante sua exploração pelo castelo, foi pego e confessou ter roubado a armadura e a escondido nesta casa-prisão. Mas conseguiu fugir e continuar sua missão de localizar a gema. Nos dias seguintes, Julian enviou muitos homens para este local, onde acabaram sendo assassinados pelos moradores desta área. Há vários dias, meu irmão partiu para o castelo e não retornou mais. Imagino que tenha sido pego novamente, mas acho que logo escapará mais uma vez.
Enquanto a menina fazia outra pausa, Renam sentia um frio na barriga. Tinha a certeza de que suas próximas palavras iriam ferir a garota, mas não havia alternativa; tinha que lhe fazer uma pergunta:
— Seu irmão é loiro, da minha altura, com uma pequena mancha no lado direito do rosto e usava roupas pretas, similares às minhas?
Amanda olhou-o espantado.
— Como você sabe?
A voz do monge soou suave e gentil, quando relatou à menina o dia em que o rei apareceu na sala de treinamento, exibindo seu prisioneiro. Apresentara-o como um traidor, mas agora Renam sabia que se tratava de outra mentira do rei, talvez com o propósito de inibir práticas semelhantes. Renam também contou a Amanda que, no dia em que havia sido enviado para este lugar, além de ver o rei Julian matar Joshua, também ouviu dele que mandara matar o traidor que capturara. Amanda ouvia atentamente Renam, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Chorava mais uma perda, pois o odiado rei cumprira uma de suas muitas promessas. Renam se aproximou e a abraçou carinhosamente. Doía-lhe o coração vê-la soluçar daquela maneira. Ficaram abraçados, um tempo, até que Amanda ergueu a cabeça e, olhando fixamente nos olhos de Renam, perguntou:
— Você vai me ajudar?
— O que preciso fazer?
Com movimentos delicados, Amanda afastou-se de Renam e prosseguiu em sua narrativa:
— Como meu irmão estava demorando muito para retornar, decidi levar a armadura e atirá-la no abismo. A armadura não era muito pesada, eu podia carregá-la. Mas no meio do caminho, alguns homens me viram. Tive que soltá-la, pois embora conseguisse andar com ela, jamais poderia correr ao carregá-la. Um deles apoderou-se da armadura, mas os outros vieram atrás de mim. Despistei-os rapidamente, entrando numa das muitas passagens secretas. A partir daí, comecei a procurar pela armadura e a localizei numa sala que, por reunir objetos de valor, acredito que a transformaram na sala do tesouro. O problema é que sempre ficam vários seguranças em cada um dos corredores que dá acesso à sala.
— Seguranças? Mas as únicas pessoas mandadas para cá eram criminosas, de acordo com o rei. Por que mandaria seguranças para este lugar se o local é isolado e, para torná-lo um presídio do qual a fuga seja impossível, várias casas de vigias foram construídas no alto dos muros, impedindo-os assim de os escalarem?
— Você sabe muito pouco sobre o nosso reino, Renam. E boa parte do que sabe não passa de mentira. Quando a área isolada da cidade ficou pronta, os reis, ou seja, meus pais, contrataram vários trabalhadores para trazer a este local uma boa quantidade de gado e cultivar a terra. Além do gado, também enviaram vários outros animais como aves, coelhos e abelhas. A idéia era que os presidiários pudessem ter meios de se sustentar. Quando o poderoso exército formado por meus pais iniciou sua implacável perseguição aos criminosos, bastou poucos dias para que este lugar estivesse infestado de pessoas da pior espécie. Esses homens e mulheres, ao chegar aqui, mantiveram seus péssimos hábitos de higiene. A sujeira espalhada pelo ambiente trouxe consigo insetos, baratas, aranhas, cobras, camundongos e outras pragas que geraram doenças suficientes para começar a dizimar os animais e plantas da região. Logo os presos começaram a perceber que, devido ao péssimo estado em que a área isolada se encontrava, era só questão de tempo até que ficassem sem comida. Formou-se então um comitê que tinha por objetivo disciplinar as pessoas condenadas a viver aqui. Agora teriam responsabilidades. Seriam divididas em grupo e cada grupo realizaria um trabalho diferente. Aqueles que não conseguissem se enquadrar neste novo sistema, seriam mandados para o calabouço. Ficariam um tempo lá e então lhes seria oferecida uma nova oportunidade de se adaptar no atual regime.
