domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capítulo 4

Um heroísmo é recompensado

            O sol estava se pondo quando Karine se preparava para ir embora. Olhava para a porta de entrada do armazém, esperando ver o monge para que a acompanhasse até a sua casa, como havia feito nos últimos três dias. No dia anterior, tentara beijá-lo, mas bem na hora ele virara o rosto. Em seguida, pareceu ter ficado triste e se despediu. Karine não havia entendido a atitude do rapaz, mas esperava vê-lo novamente. Mas ele não veio naquele dia, nem nos dias seguintes.




            Renan, Joshua e Naêmia estavam almoçando em casa, discutindo estratégias para explorar o castelo do rei de alguma maneira, de modo que pudessem descobrir se a gema sagrada estava ou não em poder do tirano. Antes que terminassem a refeição, ouviram batidas na porta. Naêmia, que já estava em pé, foi atender. Ao retornar, dirigiu-se ao monge:
            — Era uma mensagem do rei para você, Renan — olhou para Joshua e prosseguiu. — Estamos com sorte. Queríamos uma chance de fazer um reconhecimento no castelo e parece que vamos tê-la. O mensageiro informou que o rei tem uma proposta para Renan, mas solicita que o acompanhemos.
            — Excelente — concordou o bruxo. — Talvez você esteja certa, Naêmia.
            — Quando devemos ir ao castelo? — perguntou o monge.
            — O mais rápido que pudermos.
            — Então vamos agora — conclui o rapaz.
            Sem perder tempo, Renam e Joshua se levantaram, dirigiram-se para a rua, acompanhados por Naêmia, e foram em direção ao castelo. Logo se encontravam na sala real, conversando com o governante daquele reino.
            — Sejam bem vindos, cavalheiros, mais uma vez ao meu castelo. Espero que tenham gostado da estadia na cidade, desde que chegaram. Há quantos dias estão em Damaris?
            — Oito dias, majestade — respondeu Joshua. — Estamos muito satisfeitos com o seu reino.
            — Folgo em saber. Mas eu os chamei aqui porque tenho importantes assuntos a tratar com vocês — disse o rei, fazendo uma pausa. — Há alguns dias, soube que um assalto foi evitado no armazém da estalagem mais próxima. Mandei alguns agentes investigarem quando descobri a maneira como tudo aconteceu. De acordo com relatos de testemunhas, um exímio lutador de artes marciais deu um verdadeiro espetáculo, salvando a vida de uma garota e impedindo o roubo. Fiquei sabendo, hoje pela manhã, que esse lutador era você, meu jovem.
            O rei fez mais uma pausa, olhando intensamente para Renam. O monge, por sua vez, retribuía o olhar sem demonstrar emoção.
            — É tudo muito simples — continuou o rei. — Por favor, me acompanhem.
            Começou a caminhar em direção a uma sala com o capitão, dois seguranças, Renam, Joshua e Naêmia logo atrás. Se no primeiro dia em que colocaram os pés no castelo acreditaram que ele era imenso, naquele momento passaram a ter certeza. Andaram por vários corredores, subiram diversas escadarias e atravessaram um bom número de salas para que chegassem até o local onde o rei queria levá-los. Em determinado momento, sem dizer palavras, o rei abriu uma porta e fez um gesto para que os visitantes entrassem primeiro. Renam ficou simplesmente maravilhado com o que via: uma grande sala, cheia de monges seguindo as instruções de um mestre. Ao perceber a presença do rei, o mestre levantou a mão direita e todos os monges pararam ao mesmo tempo.
            — Bom dia, majestade. Seja bem vindo à nossa sala de treino — falou o mestre, com um aceno de cabeça e uma leve curvatura de corpo.
            — Mestre Ryan, quero lhe apresentar algumas pessoas. Este é Joshua, pai de Naêmia, casada com Renam.
            O mestre inclinou três vezes a cabeça, saudando os visitantes.
            — Estou aqui, mestre Ryan, por um motivo especial: quero que avalie as habilidades deste rapaz.
            — Pois não, majestade. Por favor, aproxime-se Renam. E vocês, formação circular — disse o mestre a seus discípulos.
            Rapidamente, os monges desfizeram as filas e formaram um grande círculo. O mestre conduziu Renam ao centro do círculo e observou seus aprendizes por um instante. Em seguida, gritou:
            — Nícolas, aproxime-se.
