A
longa jornada
O
jovem guerreiro esgueirava-se lentamente pelo corredor, caminhando
silenciosamente até chegar numa grande porta, que indicava o seu final. Com
cuidado a empurrou, movendo-a sem fazer ruídos. Chegara à sala mencionada por
seu amigo. A sala era grande, circular e possuía, como dissera Joshua, várias
passagens. A julgar pela grande mesa redonda, cheia de cadeiras a sua volta,
Renam imaginou tratar-se de uma sala de reuniões. A mesa e as cadeiras eram os
únicos objetos naquele local.
Ao se dirigir às passagens, o monge observou que as
portas estavam destrancadas.
Distribuídas pela imensa parede circular, havia nada mais
nada menos que dezoito portas. Havia exatamente a mesma distância entre uma e outra
— dez passos de um homem da altura de Renam. A mesa, embora também fosse muito
grande, era bem menor que a sala, deixando um grande espaço vazio entre sua
extremidade e a parede.
Sem perder tempo, o monge decidiu se aventurar pela
passagem mais próxima possível do lado esquerdo da porta pela qual passara.
Entrou em um corredor incrivelmente sinuoso. Possuía tantas curvas que, ao
chegar ao final, sua impressão foi que caminhara muito e andara apenas uma
pequena distância.
Estava agora numa sala retangular, simplesmente imensa.
Havia muitos armários, mesas pequenas com gavetas, roupeiros com muitas portas,
estantes de vários tamanhos e completamente ocupadas pelos mais diferentes
objetos, poltronas, camas de dois e três lugares e uma infinidade de outros
materiais, posicionados de maneira a formar corredores, constituindo um
gigantesco labirinto. Se o monge tivesse que abrir cada gaveta e porta, olhar
no interior de cada vaso, caixa e outros tantos tipos de recipientes que ali
existiam, precisaria do período inteiro entre duas luas cheias. Assim, revistou
apenas alguns armários e estantes, decidindo logo voltar à sala circular.
Passou pela próxima porta à esquerda.
Ao abrir a porta, Renam observou a escadaria que se
inclinava a seus pés. De onde se encontrava, não era possível divisar seu
final. Somente descendo boa parte dela é que teria uma idéia do que o guardava
— um risco que teria que correr. A passos firmes, desceu a escadaria de dois
mil degraus, numa velocidade que não seria possível se o rapaz não fosse um
monge. Em poucos instantes, estava no fim da escada, diante de uma porta
decorada com estranhas imagens. Sem recear possíveis perigos que pudesse
ocultar, o rapaz pôs a mão na maçaneta e entrou em mais um compartimento do
castelo.
Renam, o jovem guerreiro, era um homem acostumado ao
inusitado. Por vezes incontáveis, deparou-se com as situações mais bizarras que
poderia imaginar. Porém, nada, absolutamente nada poderia tê-lo preparado para
o que agora se encontrava diante de seus olhos: uma grande sala retangular,
totalmente coberta de quadros, com duas fileiras de grossas paredes em toda a
sua extensão. A distância entre um quadro e outro era mínima, e estavam
afixados tanto nas paredes que constituíam a sala, quanto nas paredes em forma
de estantes, distribuídas em toda a área da sala.
A julgar pela quantidade de quadros — os mais baixos
estavam muito próximos do chão, na medida em que os mais altos quase tocavam o
teto —, o monge imaginou que somente poderia haver dois motivos para tamanho investimento
em quadros: ou o rei era um colecionador completamente louco além de fanático,
ou cada quadro poderia disfarçar um local que pudesse guardar a Ametista
Mágica. Neste caso, Renam teria que retirar cada quadro de seu lugar e procurar
no orifício que todos estariam tapando — uma tarefa para vários dias.
Desanimado, o jovem começou a caminhar entre as fileiras
das grossas paredes, atravessando a sala em linha reta. Enquanto prosseguia,
observava que os quadros eram pequenos e todos do mesmo tamanho. Apresentavam a
mesma pintura, criando na sala um visual realmente enjoativo. Como se não
bastasse, as grossas paredes que formavam as duas fileiras no interior da sala
apresentavam quadros afixados em seus dois lados, e também em suas
extremidades.
Renam continuou avançando pelo espaço entre as duas
fileiras de corredores, até chegar à outra extremidade da sala. Forçou a porta
que se encontrava exatamente entre as duas últimas grossas paredes. Renam
observou que a última parede da sala era igual à primeira que avistara. Os
pequenos quadros estavam afixados nos lados direito e esquerdo da porta, e
também sobre ela. Ao abrir a porta, o monge observou o corredor pelo qual
caminharia, se continuasse sua exploração. Porém, deveria ser muito tarde e
precisaria dormir um pouco, de modo que sua aventura deveria terminar por
enquanto.