— Como sabe tanto sobre esta área?
— O comitê elegeu um líder que governaria este região com mãos de ferro. Seu cargo era equivalente ao de um rei. Meu irmão e eu, escondidos nos locais secretos deste casarão, localizamos a sala que este homem utiliza como seu escritório. A partir de então, começamos a ler os relatórios que ele fazia sobre as reuniões com o comitê e os pedidos das pessoas que o formavam. Desta maneira, passamos a conhecer todos os problemas que este lugar apresentava e suas possíveis soluções. Foi lendo estes relatórios que descobrimos a localização da Armadura de Prata.
— O líder fazia algum comentário sobre a armadura? Pretendia utilizá-la de alguma forma?
— Não creio. Como todo mundo sabe, pelo menos os que conhecem a história, uma das medidas de segurança, adotadas pelas pessoas que queriam evitar novas utilizações para a armadura, foi replicá-la centenas de vezes. Dessa maneira, ficaria difícil localizar a verdadeira armadura. Não acredito que o líder e os que formam o comitê saibam que esta é a original. Imagino que pensam tratar-se apenas de uma imitação. Se não fosse assim, certamente a armadura seria muito comentada nos relatórios e não apenas guardada na sala do tesouro.
— Bem, se eles ignoram que seja a verdadeira armadura, então temos uma grande vantagem: ela será considerada apenas como um entre muitos objetos de algum valor.
— Entendo o que você quer dizer, Renam. Se soubessem o que têm em mãos, provavelmente a esconderiam.
— E neste caso, poderia ser impossível localizá-la.
— Sim, mas isso não quer dizer que nossa tarefa seja mais fácil. Muitos guardas protegem as entradas que dão aceso à sala onde a armadura se encontra. Além disso, vários outros permanecem dentro da sala o tempo todo.
— Dentro da sala? Mas como é que sabe?
— Daqui a pouco lhe mostrarei. Mas o que me preocupa agora é que, se houver luta dentro da sala, o som será ouvido nos corredores. Você provou que pode enfrentar sete ao mesmo tempo, mas será capaz de lutar da mesma maneira contra sessenta?
O monge sentiu um frio na barriga. Apesar da menina ser apenas uma garotinha, conseguia intimidá-lo de uma maneira que ninguém era capaz. Percebendo a surpresa no rosto do rapaz, Amanda acrescentou:
— Quatro corredores dão acesso àquela sala. Em cada corredor permanecem doze vigias, e no interior da sala mais doze.
— A quantidade de guardas pode ser um forte indício…
—… de que o líder e o comitê saibam a verdade sobre aquela armadura? — completou Amanda, o pensamento de Renam. — Sim, isso também havia se passado em minha cabeça. É uma possibilidade, admito.
— Você emprega palavras difíceis para alguém da sua idade.
— Eu leio muito — respondeu Amanda, sorrindo.
— Você disse que me mostraria como ficou sabendo a respeito do que ocorreu dentro da sala.
— Claro. Venha comigo.
Saíram da sala e caminharam por um corredor, até que chegassem numa porta oculta, disfarçada de pintura em alto relevo. Amanda abriu a porta e entrou na frente, conduzindo Renam por uma imensa escada que dava acesso a uma sala escura. Ao entrar na sala, esperaram alguns momentos para que os olhos se ajustassem à falta de luz.
— Este local parece um sótão.
— É um respiradouro.
— O quê? — perguntou Renam, surpreendido com uma palavra que nunca tinha ouvido.
— Este reino é muito antigo e sempre foi governado pelos membros da minha família. Há centenas de verões, um de meus ancestrais sonhou em construir o maior castelo do mundo. Embora fosse rei, não era rico, pois quando moço gastara toda a fortuna herdada. Ao assumir o trono, estava endividado. Mas os impostos geravam uma boa renda. Em alguns verões, quitou todas as dívidas e começou a colocar em prática sua idéia de construir uma casa absurdamente grande. Como só tinha os impostos, a construção se desenvolveu de maneira lenta. Ao falecer, apenas a vigésima parte da mansão estava concluída. Além disso, deixara grandes dívidas que deveriam ser pagas pelo filho, que assumiria seu lugar. Até o final de seu governo, o rapaz ficou apenas pagando contas. Seu herdeiro deu prosseguimento à construção e, durante toda uma vida, não conseguiu chegar nem na metade da obra. E assim, de geração em geração, a construção foi se arrastando. Mas todos os reis que participaram da tarefa de construir esta mansão seguiram fielmente a planta, que foi elaborada por aquele homem que imaginou que esta casa, devido ao seu imenso tamanho, tornaria o ar rarefeito. Assim, desenhou várias colunas em forma de torre, que circundam toda a mansão e apresentam pequenas janelas, que permitem a passagem do ar. Entre um pavimento e outro há um espaço vazio que recebe o ar canalizado por essas pequenas aberturas. Cada respiradouro distribuirá, através de pequenos quadrados no chão, o ar apenas para o pavimento que se encontra sob ele.
