Um
heroísmo é recompensado
O
sol estava se pondo quando Karine se preparava para ir embora. Olhava para a
porta de entrada do armazém, esperando ver o monge para que a acompanhasse até
a sua casa, como havia feito nos últimos três dias. No dia anterior, tentara
beijá-lo, mas bem na hora ele virara o rosto. Em seguida, pareceu ter ficado
triste e se despediu. Karine não havia entendido a atitude do rapaz, mas
esperava vê-lo novamente. Mas ele não veio naquele dia, nem nos dias seguintes.
Renan, Joshua e Naêmia estavam almoçando em casa,
discutindo estratégias para explorar o castelo do rei de alguma maneira, de
modo que pudessem descobrir se a gema sagrada estava ou não em poder do tirano.
Antes que terminassem a refeição, ouviram batidas na porta. Naêmia, que já
estava em pé, foi atender. Ao retornar, dirigiu-se ao monge:
— Era uma mensagem do rei para você, Renan — olhou para
Joshua e prosseguiu. — Estamos com sorte. Queríamos uma chance de fazer um
reconhecimento no castelo e parece que vamos tê-la. O mensageiro informou que o
rei tem uma proposta para Renan, mas solicita que o acompanhemos.
— Excelente — concordou o bruxo. — Talvez você esteja
certa, Naêmia.
— Quando devemos ir ao castelo? — perguntou o monge.
— O mais rápido que pudermos.
— Então vamos agora — conclui o rapaz.
Sem perder tempo, Renam e Joshua se levantaram,
dirigiram-se para a rua, acompanhados por Naêmia, e foram em direção ao
castelo. Logo se encontravam na sala real, conversando com o governante daquele
reino.
— Sejam bem vindos, cavalheiros, mais uma vez ao meu
castelo. Espero que tenham gostado da estadia na cidade, desde que chegaram. Há
quantos dias estão em Damaris?
— Oito dias, majestade — respondeu Joshua. — Estamos
muito satisfeitos com o seu reino.
— Folgo em saber. Mas eu os chamei aqui porque tenho
importantes assuntos a tratar com vocês — disse o rei, fazendo uma pausa. — Há alguns
dias, soube que um assalto foi evitado no armazém da estalagem mais próxima.
Mandei alguns agentes investigarem quando descobri a maneira como tudo
aconteceu. De acordo com relatos de testemunhas, um exímio lutador de artes
marciais deu um verdadeiro espetáculo, salvando a vida de uma garota e
impedindo o roubo. Fiquei sabendo, hoje pela manhã, que esse lutador era você,
meu jovem.
O rei fez mais uma pausa, olhando intensamente para
Renam. O monge, por sua vez, retribuía o olhar sem demonstrar emoção.
— É tudo muito simples — continuou o rei. — Por favor, me
acompanhem.
Começou a caminhar em direção a uma sala com o capitão,
dois seguranças, Renam, Joshua e Naêmia logo atrás. Se no primeiro dia em que
colocaram os pés no castelo acreditaram que ele era imenso, naquele momento
passaram a ter certeza. Andaram por vários corredores, subiram diversas
escadarias e atravessaram um bom número de salas para que chegassem até o local
onde o rei queria levá-los. Em determinado momento, sem dizer palavras, o rei
abriu uma porta e fez um gesto para que os visitantes entrassem primeiro. Renam
ficou simplesmente maravilhado com o que via: uma grande sala, cheia de monges
seguindo as instruções de um mestre. Ao perceber a presença do rei, o mestre
levantou a mão direita e todos os monges pararam ao mesmo tempo.
— Bom dia, majestade. Seja bem vindo à nossa sala de
treino — falou o mestre, com um aceno de cabeça e uma leve curvatura de corpo.
— Mestre Ryan, quero lhe apresentar algumas pessoas. Este
é Joshua, pai de Naêmia, casada com Renam.
O mestre inclinou três vezes a cabeça, saudando os
visitantes.
— Estou aqui, mestre Ryan, por um motivo especial: quero
que avalie as habilidades deste rapaz.
— Pois não, majestade. Por favor, aproxime-se Renam. E
vocês, formação circular — disse o mestre a seus discípulos.
Rapidamente, os monges desfizeram as filas e formaram um
grande círculo. O mestre conduziu Renam ao centro do círculo e observou seus
aprendizes por um instante. Em seguida, gritou:
— Nícolas, aproxime-se.