            Um rapaz, extremamente forte, levantou-se e caminhou em direção aos dois. O mestre olhou para os dois monges, que se posicionaram de frente um para o outro. Afastou-se e levantou a mão. Ao baixá-la, a luta começou.
            Ambos começaram a se atacar e se defender, executando movimentos em perfeita sincronia. Com técnicas de esquiva e golpes precisos, executaram uma fantástica luta, que mais parecia uma dança. Embora o monge que Renam enfrentava fosse mais alto, forte e musculoso, em alguns instantes começou a perceber falhas em suas técnicas de ataque. Apenas esperou o momento certo, bloqueou um chute que atingiria o seu rosto e pulou, girando velozmente o corpo. Com um salto perfeito, chutou o rosto do adversário e, ao atingir o chão, girou o corpo mais uma vez, acertando seus tornozelos com outro golpe de pernas. O monge caiu e Renam tornou-se vitorioso naquele combate, recebendo os merecidos aplausos dos demais presentes. O monge derrotado levantou-se e apertou a mão de Renam, com um sorriso no rosto.
            — Impressionante — disse o mestre. — Não acreditava que Nícolas pudesse ser derrotado com tamanha facilidade, mas isso hoje aconteceu. Meu jovem, você é um excelente artista marcial. Será uma honra tê-lo aqui.
            O rei fitava Renam com uma intensidade no olhar, enquanto o mestre derramava-se em elogios.
            — Bem, ainda não sei exatamente porque estou aqui — disse Renam, da forma mais educada possível.
            — Não sabe? — questionou o mestre. — Ora, meu jovem, se o rei pediu-me para testá-lo, é porque se interessa por você. Imagino que ele queira que você faça parte de nosso grupo, não é mesmo, majestade? — questionou o mestre, aparentando estar bem empolgado.
            — Majestade? — perguntou novamente o mestre, incomodado com o silêncio do rei. — Este rapaz agora fará parte do grupo, não?
            Como se tivesse saído de um transe, o rei olhou para o mestre e respondeu:
            — O quê? Ah, sim, claro. É isso mesmo o que imagino. Mas apenas se ele quiser, obviamente.
            Colocou a mão direita sobre o ombro esquerdo de Renam e falou:
            — Meu bom rapaz, gostaria de convidá-lo a fazer parte de nossa equipe de monges. Você é um exímio lutador, seria uma excelente aquisição para o reino de Damaris. O que me diz?
            O rei observou Renam com seus olhos muito brilhantes e, diante do silêncio do rapaz, acrescentou:
            — Não se preocupe, não há necessidade de dar-me uma resposta neste exato momento.
            Olhou para o mestre, que observava Renam animadamente, e disse:
            — Mestre, obrigado por sua ajuda. Iremos agora. Por favor, continuem o treino.
            — Mas é claro, majestade. Homens, em formação — falou em voz alta o mestre, enquanto o rei saía da sala de treinamento com seus três visitantes.
            — Por favor, me acompanhem — disse o rei. — Enquanto você decide, Renam, vou mostrar-lhes algumas coisas que talvez possam ser de seus interesses. Venham por aqui.
            Subiram mais uma escadaria e chegaram num lugar que aparentava ser um corredor com várias portas em cada lado.
            — Estes são os quartos dos monges. Cada pessoa que mora em meu castelo tem seu próprio quarto. Se você decidir ficar conosco, Renam, ocupará um destes aposentos.
            O rei abriu uma das portas para que o guerreiro tivesse uma idéia de como era o quarto.
            — Não é muito grande, eu sei — comentou o rei. — Mas é confortável. Há espaço para deitar, sentar, ler, enfim, não é de todo mau, como pode ver. Além disso, sempre haverá alguém limpando o quarto para você. Quando quiser roupas, basta escolher neste armário e deixar neste cesto as que usou durante o dia, que uma serviçal as levará para lavar.
            O rei conduziu-os para o corredor e um de seus seguranças fechou a porta do quarto do qual saíram.
           — Agora por aqui — disse o rei, levando-os a outras partes do castelo. — Este é o local onde todos fazem suas refeições.
          A sala era imensa. Renam ficou, por um instante, imaginando quantas pessoas moravam naquele castelo descomunal.
