Capítulo
XIX
Meu
pai, meu herói
Mesmo
sabendo que Amanda havia estudado exaustivamente o mapa daquela gigantesca
mansão, o monge não podia deixar de admirar o caminho traçado pela garota.
Atalhavam o trajeto passando por uma série de passagens que ora desembocavam em
corredores, ora em salas ainda não ocupadas. Renam se lembrava do momento em
que chegara ao casarão. Não conhecia o lugar, nem tinha um mapa para
auxiliá-lo. Mas agora estava na companhia daquela menina, que estava servindo
de guia para ele. E demonstrava estar realizando um excelente serviço.
Após
um bom tempo de caminhada, chegaram ao caminho subterrâneo que ligava aquele
imenso casarão ao castelo do rei.
—
Tive que usar este caminho longo para chegar até aqui, pois era o mais seguro.
As salas e corredores pelos quais passamos dificilmente são utilizados. Agora
teremos mais uma longa caminhada para chegar ao castelo.
—
Você deve estar cansada, Amanda.
—
É verdade, estou cansada e faminta. E você?
—
Bem, eu sou um monge, é muito raro ficar cansado.
—
Sério?
—
Sério.
—
Mas deve estar com fome, não?
—
Sim, fome eu sinto.
—
Então vamos parar um pouco para descansar e nos alimentar, Renam.
—
Tudo bem.
Amanda
levava uma sacola com alimentos e bebida. Enquanto Renam se arriscava na
tentativa de conseguir a armadura na sala do tesouro, Amanda ocupara-se na
cozinha. Roubara algumas frutas, pães, um pedaço de bolo e uma garrafa com suco
de laranja. Afanara também dois copos e agora enchia um para si e outro para o
companheiro.
—
Que espécie de monge é você? — perguntou de repente, pegando-o de surpresa.
—
O quê? Como assim?
—
Hum… Embora eu me sinta mais estimulada por exercícios mentais do que físicos,
entendo o bastante de artes marciais para lhe fazer tal pergunta.
—
Você também treina?
—
Ah, não, claro que não. Mas fui criada num ambiente de monges. Meus irmãos eram
monges.
—
Eu não entendi sua pergunta, Amanda.
A
menina olhou para o rapaz, como se estivesse pensando no que dizer. Após alguns
momentos, falou:
—
Você não luta como um monge comum. É capaz de enfrentar vários guerreiros de
uma só vez e sair da batalha sem um único arranhão. Como consegue lutar tão
bem?
Renam
sentiu seu rosto esquentar. Ao perceber o vermelhão nas bochechas do jovem
guerreiro, Amanda sorriu. Concluiu que Renam era muito modesto para falar sobre
si.
—
E então? Vai me responder, ou me deixará apenas na curiosidade?
Sem
alternativa, o monge respondeu:
—
Ah,… é que, bem… eu me tornei… eu sou um mestre.
—
O quê? — espantou-se a menina. — Mas existem somente uns dois ou três em todo o
mundo.
—
Quatro, na verdade — corrigiu Renam.
—
Bem, eu já me sentia segura contigo antes, agora nem se fala.
Renam
deu um sorriso amarelo, sentindo que ainda estava ruborizado.
—
Ora, vamos, deixe de timidez. Você pode ter um título mais importante que o de
um rei, basta provar que é um mestre e terá tratamento especial em qualquer
parte do mundo, enquanto que um rei será alguém especial somente no reino que
governa. Mas ainda é um ser humano, não é verdade?
—
Sim, é claro.
Amanda
continuou sorrindo para o monge, enquanto este se ocupava em levar mais alimentos
à boca. Naquele momento, começou a sentir grande admiração por ele. Ambos
estavam sentados, um de frente para o outro, sendo que Amanda estava próximo à
parede.
—
Renam, estou com muito sono. Preciso dormir um pouco.
—
Claro, Amanda, não se preocupe. Acho que também vou dormir um pouquinho.
Amanda
continuou sentada. Apenas encostou as costas na parede, baixou a cabeça e
dormiu imediatamente. Ao se acordar, percebeu que o monge estava ao seu lado.
Suas costas não estavam mais apoiadas na parede fria, mas no musculoso braço
esquerdo do guerreiro e sua cabeça repousava no peito do monge.