Amanda caminhou até um pequeno quadrado no chão, que apresentava uma grade de ferro. Ajoelharam-se para olhar pelo orifício. Embora a visão de Renam fosse limitada, percebeu estar olhando para a sala do tesouro, como lhe dissera a garota. De onde se encontrava, pôde ver belas cadeiras e bancos, armários feitos com o melhor tipo de madeira, vasos, bandejas, jarras, pratos, copos e talheres de ouro e muitos quadros, que pareciam pintados a óleo. No centro da sala, sobre uma pilha alta que estava afastada de todas as outras, estava a Armadura de Prata. Mas, como dissera Amanda, também havia vários homens cuidando da segurança do local. Apontando para um lado, Amanda mostrou a Renam uma pilha de objetos sobre uma mesa de ouro, atrás da qual se escondia uma passagem secreta. Sugeriu ao monge que a utilizasse, caso não conseguisse entrar ou sair da sala por qualquer uma de suas portas.
— Já vi o suficiente. Venha — falou o monge, tocando no braço da menina.
— Para onde vamos?
— À sala de armas. Leve-me até lá por um atalho. Quero chegar o mais rápido possível.
A garota ficou momentaneamente sem fala, tão surpresa estava. Conduzia Renam por um caminho seguro para chegar até a sala de armas, admirada com o fato de que o guerreiro enfrentaria tantos oponentes de uma só vez.
Chegaram no local mais rápido do que Renam previra. Armou-se de uma forma que deixou Amanda espantada: colocou dois braceletes, cada um do tamanho de seus antebraços; em suas costas posicionou duas espadas, que ficaram em forma de X; também prendeu uma lança que, embora pequena, ultrapassava um pouco a altura de sua cabeça; pôs um cinto que continha acessórios para múltiplas funções — pequenas esferas para produzir fumaça, lâminas em forma de estrelas em miniatura e cubos mágicos explosivos; entre o joelho e o tornozelo, fixou um nunchaku em cada perna.
— Não há outra maneira. Terei que entrar em confronto direto com esses homens.
— Mas são sessenta guerreiros, Renam. Dificilmente sairá com vida desta batalha.
— Não tenho escolha. Se não levar logo a armadura para o rei…
Amanda assustou-se ao ouvir isso o interrompeu a fala do monge:
— Como assim levar a armadura para o rei? Em vez de me ajudar vai me trair? Eu confiei em você — disse, furiosa, apontando um dedo para Renam.
— Amanda, eu não lhe menti quando disse que era de outro reino e estava em missão especial nesta cidade.
— Ah, então você quer levar a armadura para o outro rei. Mas, Renam, ela é perigosa demais. Devemos jogá-la no abismo e…
— Não, Amanda, você está entendendo mal. É para o rei Julian que entregarei a armadura.
Renam fez um rápido comentário sobre sua missão. Falou de seu amigo Joshua, da traição de Naêmia, de suas tentativas de localizar, no castelo, a Ametista Mágica e, por fim, do que devia fazer nesta imensa casa a fim de salvar Karine.
— Eu entendo — falou Amanda, em tom triste, após um momento. — Sei o que é perder um ente querido. Mas tenha em mente, Renam, que poderá estar perdendo muito mais se lhe entregar a armadura. Talvez devesse considerar que o ideal é sacrificar a moça…
— Não vai ser necessário. Confie em mim, Amanda, eu tenho um plano.
— Um plano? Que plano será suficiente, depois que o meu irmão se tornar invencível?
— Confie em mim, Amanda, por favor. Não podemos mais perder tempo, o momento agora é o de salvar Karine. Depois cuidamos do rei.
— Sei que você é um lutador excepcional, o melhor que já vi. Mas conseguirá derrotar alguém invencível?