            — A comida é de ótima qualidade — disse o rei sem necessidade, pois naquele momento várias pessoas estavam se alimentando; tomavam o café da tarde.
            Renam, Naêmia e Joshua observaram a abundância de alimentos. Era oferecido três opções de bebidas — café, leite ou suco — e vários tipos de pães e bolos, para não falar de pequenas outras iguarias doces e salgadas, feitas pelos cozinheiros.
            — Estão com fome? Venham, vamos fazer uma refeição juntos. Por favor, sentem-se.
            — Obrigado, majestade — falou Joshua, sentando logo depois do rei.
            Renam e Naêmia também ocuparam seus assentos. Os três não estavam com muita fome, mas ainda assim ficaram surpresos por terem comido tanto.
            — Delicioso — falou Joshua, ao terminarem a refeição, sendo concordado pelos dois amigos.
            — Fico satisfeito em ouvir isso. Venham comigo, pois tenho mais coisas para lhes mostrar.
            Desceram uma escadaria e passaram por um corredor. Renam observou que havia algumas estátuas naquele corredor, o que era muito estranho. Por que elas estariam ali? Seria mais uma extravagância do rei ou teriam essas estátuas um objetivo que não fosse o de adorno? Desde que passaram pelos portões para entrar na cidade, quase tudo o que encontravam parecia muito esquisito. Renam sentia-se como se estivesse em outro planeta, pois tudo era completamente diferente do que estava habituado. Mas antes que continuasse a se questionar sobre outras idéias relacionadas aquele reino, chegaram em outra sala.
            — Esta é a nossa biblioteca. Em suas horas de folga, é comum as pessoas virem aqui. Nosso acervo é enorme, como podem ver.
            Os três ficaram espantados com o tamanho da biblioteca e a quantidade de livros. Havia muitas estantes posicionadas em fileiras, formando imensos corredores. Além disso, também eram muito altas, alcançando o teto.
            — Temos mais de dois milhões de exemplares — comentou o rei, orgulhoso. — Nossa biblioteca está tão lotada que nem cabe mais livros.
            Joshua, Naêmia e Renam puxaram, cada um, um livro de estantes diferentes e o analisaram superficialmente, em tom aprovador. Colocaram os livros de volta em seus devidos lugares, não conseguindo esconder a surpresa formada em seus rostos. Os três voltaram sua atenção para o rei, que os observava atentamente.
            — Espero que pense sobre a minha proposta, meu jovem. O meu castelo, como pode ver, é bem acolhedor. Não ouço reclamações das pessoas que moram aqui.
            — Majestade… — começou Renam, mas não pôde continuar porque foi interrompido pelo rei.
            — Por favor, não quero sua resposta agora, pois não acredito ser bom sentir-se pressionado. Quero que vá agora para sua casa, pense e me responda amanhã, pela manhã.
            O rei fez uma breve pausa, enquanto olhava para Joshua e Naêmia. Voltou-se para Renam:
            — É claro que sua esposa e seu sogro virão morar aqui, caso você aceite minha proposta. Há lugares para todos. Bem, creio que isso é tudo por hoje, senhores. Amanhã espero vê-los novamente. Capitão, acompanhe os cavalheiros e esta dama até a saída do castelo. Tenham um bom dia.
            Os três retornaram o cumprimento do rei, de maneira igualmente educada, e saíram do castelo. Dirigiram-se para sua residência temporária, decididos a comentarem a situação apenas quando estivessem dentro de casa. Naêmia e Renam caminharam em direção à residência alugada, enquanto Joshua buscava mais alguns mantimentos no armazém da estalagem.
            Logo Renam e Naêmia estavam na cozinha, organizando os ingredientes para a refeição noturna. O sol estava se pondo e não tardaria para que Joshua chegasse com mais lenha e outros mantimentos que estavam começando a faltar. Tanto Naêmia quanto Renam mantinham-se em silêncio enquanto descascavam batatas, picavam cebolas, cenouras e outros. Preferiam discutir a proposta do rei quando Joshua estivesse presente.