—
Ele me protege de todas as maneiras, talvez queira mesmo ser meu pai — pensou a
menina, permanecendo naquela posição alguns momentos depois de ter acordado.
Amanda
sentia-se triste. Após a morte de seus pais, sua vida transformara-se em um
pesadelo. Seu irmão mais velho foi condenado ao exílio; ela e o outro irmão
foram feitos prisioneiros no calabouço de sua própria casa pelo irmão Julian,
que agora ocupava um trono que não era seu.
Com
muito cuidado, retirou o braço de Renam de suas costas. O monge ainda dormia,
aparentando exaustão pelo último serviço que realizara: entrou em confronto
direto contra doze guerreiros treinados, apoderou-se de Armadura de Prata, despistou
e fugiu de quarenta e sete homens e, como se não bastasse, caminhou desde a
sala do tesouro até ali, carregando a armadura que até não era muito pesada, se
a pessoa não fosse muito longe com ela, o que não era, obviamente, o caso.
Passado algum tempo, o jovem guerreiro finalmente acordou.
—
Olá, Amanda.
—
Olá Renam. Bem-vindo ao mundo dos vivos. A propósito, temos uma longa caminhada
pela frente, acho que foi muito necessário este momento de repouso.
—
Dormi muito?
—
Acho que sim. Já estou acordada há um bom tempo.
—
Bem, então é melhor irmos andando. Tenho um prazo para entregar esta armadura.
—
Renam, posso te fazer uma pergunta? — falou a garota, ao iniciar a caminhada.
—
É claro. O que gostaria de saber?
—
Bem, é que você vai entregar a Armadura de Prata ao homem que quer dominar o
mundo. O meu irmão é mau e ambicioso o bastante para vestir esta coisa e se
submeter ao ritual que o transformará no maior de todos os guerreiros. Sei que
você é um monge excepcional, mas será que confia tanto em si mesmo que se julga
capaz de derrotar um guerreiro invencível? Será que o título de mestre lhe
subiu a cabeça?
—
Amanda, nem mesmo um mestre tem a menor das chances contra o guerreiro da mais
antiga lenda de Kendora. Todos os exércitos do mundo poderiam se unir e,
provavelmente, apenas conseguiriam ser dizimados. A armadura é tão poderosa que
torna seu portador literalmente invencível. Nem mesmo o maior dos magos ou uma
convenção que reunisse todos os bruxos poderia fazer frente a ela.
—
Mas então o que pretende fazer?
—
Quaisquer tentativas de confronto direto serão completamente inúteis. Apenas um
estratagema muito bem elaborado poderá assegurar nossa sobrevivência.
Amanda
ficou pensativa com a resposta que recebera de Renam. Percebeu que o rapaz não
queria lhe revelar sua tática. Dessa forma, decidiu não tocar mais no assunto.
Conformou-se com a idéia de que ele sabia o que estava fazendo e decidiu que
não lhe perguntaria mais, pois não queria aborrecê-lo.
Andaram
pela passagem que ligava os dois castelos por tempo suficiente para que Amanda
começasse a dar os primeiros sinais de cansaço, quebrando o silêncio:
—
Vamos parar um pouco, Renam. Devemos estar caminhando metade de um dia inteiro.
Preciso descansar.
—
Tudo bem.
Ambos
sentaram no chão. Renam parecia tranqüilo, mas Amanda fazia caretas enquanto
retirava suas sandálias.
—
Ah, como é bom sentir o ar tocando nos pés. Os meus pareciam estar pegando
fogo… — comentou a menina, enquanto esticava suas pernas. — Você não está
sentindo que seus pés estão quentes, Renam?
—
Na verdade, não. Estou acostumado com os meus sapatos.
—
Puxa, mas você é incrível! Não se cansa, não sente calor… E dor? Você sente
dor?
—
Amanda — respondeu o monge, sorrindo —, eu sou um ser humano. Sinto dor, tenho
sentimentos, sou uma pessoa de carne e osso.
—
Tá legal, tá legal, não está mais aqui quem falou. Mas é esquisito ver alguém
tão resistente assim. Eu mal consigo erguer essa armadura e você a carregou
esse tempo todo sem se cansar. Todos os mestres são superfortes?