— Ele será derrotado antes de se tornar invencível. Confie em mim — disse o monge, com um leve sorriso.
Amanda analisou aquele rosto tranqüilo e, após alguns momentos, balançou a cabeça em sinal de aprovação ao pedido do monge.
— Muito bem, Renam. Venha comigo.
Amanda conduziu o jovem guerreiro através de algumas passagens que se cruzavam, saindo próximo a um dos corredores onde estavam os seguranças.
— Espere-me na sala onde se esconde, Amanda.
— Tenha cuidado.
Renam sorriu para a menina e observou-a afastar-se em direção ao local que servia como seu quarto. Ela havia salvado a vida dele, na medida em que lhe proporcionara alimentos e um lugar para dormir. Dessa maneira, o guerreiro não poderia desapontá-la; teria que dar o máximo de si. Começou a andar pelo corredor, ciente de que sua batalha logo iniciaria. Após alguns momentos de caminhada, o corredor fez uma curva. Em seguida tornou-se reto novamente, possibilitando ver uma das portas da sala do tesouro. Não foi somente a porta de entrada da sala do tesouro que Renam avistou, logo após a curva; em pé, com as costas próximas às paredes, estavam duas fileiras de seis guerreiros, uma de frente para outra. Mesmo observando o monge se aproximar, não esboçaram reação. Apenas olharam em sua direção por um breve instante. Renam sabia que seria atacado apenas quando estivesse no meio daquelas fileiras. O objetivo daqueles homens era surpreender, o que sugeria que fossem guerreiros letais — pensamento que se formou rapidamente na cabeça do jovem guerreiro. Abaixou-se e retirou os dois nunchakus, que havia colocado entre os joelhos e tornozelos. Girou-os lentamente, enquanto caminhava na direção daqueles homens. Ao se aproximar da fila, parou. Olhou para os homens, que apenas o encaravam com olhar desafiador. Renam atirou os nunchakus no chão, fazendo-os cair no centro das fileiras. Ao dar meia volta, percebeu o sorriso maldoso dos homens. Afastou-se alguns passos e parou. Começou a dar saltos mortais para trás, alcançando, em poucos instantes, as armas que atirara no chão. Surpreendidos pela estratégia de Renam, os guerreiros hesitaram em atacá-lo. O breve momento de hesitação custou ao grupo dois homens; o monge saltara, acertando dois guerreiros ao mesmo tempo com suas armas, nocauteando-os na mesma hora. Agora não eram mais doze que enfrentaria. Ao ver dois sendo derrubados simultaneamente, os guerreiros avançaram. Além de usar os nunchakus para atacar, o monge também os utilizava para bloquear os golpes daqueles homens. Combinando suas armas com técnicas de esquiva, realizava uma defesa eficiente, com movimentos perfeitos. Quando Renam deu um salto, acertando com um chute a cabeça de três homens que o circundavam, restava somente mais um a ser derrotado. Mas o homem saiu correndo, certamente com o objetivo de buscar reforços. Sem perder tempo, o monge atirou com força um de seus nunchakus, que acertou a nuca daquele homem, fazendo-o desmaiar.
Aproximou-se da porta e tentou abri-la, mas estava trancada. Pensou em derrubá-la com um chute, mas parecia resistente demais. E mesmo que conseguisse, perderia o elemento surpresa. Sua idéia era entrar furtivamente na sala, escondendo-se entre as pilhas de objetos acumulados no local. Começou a revistar os guerreiros que derrotara, na esperança de encontrar a chave que abrisse aquela porta. O último que revistou foi o que tentara escapar. Renam sentiu a sorte lhe sorrir quando colocou a mão no bolso direito da calça do homem e encontrou uma chave. Entendeu o motivo pelo qual aquele guerreiro não quis enfrentá-lo: não apenas queria buscar ajuda, como impedi-lo de ter acesso à sala do tesouro. O monge aproximou-se da porta e a abriu num movimento rápido, entrando na sala e fechando-a novamente na mesma velocidade. Havia pilhas e pilhas de objetos depositados naquele lugar, dificultando sua visão para localizar seus inimigos, mas, em compensação, também ser localizado por eles. Esgueirando-se entre os objetos, começou a procurar pela Armadura de Prata. Seu plano era chegar até o ponto onde ela se encontrava. Mas e depois? De onde ele estava não podia vê-la, pois