domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capítulo 19

Capítulo XIX

Meu pai, meu herói

            Mesmo sabendo que Amanda havia estudado exaustivamente o mapa daquela gigantesca mansão, o monge não podia deixar de admirar o caminho traçado pela garota. Atalhavam o trajeto passando por uma série de passagens que ora desembocavam em corredores, ora em salas ainda não ocupadas. Renam se lembrava do momento em que chegara ao casarão. Não conhecia o lugar, nem tinha um mapa para auxiliá-lo. Mas agora estava na companhia daquela menina, que estava servindo de guia para ele. E demonstrava estar realizando um excelente serviço.
            Após um bom tempo de caminhada, chegaram ao caminho subterrâneo que ligava aquele imenso casarão ao castelo do rei.
            — Tive que usar este caminho longo para chegar até aqui, pois era o mais seguro. As salas e corredores pelos quais passamos dificilmente são utilizados. Agora teremos mais uma longa caminhada para chegar ao castelo.
            — Você deve estar cansada, Amanda.
            — É verdade, estou cansada e faminta. E você?
            — Bem, eu sou um monge, é muito raro ficar cansado.
            — Sério?
            — Sério.
            — Mas deve estar com fome, não?
            — Sim, fome eu sinto.
            — Então vamos parar um pouco para descansar e nos alimentar, Renam.
            — Tudo bem.
            Amanda levava uma sacola com alimentos e bebida. Enquanto Renam se arriscava na tentativa de conseguir a armadura na sala do tesouro, Amanda ocupara-se na cozinha. Roubara algumas frutas, pães, um pedaço de bolo e uma garrafa com suco de laranja. Afanara também dois copos e agora enchia um para si e outro para o companheiro.
            — Que espécie de monge é você? — perguntou de repente, pegando-o de surpresa.
            — O quê? Como assim?
            — Hum… Embora eu me sinta mais estimulada por exercícios mentais do que físicos, entendo o bastante de artes marciais para lhe fazer tal pergunta.
            — Você também treina?
            — Ah, não, claro que não. Mas fui criada num ambiente de monges. Meus irmãos eram monges.
            — Eu não entendi sua pergunta, Amanda.
            A menina olhou para o rapaz, como se estivesse pensando no que dizer. Após alguns momentos, falou:
            — Você não luta como um monge comum. É capaz de enfrentar vários guerreiros de uma só vez e sair da batalha sem um único arranhão. Como consegue lutar tão bem?
            Renam sentiu seu rosto esquentar. Ao perceber o vermelhão nas bochechas do jovem guerreiro, Amanda sorriu. Concluiu que Renam era muito modesto para falar sobre si.
            — E então? Vai me responder, ou me deixará apenas na curiosidade?
            Sem alternativa, o monge respondeu:
            — Ah,… é que, bem… eu me tornei… eu sou um mestre.
            — O quê? — espantou-se a menina. — Mas existem somente uns dois ou três em todo o mundo.
            — Quatro, na verdade — corrigiu Renam.
            — Bem, eu já me sentia segura contigo antes, agora nem se fala.
            Renam deu um sorriso amarelo, sentindo que ainda estava ruborizado.
            — Ora, vamos, deixe de timidez. Você pode ter um título mais importante que o de um rei, basta provar que é um mestre e terá tratamento especial em qualquer parte do mundo, enquanto que um rei será alguém especial somente no reino que governa. Mas ainda é um ser humano, não é verdade?
            — Sim, é claro.
            Amanda continuou sorrindo para o monge, enquanto este se ocupava em levar mais alimentos à boca. Naquele momento, começou a sentir grande admiração por ele. Ambos estavam sentados, um de frente para o outro, sendo que Amanda estava próximo à parede.
            — Renam, estou com muito sono. Preciso dormir um pouco.
            — Claro, Amanda, não se preocupe. Acho que também vou dormir um pouquinho.
            Amanda continuou sentada. Apenas encostou as costas na parede, baixou a cabeça e dormiu imediatamente. Ao se acordar, percebeu que o monge estava ao seu lado. Suas costas não estavam mais apoiadas na parede fria, mas no musculoso braço esquerdo do guerreiro e sua cabeça repousava no peito do monge.