            Não demorou muito, a porta da cozinha se abriu e Joshua entrava com lenha e outros produtos nos braços. Renam e Naêmia cumprimentaram o amigo. Porém, Joshua pareceu, ao menos por um momento, hesitar em cumprimentá-los, fixando seu olhar em Renam. Mas logo pareceu recompor-se, retornando o cumprimento dos dois. Renam chegou a pensar em perguntar se estava tudo bem, pois estranhara o olhar de Joshua. Contudo, tão logo que abriu a boca, teve que fechá-la sem pronunciar uma única palavra. Naêmia parecia não estar surpresa com aquele estranho olhar do bruxo. Além disso, a mulher queria discutir logo a situação na qual se encontravam. E assim que passou a levantar questionamentos, o monge imaginou que era besteira a pergunta que iria fazer a Joshua, visto que tinham assuntos urgentes a tratar.
            — Nossa oportunidade parece ter chegado, afinal de contas — comentou Naêmia, com um sorriso.
            — Realmente, Naêmia — concordou Joshua. — Imaginávamos alguma desculpa para visita, ou ainda uma invasão na calada da noite. O que temos agora, porém, é muito melhor: um convite para morarmos no castelo.
            — Bem, amanhã pela manhã direi ao rei que aceito sua proposta. Vamos nos mudar para lá o mais rápido possível e começar nossa investigação.
            — É claro, mas teremos de ser cuidadosos — falou a mulher.
            — Realmente, Naêmia, cautela nunca é demais — disse Joshua, preocupado. — Primeiro vamos nos inteirar dos costumes do castelo. Em seguida, traçaremos um plano de ação que nos permitirá descobrir e analisar as evidências. Por fim, se conseguirmos fazer isso sem levantar suspeitas, então teremos a possibilidade de elaborarmos um plano para recuperar a Ametista Mágica.
            — Concordo com vocês, mas há coisas sobre as quais também devemos pensar — disse Renam, desanimado.
            — Por exemplo? — indagou Naêmia.
            — O castelo é enorme. Se formos explorá-lo nos poucos instantes livres que teremos, podemos ficar o resto de nossas vidas nesta busca. Além disso, o rei parece priorizar a segurança, tanto a do reino quanto a pessoal. Ainda não entendo como este reino tem uma fama tão maligna, considerando que os únicos criminosos que enfrentei foi no armazém da estalagem, há vários dias.
            Joshua, que estava olhando distraidamente pela janela, virou rapidamente o rosto em direção a Renam ao ouvi-lo mencionar a estalagem, mas o movimento passou despercebido.
            — Sabemos que nossa missão não será fácil e que há coisas neste reino que ainda não entendemos — admitiu Naêmia. — Mas depois de terminarmos nossas tarefas, certamente conseguiremos um tempo para bancarmos os detetives.
            — Você ainda não entendeu o que eu quis dizer — retrucou o monge. — Diferentemente do castelo de nosso reino, este deve ter seguranças espalhados durante a noite, para garantir que seus ocupantes não sejam perturbados. É óbvio que teremos de realizar a nossa investigação quando todos estiverem dormindo, mas os seguranças que fazem a ronda serão um obstáculo a mais.
            — Seguranças noturnos? E como sabe disso, Renam? Alguém lhe contou alguma coisa, ou é apenas uma suposição sua?
            Renam ficou pensativo e, antes que pudesse responder às questões da amiga, Joshua interveio.
            — Penso que isso é interessante, Naêmia. As hipóteses de Renam têm uma lógica inquestionável. Realmente teremos pouquíssimo tempo para executarmos a nossa missão, considerando que um momento teremos de dormir. E o rei seria louco se não colocasse vigias em seu castelo, com toda aquela riqueza em estátuas, quadros e outros objetivos de ouro e prata espalhados pelo lugar. Soma-se isso ao tamanho da área de investigação, e teremos três enormes problemas para resolver. Quatro, se considerarmos o fato de que temos que localizar a pedra.
            — Tudo bem — disse Naêmia. — Talvez seja melhor esquecermos tudo e voltar para casa de mãos vazias. O máximo que poderá acontecer é um dia acordarmos e descobrir que nos tornamos escravos de um tirano com poderes sobrenaturais. Mas há algo que vocês estão se esquecendo: agora, nós estamos dentro.

            Joshua e Renam abriram um sorriso para Naêmia. A mulher tinha razão, pensaram. Os obstáculos eram muitos e não havia garantias de êxito em sua missão. Mas, de todos, o maior obstáculo já havia sido superado: estariam dentro do castelo, por tempo indeterminado, a convite do próprio rei.

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