os objetos formavam elevações muito mais altas que o monge. Mas já tinha visto a armadura do respiradouro. Sabia que ela se encontrava no alto de uma pilha, bem no centro da sala, afastada de várias outras pilhas. Era como se estivesse no meio de uma clareira. Estava, portanto, em campo aberto. De repente, aconteceu algo que fez Renam desviar sua atenção para os seus sentidos: ouvira um som próximo. Em seguida, uma sombra projetou-se no chão, indicando que alguém passava pela pequena torre de objetos onde o monge se ocultava. Quando o rosto do homem tornou-se visível, Renam chutou-o, quebrando o nariz do segurança e nocauteando-o na hora. Segurou o corpo antes que atingisse o chão, com o objetivo de evitar o som provocado pelo impacto. Colocou o homem em um espaço entre dois objetos que estavam bem na base de uma das pilhas próximas, observando que o corpo poderia passar despercebido. Uma idéia então lhe ocorreu: poderia eliminar seus adversários daquela sala desta forma, derrotando um de cada vez. Isso evitaria a confusão que poderia ser ouvida pelos guardas dos outros três corredores, aumentando exponencialmente as suas chances de sucesso. Mas o fato é que a idéia somente poderia ser colocada em prática se a sala fosse cerca de cinco vezes menor. Como era imensa, suas possibilidades de encontrar e derrotar todos os guerreiros daquela sala, antes que os que estavam desmaiados no corredor recuperassem a consciência, eram praticamente nulas. A melhor tática seria continuar se dirigindo ao centro da sala, até chegar à torre de objetos que exibia a armadura em seu ponto mais elevado. Dessa maneira, continuou se encaminhando ao centro da sala. Em determinado momento, avistou o espaço vazio, com a torre de objetos e a armadura. Circulando a armadura, havia seis homens. O monge começou a caminhar em direção à Armadura de Prata, esperando ser atacado por aqueles guerreiros logo que fosse avistado. Mas eles nada fizeram. Simplesmente ficaram olhando-o até que alcançasse a pilha de objetos. Foi nesse momento que ouviu um grito. Em poucos instantes, os sons de outros gritos foram se somando ao som do primeiro, produzindo barulho suficiente para ser ouvido de longe. Olhando a sua volta, percebeu que os gritos eram, na verdade, os sons produzidos pelos apitos que aqueles homens assopravam a plenos pulmões. Enquanto escalava a coluna de objetos empilhados, sabia que seu tempo era curto. Logo as três portas dos corredores se abririam e ele teria quarenta e sete adversários. No alto da pilha, retirou a corrente de sua cintura e a amarrou na armadura, com o objetivo de prendê-la em suas costas. Ao descer, os homens continuavam parados, apitando. Renam desprendeu a corrente, retirando a armadura de suas costas. Assim, quando tivesse que lutar, o monge a colocaria no chão, possibilitando-lhe total liberdade de movimentos.
Renam caminhava em direção às colunas de objetos, que formavam um verdadeiro labirinto. Uma vez no meio de todo aquele material, poderia despistar os seguranças e fugir por uma das quatro portas. Deveria sair daquela sala o mais rápido possível, pois era certo que alguns dos seguranças que se encontravam no corredor, em vez de entrar na sala para caçá-lo, iriam buscar reforços. Em breve a sala e os corredores estariam infestados de homens a sua procura, eliminando qualquer possibilidade de fuga. Quando estava quase saindo do espaço aberto, parou. De todos os lados, os guardas vinham em sua direção. Enfrentá-los seria investir em um tempo do qual não poderia dispor. Assim, retirou de seu cinto quatro esferas de fumaça e jogou-as no chão. A escuridão momentânea permitiu-lhe passar entre os guerreiros sem ser detectado. Ninguém sabia para que lado o monge havia se dirigido. Quando a fumaça se dissipou, o jovem guerreiro tinha se escondido entre os objetos do depósito. A única certeza dos homens era que o monge não saíra da sala ainda, pois todas as portas estavam trancadas e com vários guardas próximo a cada uma delas, bloqueando todas as saídas. Qualquer tentativa de fuga iria gerar barulho de luta, alto o bastante para ser ouvido em toda a sala.