            — Ele me protege de todas as maneiras, talvez queira mesmo ser meu pai — pensou a menina, permanecendo naquela posição alguns momentos depois de ter acordado.
            Amanda sentia-se triste. Após a morte de seus pais, sua vida transformara-se em um pesadelo. Seu irmão mais velho foi condenado ao exílio; ela e o outro irmão foram feitos prisioneiros no calabouço de sua própria casa pelo irmão Julian, que agora ocupava um trono que não era seu.
            Com muito cuidado, retirou o braço de Renam de suas costas. O monge ainda dormia, aparentando exaustão pelo último serviço que realizara: entrou em confronto direto contra doze guerreiros treinados, apoderou-se de Armadura de Prata, despistou e fugiu de quarenta e sete homens e, como se não bastasse, caminhou desde a sala do tesouro até ali, carregando a armadura que até não era muito pesada, se a pessoa não fosse muito longe com ela, o que não era, obviamente, o caso. Passado algum tempo, o jovem guerreiro finalmente acordou.
            — Olá, Amanda.
            — Olá Renam. Bem-vindo ao mundo dos vivos. A propósito, temos uma longa caminhada pela frente, acho que foi muito necessário este momento de repouso.
            — Dormi muito?
            — Acho que sim. Já estou acordada há um bom tempo.
            — Bem, então é melhor irmos andando. Tenho um prazo para entregar esta armadura.
            — Renam, posso te fazer uma pergunta? — falou a garota, ao iniciar a caminhada.
            — É claro. O que gostaria de saber?
            — Bem, é que você vai entregar a Armadura de Prata ao homem que quer dominar o mundo. O meu irmão é mau e ambicioso o bastante para vestir esta coisa e se submeter ao ritual que o transformará no maior de todos os guerreiros. Sei que você é um monge excepcional, mas será que confia tanto em si mesmo que se julga capaz de derrotar um guerreiro invencível? Será que o título de mestre lhe subiu a cabeça?
            — Amanda, nem mesmo um mestre tem a menor das chances contra o guerreiro da mais antiga lenda de Kendora. Todos os exércitos do mundo poderiam se unir e, provavelmente, apenas conseguiriam ser dizimados. A armadura é tão poderosa que torna seu portador literalmente invencível. Nem mesmo o maior dos magos ou uma convenção que reunisse todos os bruxos poderia fazer frente a ela.
            — Mas então o que pretende fazer?
            — Quaisquer tentativas de confronto direto serão completamente inúteis. Apenas um estratagema muito bem elaborado poderá assegurar nossa sobrevivência.
            Amanda ficou pensativa com a resposta que recebera de Renam. Percebeu que o rapaz não queria lhe revelar sua tática. Dessa forma, decidiu não tocar mais no assunto. Conformou-se com a idéia de que ele sabia o que estava fazendo e decidiu que não lhe perguntaria mais, pois não queria aborrecê-lo.
            Andaram pela passagem que ligava os dois castelos por tempo suficiente para que Amanda começasse a dar os primeiros sinais de cansaço, quebrando o silêncio:
            — Vamos parar um pouco, Renam. Devemos estar caminhando metade de um dia inteiro. Preciso descansar.
            — Tudo bem.
            Ambos sentaram no chão. Renam parecia tranqüilo, mas Amanda fazia caretas enquanto retirava suas sandálias.
            — Ah, como é bom sentir o ar tocando nos pés. Os meus pareciam estar pegando fogo… — comentou a menina, enquanto esticava suas pernas. — Você não está sentindo que seus pés estão quentes, Renam?
            — Na verdade, não. Estou acostumado com os meus sapatos.
            — Puxa, mas você é incrível! Não se cansa, não sente calor… E dor? Você sente dor?
            — Amanda — respondeu o monge, sorrindo —, eu sou um ser humano. Sinto dor, tenho sentimentos, sou uma pessoa de carne e osso.
            — Tá legal, tá legal, não está mais aqui quem falou. Mas é esquisito ver alguém tão resistente assim. Eu mal consigo erguer essa armadura e você a carregou esse tempo todo sem se cansar. Todos os mestres são superfortes?