—
Hum… Acho que sim. Por falar em resistência, falta muito para alcançarmos o
castelo?
—
Devemos ter percorrido a metade do caminho.
—
Só a metade? — espantou-se o monge.
—
Sim. Teremos um bom trecho pela frente, como pode ver.
—
Esse corredor é enorme. Como conseguiram construí-lo?
—
Foi logo que os dois reinos se uniram. Vinte pessoas de total confiança dos
reis foram contratadas para abrir este caminho.
—
Apenas vinte homens construíram tudo isso?
—
Sim, mas trabalharam cerca de vinte e sete verões. Eu tinha sete verões de
idade quando a obra foi concluída. Quando o meu irmão se rebelou e pôs em
prática o plano que logo o tornaria rei, meus pais não perderam tempo em
revelar seus segredos a mim e aos outros dois irmãos.
Renam
não apenas ouvia atentamente, como dirigia seu olhar à menina, como se a
estudasse para descobrir se estava sendo sincera. De repente, os olhos de
Amanda ficaram vermelhos e úmidos, e seu rosto assumiu uma expressão infeliz.
—
O que foi, Amanda? Por que esse rostinho tão triste?
Amanda
olhava para o lado enquanto respondia:
—
Meus pais tinham bastante idade quando faleceram. Mas eu receio que o plano de
meu irmão tivesse o objetivo de abreviar o tempo de vida deles, para que
chegasse mais rapidamente no lugar que tanto almejava. Até hoje fico me
perguntando: se o meu irmão não fosse ambicioso, será que eles ainda estariam
vivos?
Lágrimas
correram pelo rosto da menina, partindo o coração de Renam. Aproximou-se dela e
abraçou-a, colocando a cabeça de Amanda em seu peito. Tocou bem de leve nos
cabelos da menina e, com voz carinhosa, falou:
—
Por favor, não chore, querida. Eu não suporto te ver tão triste.
Beijou
várias vezes a parte mais alta da cabeça de Amanda, enquanto alisava seus
cabelos. Ambos permaneceram nesta posição por alguns momentos, até que Renam
quebrou o silêncio.
—
Amanda, olhe para mim — falou, com voz gentil.
A
garota ergueu a cabeça e olhou diretamente nos olhos do monge.
—
Se eu te dissesse que você mora no meu coração e que quero te adotar, o que você
me responderia?
Amanda
hesitou um pouco e então respondeu:
—
Que você, papai, é meu herói!
Momentos
depois, retomaram a caminhada. Amanda enganchou seu braço direito no braço
esquerdo de Renam e foram caminhando dessa maneira por um bom tempo. Quase não
se falavam porque as palavras pareciam desnecessárias. Os muitos sorrisos e os
olhares carinhosos que um dirigia ao outro parecia ser o suficiente. Amanda
percebeu que estava certa quando imaginou que, com Renam, encontrara outra
família; ele agora seria seu protetor, substituindo o verdadeiro pai que se
fora; ela agora teria alguém que a colocasse na cama, que contasse histórias
para que dormisse, que lhe diria palavras carinhosas e a consolaria nos
momentos difíceis; agora teria alguém para amar e ser amada…
Renam
também partilhava dessa mesma alegria. Olhava para Amanda e via uma menina que,
mesmo extremamente inteligente, demonstrava estar sempre necessitada de alguém
que a amparasse. E ele seria esse apoio; estaria com ela sempre que precisasse;
faria com que tivesse uma vida feliz…
Perdidos
em pensamentos e sentimentos de felicidade, não repararam que a segunda etapa
da caminhada fosse tão comprida. Embora mantivessem um ritmo normal em seus
passos, não pareciam se cansar, pois suas atenções estavam desviadas do
corredor; pensavam em como seria as suas vidas quando tudo aquilo terminasse.
Estariam livres da ameaça representada pela armadura e poderiam continuar suas
vidas. Renam queria salvar Karine, levá-la para o seu reino e se casar com ela.
Ele, Karine e Amanda formariam uma família completa. Amanda, por sua vez,
pensava apenas em permanecer junto a Renam. Se ele ficasse no seu reino, ela
também ficaria e se partisse para o outro reino, ela o acompanharia.
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