Um rapaz, extremamente forte, levantou-se e caminhou em
direção aos dois. O mestre olhou para os dois monges, que se posicionaram de
frente um para o outro. Afastou-se e levantou a mão. Ao baixá-la, a luta
começou.
Ambos começaram a se atacar e se defender, executando
movimentos em perfeita sincronia. Com técnicas de esquiva e golpes precisos,
executaram uma fantástica luta, que mais parecia uma dança. Embora o monge que
Renam enfrentava fosse mais alto, forte e musculoso, em alguns instantes
começou a perceber falhas em suas técnicas de ataque. Apenas esperou o momento
certo, bloqueou um chute que atingiria o seu rosto e pulou, girando velozmente
o corpo. Com um salto perfeito, chutou o rosto do adversário e, ao atingir o
chão, girou o corpo mais uma vez, acertando seus tornozelos com outro golpe de
pernas. O monge caiu e Renam tornou-se vitorioso naquele combate, recebendo os
merecidos aplausos dos demais presentes. O monge derrotado levantou-se e
apertou a mão de Renam, com um sorriso no rosto.
— Impressionante — disse o mestre. — Não acreditava que
Nícolas pudesse ser derrotado com tamanha facilidade, mas isso hoje aconteceu.
Meu jovem, você é um excelente artista marcial. Será uma honra tê-lo aqui.
O rei fitava Renam com uma intensidade no olhar, enquanto
o mestre derramava-se em elogios.
— Bem, ainda não sei exatamente porque estou aqui — disse
Renam, da forma mais educada possível.
— Não sabe? — questionou o mestre. — Ora, meu jovem, se o
rei pediu-me para testá-lo, é porque se interessa por você. Imagino que ele
queira que você faça parte de nosso grupo, não é mesmo, majestade? — questionou
o mestre, aparentando estar bem empolgado.
— Majestade? — perguntou novamente o mestre, incomodado
com o silêncio do rei. — Este rapaz agora fará parte do grupo, não?
Como se tivesse saído de um transe, o rei olhou para o
mestre e respondeu:
— O quê? Ah, sim, claro. É isso mesmo o que imagino. Mas
apenas se ele quiser, obviamente.
Colocou a mão direita sobre o ombro esquerdo de Renam e
falou:
— Meu bom rapaz, gostaria de convidá-lo a fazer parte de
nossa equipe de monges. Você é um exímio lutador, seria uma excelente aquisição
para o reino de Damaris. O que me diz?
O rei observou Renam com seus olhos muito brilhantes e,
diante do silêncio do rapaz, acrescentou:
— Não se preocupe, não há necessidade de dar-me uma
resposta neste exato momento.
Olhou para o mestre, que observava Renam animadamente, e
disse:
— Mestre, obrigado por sua ajuda. Iremos agora. Por
favor, continuem o treino.
— Mas é claro, majestade. Homens, em formação — falou em
voz alta o mestre, enquanto o rei saía da sala de treinamento com seus três
visitantes.
— Por favor, me acompanhem — disse o rei. — Enquanto você
decide, Renam, vou mostrar-lhes algumas coisas que talvez possam ser de seus
interesses. Venham por aqui.
Subiram mais uma escadaria e chegaram num lugar que
aparentava ser um corredor com várias portas em cada lado.
— Estes são os quartos dos monges. Cada pessoa que mora
em meu castelo tem seu próprio quarto. Se você decidir ficar conosco, Renam,
ocupará um destes aposentos.
O rei abriu uma das portas para que o guerreiro tivesse
uma idéia de como era o quarto.
— Não é muito grande, eu sei — comentou o rei. — Mas é
confortável. Há espaço para deitar, sentar, ler, enfim, não é de todo mau, como
pode ver. Além disso, sempre haverá alguém limpando o quarto para você. Quando
quiser roupas, basta escolher neste armário e deixar neste cesto as que usou
durante o dia, que uma serviçal as levará para lavar.
O rei conduziu-os para o corredor e um de seus seguranças
fechou a porta do quarto do qual saíram.
— Agora por aqui — disse o rei,
levando-os a outras partes do castelo. — Este é o local onde todos fazem suas
refeições.
A sala era imensa. Renam ficou, por
um instante, imaginando quantas pessoas moravam naquele castelo descomunal.