            O monge percebeu esse fato ao se mover silenciosamente entre os objetos e aproximar-se de uma das portas. Ali estavam seis homens, fortemente armados. Não haveria tempo para derrotar tantos homens, e escapar por aquela porta, sem que todos os outros guerreiros o alcançassem. Afastou-se silenciosamente. Ao olhar na direção de uma mesa de ouro próxima a uma parede, com várias caixas empilhadas sobre ela, Renam lembrou das explicações de Amanda quando lhe mostrou, no respiradouro, aquela pilha de objetos e lhe revelou que por trás se escondia uma porta secreta. Tirou de seu cinto dois cubos mágicos explosivos e atirou o primeiro contra a pilha de objetos que se erguia sobre a mesa. O estouro repercutiu em toda a sala, propagando-se, a uma boa distância, pelos corredores de acesso à sala do tesouro. Os objetos da pilha foram lançados com força para os lados pelo impacto da explosão, atingindo outras colunas de objetos e derrubando-as no chão. Poucos instantes após a primeira explosão, Renam jogou o segundo cubo explosivo. Desta vez, sem os objetos para atrapalhar, o cubo foi em direção à porta secreta, destruindo-a ao se chocar contra ela.
            O jovem guerreiro permaneceu imóvel, atrás de uma grande pilha de objetos. Por entre eles, observava os guerreiros se dirigirem em bando para o local da explosão. Num primeiro momento, pareceram surpresos.
            — O que é isso? Não parece ser uma sala — falou o que estava mais próximo do buraco aberto na parede. — É um corredor — gritou, espantado, ao virar-se para os outros.
            — Ora, vamos, Gregório, deve ser um dos corredores que contornam esta sala.
            — Não, não é. Ele se inicia aqui.
            — O quê? — perguntaram vários homens ao mesmo tempo.
            — Vejam vocês mesmo — falou Gregório, afastando-se da porta estraçalhada.
            Os homens ficaram surpresos ao constatar que Gregório tinha razão. O corredor se iniciava naquele ponto e seguia pela direita, acompanhando a parede da sala do tesouro.
            Mas o momento de surpresa passara e agora os homens queriam ação.
— Como aquele homem sabia desta passagem?
            — Isso não importa agora, Ferdinando. O maldito está ganhando distância. Vamos atrás dele antes que consiga fugir.
            Todos seguiram o conselho de Kaleb e se lançaram na passagem secreta, como cavalos de corrida. Ao ver o último homem passar pelo buraco da parede, Renam encaminhou-se rapidamente para a porta pela qual entrara. Passou pelo grupo de homens que derrotara, ainda inconscientes. Encaminhou-se correndo para a passagem que o levaria à sala onde era esperado por Amanda. Em poucos momentos, conseguiu chegar.
            — Renam! — gritou Amanda, correndo em sua direção e abraçando-o com força. — Não pude arriscar ir ao respiradouro, tive que esperar aqui mesmo. Ouvi muitos gritos e duas explosões. Pensei, pensei…
            — Amanda, eu estou bem — disse Renam, alisando os cabelos da menina. — Estou com a armadura. Agora, que tal sairmos daqui?
            Amanda afastou-se com delicadeza do monge. Sorriu ao ver a armadura.
            — O que foram aquelas explosões?
            — Lembra-se da passagem secreta, escondida atrás da mesa de ouro? Pois bem, atirei um cubo explosivo e abri caminho para atirar outro em direção à porta. Os seguranças imaginaram que eu havia escapado por ali e trataram de percorrer aquele caminho. A propósito, onde eles irão parar?
            — Em qualquer local deste castelo, Renam. Aquela passagem é uma das muitas que se liga com várias outras. Se aqueles homens não tiverem senso de direção, podem ficar um bom tempo andando em círculos.
            A garota deu um sorriso e o monge retribuiu.
            — Agora me fale uma coisa, Sr. Monge. Que gritaria era aquela?
            — Ah, sim, era o som de vários apitos.
            — Apitos? Desde quando apitos emitem gritos?
            — Eu também fiquei surpreso. Parece que há artesãos bem talentosos por aqui.
            — Artesãos… pois sim. E pensar que fiquei preocupada à toa…
            — Sabe, Amanda, acho que você gostou de mim — falou o monge, sorrindo.
            — Não seja tão convencido — respondeu a garota, retribuindo o sorriso.
            — Bem, eu não guardarei os meus sentimentos apenas para mim. Gostei muito de você. Adoraria se fosse minha filha de verdade.
            — Vamos embora então, “papai”.

            O coração de Amanda batia acelerado. Perdera sua família, mas com Renam, talvez tivesse encontrado outra.

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