            — Hum… Acho que sim. Por falar em resistência, falta muito para alcançarmos o castelo?
            — Devemos ter percorrido a metade do caminho.
            — Só a metade? — espantou-se o monge.
            — Sim. Teremos um bom trecho pela frente, como pode ver.
            — Esse corredor é enorme. Como conseguiram construí-lo?
            — Foi logo que os dois reinos se uniram. Vinte pessoas de total confiança dos reis foram contratadas para abrir este caminho.
            — Apenas vinte homens construíram tudo isso?
            — Sim, mas trabalharam cerca de vinte e sete verões. Eu tinha sete verões de idade quando a obra foi concluída. Quando o meu irmão se rebelou e pôs em prática o plano que logo o tornaria rei, meus pais não perderam tempo em revelar seus segredos a mim e aos outros dois irmãos.
            Renam não apenas ouvia atentamente, como dirigia seu olhar à menina, como se a estudasse para descobrir se estava sendo sincera. De repente, os olhos de Amanda ficaram vermelhos e úmidos, e seu rosto assumiu uma expressão infeliz.
            — O que foi, Amanda? Por que esse rostinho tão triste?
            Amanda olhava para o lado enquanto respondia:
            — Meus pais tinham bastante idade quando faleceram. Mas eu receio que o plano de meu irmão tivesse o objetivo de abreviar o tempo de vida deles, para que chegasse mais rapidamente no lugar que tanto almejava. Até hoje fico me perguntando: se o meu irmão não fosse ambicioso, será que eles ainda estariam vivos?
            Lágrimas correram pelo rosto da menina, partindo o coração de Renam. Aproximou-se dela e abraçou-a, colocando a cabeça de Amanda em seu peito. Tocou bem de leve nos cabelos da menina e, com voz carinhosa, falou:
            — Por favor, não chore, querida. Eu não suporto te ver tão triste.
            Beijou várias vezes a parte mais alta da cabeça de Amanda, enquanto alisava seus cabelos. Ambos permaneceram nesta posição por alguns momentos, até que Renam quebrou o silêncio.
            — Amanda, olhe para mim — falou, com voz gentil.
            A garota ergueu a cabeça e olhou diretamente nos olhos do monge.
            — Se eu te dissesse que você mora no meu coração e que quero te adotar, o que você me responderia?
            Amanda hesitou um pouco e então respondeu:
            — Que você, papai, é meu herói!
            Momentos depois, retomaram a caminhada. Amanda enganchou seu braço direito no braço esquerdo de Renam e foram caminhando dessa maneira por um bom tempo. Quase não se falavam porque as palavras pareciam desnecessárias. Os muitos sorrisos e os olhares carinhosos que um dirigia ao outro parecia ser o suficiente. Amanda percebeu que estava certa quando imaginou que, com Renam, encontrara outra família; ele agora seria seu protetor, substituindo o verdadeiro pai que se fora; ela agora teria alguém que a colocasse na cama, que contasse histórias para que dormisse, que lhe diria palavras carinhosas e a consolaria nos momentos difíceis; agora teria alguém para amar e ser amada…
            Renam também partilhava dessa mesma alegria. Olhava para Amanda e via uma menina que, mesmo extremamente inteligente, demonstrava estar sempre necessitada de alguém que a amparasse. E ele seria esse apoio; estaria com ela sempre que precisasse; faria com que tivesse uma vida feliz…

            Perdidos em pensamentos e sentimentos de felicidade, não repararam que a segunda etapa da caminhada fosse tão comprida. Embora mantivessem um ritmo normal em seus passos, não pareciam se cansar, pois suas atenções estavam desviadas do corredor; pensavam em como seria as suas vidas quando tudo aquilo terminasse. Estariam livres da ameaça representada pela armadura e poderiam continuar suas vidas. Renam queria salvar Karine, levá-la para o seu reino e se casar com ela. Ele, Karine e Amanda formariam uma família completa. Amanda, por sua vez, pensava apenas em permanecer junto a Renam. Se ele ficasse no seu reino, ela também ficaria e se partisse para o outro reino, ela o acompanharia.

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