— A comida é de ótima qualidade — disse o rei sem
necessidade, pois naquele momento várias pessoas estavam se alimentando;
tomavam o café da tarde.
Renam, Naêmia e Joshua observaram a abundância de
alimentos. Era oferecido três opções de bebidas — café, leite ou suco — e
vários tipos de pães e bolos, para não falar de pequenas outras iguarias doces
e salgadas, feitas pelos cozinheiros.
— Estão com fome? Venham, vamos fazer uma refeição
juntos. Por favor, sentem-se.
— Obrigado, majestade — falou Joshua, sentando logo
depois do rei.
Renam e Naêmia também ocuparam seus assentos. Os três não
estavam com muita fome, mas ainda assim ficaram surpresos por terem comido
tanto.
— Delicioso — falou Joshua, ao terminarem a refeição,
sendo concordado pelos dois amigos.
— Fico satisfeito em ouvir isso. Venham comigo, pois
tenho mais coisas para lhes mostrar.
Desceram uma escadaria e passaram por um corredor. Renam
observou que havia algumas estátuas naquele corredor, o que era muito estranho.
Por que elas estariam ali? Seria mais uma extravagância do rei ou teriam essas
estátuas um objetivo que não fosse o de adorno? Desde que passaram pelos
portões para entrar na cidade, quase tudo o que encontravam parecia muito
esquisito. Renam sentia-se como se estivesse em outro planeta, pois tudo era
completamente diferente do que estava habituado. Mas antes que continuasse a se
questionar sobre outras idéias relacionadas aquele reino, chegaram em outra sala.
— Esta é a nossa biblioteca. Em suas horas de folga, é
comum as pessoas virem aqui. Nosso acervo é enorme, como podem ver.
Os três ficaram espantados com o tamanho da biblioteca e
a quantidade de livros. Havia muitas estantes posicionadas em fileiras,
formando imensos corredores. Além disso, também eram muito altas, alcançando o
teto.
— Temos mais de dois milhões de exemplares — comentou o
rei, orgulhoso. — Nossa biblioteca está tão lotada que nem cabe mais livros.
Joshua, Naêmia e Renam puxaram, cada um, um livro de
estantes diferentes e o analisaram superficialmente, em tom aprovador.
Colocaram os livros de volta em seus devidos lugares, não conseguindo esconder
a surpresa formada em seus rostos. Os três voltaram sua atenção para o rei, que
os observava atentamente.
— Espero que pense sobre a minha proposta, meu jovem. O
meu castelo, como pode ver, é bem acolhedor. Não ouço reclamações das pessoas
que moram aqui.
— Majestade… — começou Renam, mas não pôde continuar
porque foi interrompido pelo rei.
— Por favor, não quero sua resposta agora, pois não
acredito ser bom sentir-se pressionado. Quero que vá agora para sua casa, pense
e me responda amanhã, pela manhã.
O rei fez uma breve pausa, enquanto olhava para Joshua e
Naêmia. Voltou-se para Renam:
— É claro que sua esposa e seu sogro virão morar aqui,
caso você aceite minha proposta. Há lugares para todos. Bem, creio que isso é
tudo por hoje, senhores. Amanhã espero vê-los novamente. Capitão, acompanhe os
cavalheiros e esta dama até a saída do castelo. Tenham um bom dia.
Os três retornaram o cumprimento do rei, de maneira
igualmente educada, e saíram do castelo. Dirigiram-se para sua residência
temporária, decididos a comentarem a situação apenas quando estivessem dentro
de casa. Naêmia e Renam caminharam em direção à residência alugada, enquanto
Joshua buscava mais alguns mantimentos no armazém da estalagem.
Logo Renam e Naêmia estavam na cozinha, organizando os
ingredientes para a refeição noturna. O sol estava se pondo e não tardaria para
que Joshua chegasse com mais lenha e outros mantimentos que estavam começando a
faltar. Tanto Naêmia quanto Renam mantinham-se em silêncio enquanto descascavam
batatas, picavam cebolas, cenouras e outros. Preferiam discutir a proposta do
rei quando Joshua estivesse presente.