O rapaz deu meia volta e começou a caminhar entre as duas
fileiras de paredes novamente. Abriu a porta que apresentava as estranhas
imagens e subiu a escadaria de dois mil degraus, chegando mais uma vez na
imensa sala circular, na qual ele imaginara que se tratava de uma sala de
reuniões. Ao entrar novamente na sala, Renam deu-se conta de que em algum
momento poderia se confundir com aquelas portas. Todas eram iguais e com a
mesma distância entre si. A única maneira de saber por qual porta passar era
ter o seu trajeto sempre memorizado. Ele havia passado pela segunda porta à
esquerda. Nos próximos dias, passaria pela terceira, quarta, quinta e assim
sucessivamente, até que esgotasse todas as suas possibilidades. E isso iria
demorar, pois na primeira passagem sua trajetória terminava na sala retangular,
que parecia um grande depósito. Na segunda passagem, descera a escada e chegara
à estranha sala de quadros. Em seguida, teria ainda um corredor e, certamente,
mais uma sala a explorar — ou muitas outras.
Após sua primeira investigação, tudo o que conseguiu foi
que as dúvidas sobre a eficácia de sua missão se avolumassem em seus
pensamentos. Mas antes que tentasse encontrar respostas para as perguntas que
se formavam em sua mente, deu-se conta que estava diante da porta de seu
quarto. Ao abri-la, observou que Joshua esperava por ele.
— Olá, Renam, encontrou alguma pista?
— Não. E você?
— Também não. Este castelo é imenso, será muito mais difícil
do que havíamos imaginado.
— O que faremos?
— O que pudermos.
Joshua fez uma pequena pausa e, olhando fixando para
Renam, falou:
— Há algo que preciso lhe falar. Esta é a primeira
oportunidade que tenho a sós contigo e pretendo tratar de um assunto muito
importante. É o seguinte…
A frase de Joshua foi interrompida pelo som de porta se
abrindo. Naêmia entrava no quarto.
— Rapazes, alguma novidade?
— Não — responderam automaticamente os dois.
Renam olhou para Joshua, esperando que ele continuasse o
importante assunto sobre o qual queria falar, mas o bruxo manteve-se em
silêncio, como se Naêmia o tivesse distraído. Quando o monge abriu a boca para
lhe questionar, a mulher começou a falar de sua investigação:
— Este castelo é grande demais. Talvez precisemos do
resto de nossas vidas para encontrar a gema sagrada.
— Naêmia, os próximos dias poderão se tornar o resto de
nossas vidas se não encontrarmos a pedra. Não podemos desistir — comentou
Joshua.
— Mas o que vamos fazer? Eu só encontrei corredores e
salas esquisitas, que poderiam servir de esconderijo à pedra. Não temos
condições de avaliar cada possibilidade — argumentou a mulher.
— Você encontrou o mesmo que eu e, provavelmente,
encontramos o mesmo que Renam.
— Sim — respondeu o jovem guerreiro. — Era sobre isso que
falávamos antes que você chegasse.
Houve um momento de silêncio, em que cada um parecia
estar considerando com muito cuidado o que dizer a seguir. Joshua foi quem
quebrou o silêncio:
— Esta é uma missão diferente de quaisquer outras que
tenhamos realizado. Sabíamos no que estávamos nos metendo quando aceitamos esta
tarefa. Porém, devemos lembrar que somos o último recurso de nosso reino e
também de Kendora. Se falharmos, o planeta inteiro estará condenado.
— Mas, Joshua…
— É como falei, Naêmia. Eu também estou ciente de que
esta é uma missão talvez impossível de realizar. Mas não irei desistir. Não
localizamos nenhuma pista hoje, mas é possível que em outro dia possamos
encontrar.
— Sim — disse o monge. — Somos a última esperança de
Kendora. Não podemos deixar nossa vontade desvanecer.
— Tudo bem, mas há mais coisas: como podemos ter certeza
de que a ametista está aqui? Além disso, dizem que esta é a cidade mais
violenta do mundo, mas para mim é a mais limpa e organizada. Tudo o que vimos,
em termos de violência, foi aquele roubo ao armazém da estalagem, evitado por
Renam, logo que chegamos à cidade.
— Concordo que há coisas que ainda não entendemos,
Naêmia. Porém, nosso rei nos deu sua palavra de que a Ametista Mágica estaria
aqui. Para nós, isso deve ser suficiente, considerando que o rei Sebastian é
bom e honrado – comentou Joshua.
— Renam?