Não demorou muito, a porta da cozinha se abriu e Joshua
entrava com lenha e outros produtos nos braços. Renam e Naêmia cumprimentaram o
amigo. Porém, Joshua pareceu, ao menos por um momento, hesitar em
cumprimentá-los, fixando seu olhar em Renam. Mas logo pareceu recompor-se,
retornando o cumprimento dos dois. Renam chegou a pensar em perguntar se estava
tudo bem, pois estranhara o olhar de Joshua. Contudo, tão logo que abriu a
boca, teve que fechá-la sem pronunciar uma única palavra. Naêmia parecia não
estar surpresa com aquele estranho olhar do bruxo. Além disso, a mulher queria
discutir logo a situação na qual se encontravam. E assim que passou a levantar
questionamentos, o monge imaginou que era besteira a pergunta que iria fazer a
Joshua, visto que tinham assuntos urgentes a tratar.
— Nossa oportunidade parece ter chegado, afinal de contas
— comentou Naêmia, com um sorriso.
— Realmente, Naêmia — concordou Joshua. — Imaginávamos
alguma desculpa para visita, ou ainda uma invasão na calada da noite. O que
temos agora, porém, é muito melhor: um convite para morarmos no castelo.
— Bem, amanhã pela manhã direi ao rei que aceito sua
proposta. Vamos nos mudar para lá o mais rápido possível e começar nossa
investigação.
— É claro, mas teremos de ser cuidadosos — falou a
mulher.
— Realmente, Naêmia, cautela nunca é demais — disse
Joshua, preocupado. — Primeiro vamos nos inteirar dos costumes do castelo. Em
seguida, traçaremos um plano de ação que nos permitirá descobrir e analisar as
evidências. Por fim, se conseguirmos fazer isso sem levantar suspeitas, então
teremos a possibilidade de elaborarmos um plano para recuperar a Ametista
Mágica.
— Concordo com vocês, mas há coisas sobre as quais também
devemos pensar — disse Renam, desanimado.
— Por exemplo? — indagou Naêmia.
— O castelo é enorme. Se formos explorá-lo nos poucos
instantes livres que teremos, podemos ficar o resto de nossas vidas nesta
busca. Além disso, o rei parece priorizar a segurança, tanto a do reino quanto
a pessoal. Ainda não entendo como este reino tem uma fama tão maligna,
considerando que os únicos criminosos que enfrentei foi no armazém da
estalagem, há vários dias.
Joshua, que estava olhando distraidamente pela janela,
virou rapidamente o rosto em direção a Renam ao ouvi-lo mencionar a estalagem,
mas o movimento passou despercebido.
— Sabemos que nossa missão não será fácil e que há coisas
neste reino que ainda não entendemos — admitiu Naêmia. — Mas depois de
terminarmos nossas tarefas, certamente conseguiremos um tempo para bancarmos os
detetives.
— Você ainda não entendeu o que eu quis dizer — retrucou
o monge. — Diferentemente do castelo de nosso reino, este deve ter seguranças
espalhados durante a noite, para garantir que seus ocupantes não sejam
perturbados. É óbvio que teremos de realizar a nossa investigação quando todos
estiverem dormindo, mas os seguranças que fazem a ronda serão um obstáculo a
mais.
— Seguranças noturnos? E como sabe disso, Renam? Alguém
lhe contou alguma coisa, ou é apenas uma suposição sua?
Renam ficou pensativo e, antes que pudesse responder às
questões da amiga, Joshua interveio.
— Penso que isso é interessante, Naêmia. As hipóteses de
Renam têm uma lógica inquestionável. Realmente teremos pouquíssimo tempo para
executarmos a nossa missão, considerando que um momento teremos de dormir. E o
rei seria louco se não colocasse vigias em seu castelo, com toda aquela riqueza
em estátuas, quadros e outros objetivos de ouro e prata espalhados pelo lugar.
Soma-se isso ao tamanho da área de investigação, e teremos três enormes
problemas para resolver. Quatro, se considerarmos o fato de que temos que
localizar a pedra.
— Tudo bem — disse Naêmia. — Talvez seja melhor
esquecermos tudo e voltar para casa de mãos vazias. O máximo que poderá
acontecer é um dia acordarmos e descobrir que nos tornamos escravos de um
tirano com poderes sobrenaturais. Mas há algo que vocês estão se esquecendo:
agora, nós estamos dentro.
Joshua e Renam abriram um sorriso para Naêmia. A mulher
tinha razão, pensaram. Os obstáculos eram muitos e não havia garantias de êxito
em sua missão. Mas, de todos, o maior obstáculo já havia sido superado:
estariam dentro do castelo, por tempo indeterminado, a convite do próprio rei.
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