— Todas as missões que o rei me ofereceu serviram para
provar a sua dignidade. Eu também acredito nele. Se ele diz que a pedra está aqui,
então deve ter seus motivos.
— E se os motivos dele não forem fortes o bastante? E se
a pedra não estiver neste reino? — perguntou a mulher.
— E por que o nosso rei arriscaria tudo numa hipótese
equivocada? — interveio Joshua. — É o seu reino que também está em jogo. Se um
homem conseguir reunir o Livro Negro, a Ametista Mágica e a Armadura de Prata,
terá um poder tão grande que talvez nem mesmo um exército de bruxos será capaz
de detê-lo. Será o fim.
Houve mais uma pausa. Os três se entreolhavam tristemente.
Procuravam por respostas, mas a cada momento surgiam mais perguntas. Por fim,
foi a vez de Naêmia quebrar o silêncio:
— Sinto muito pela minha negatividade, rapazes. Espero
que não tenham ficado chateados comigo.
Joshua, que estava sentado na beira da cama, levantou-se
e, tocando no ombro de Naêmia, falou gentilmente:
— Não se preocupe. Renam e eu entendemos perfeitamente.
Afinal, estamos no mesmo barco, não é?
Com um leve sorriso em seu rosto, Joshua cumprimentou os
dois amigos, desejando-lhes uma boa noite de sono. Em seguida, foi para o seu
quarto.
Renam acordou com as batidas em sua porta. Sem demora,
abriu-a para ver quem era e o que queria.
— Olá, Kevin, o que deseja?
— Vamos, colega, ou chegaremos atrasados para o treino.
Quer dormir o dia todo? — disse o rapaz, com um sorriso.
— Estarei pronto logo. Apenas trocarei de roupa. Entre.
Kevin passou pela porta e sentou-se na cadeira próxima a
cama. Enquanto Renam vestia outra roupa, Kevin analisava os livros que estavam
numa pequena estante, ao lado da cadeira.
— Estou pronto.
Kevin sorriu e acenou a cabeça positivamente. Levantou-se
e esperou que Renam abrisse a porta para saírem.
— Você tem uns livros bem legais em seu quarto. Quantos
consegue ler no período entre duas luas cheias?
— Cerca de três ou quatro livros, não gosto de ler muito
rápido.
— Eu também não gosto de empregar muita velocidade na
leitura, mas ainda assim leio cerca de doze livros. A minha média é um livro a
cada três dias — falou Kevin, todo orgulhoso.
— Faz idéia de quantos já leu em toda a sua vida?
— Aproximadamente uns mil e quinhentos livros. Comecei a
ler com quatorze verões. Até ter a idade de vinte, lia um livro a cada dois
dias. Depois, passei a ler um a cada três dias. Agora que estou com vinte e três
verões, não consigo mais ler tão rápido, sem deixar de estar atento à história.
— Com certeza você leu mais livros que eu.
— Renam, você já leu “Fadas Infernais” de Armando
Griebeler?
— Não. De que se trata?
— Rapaz, é de arrepiar. Um verdadeiro clássico do terror.
Leia após o almoço se tiver estômago forte, ou antes de dormir caso não tenha
medo de pesadelos. O livro é fantástico: conta a história de cinco mulheres que
viajam até uma cidade chamada Murad. Ao chegarem, imediatamente passam a ser assediadas
pelos moradores, tamanha a sua beleza. A cada lua cheia, um homem simplesmente
some sem deixar vestígios. Vários investigadores são contratados pelo rei. Um
deles descobre a relação entre o sumiço de um habitante de Murad e as belas
mulheres. Fica observando-as até que vê uma delas levar um homem para sua casa,
em uma noite de lua cheia. Sobe numa árvore próxima à casa e, olhando através
de uma janela, vê algo que lhe dá náuseas, além de lhe deixar completamente
horrorizado: o homem está amarrado sobre uma cama e as mulheres começam a
cortá-lo com grandes facas. Arrancam partes do peito, do estômago e dos braços,
levando-os à boca. O homem agoniza até a morte, enquanto as mulheres se
deliciam em seu banquete canibal.
— Esse livro parece ser muito bom. Lembre-se de me
emprestá-lo. Literatura de terror é bem o meu estilo.
— Mas é claro, Renam. Hoje mesmo posso consegui-lo.
Tenho-o em meu quarto. Após a janta, está bem?
— Ótimo, obrigado.
— Não há de quê. Vamos treinar.
O dia do jovem guerreiro foi exatamente igual ao
anterior. Treinou até a hora do almoço, em seguida foi para a biblioteca, tomou
café e voltou ao treino. Logo estava jantando e se dirigindo ao quarto, onde
esperaria por seus dois amigos.
Renam estava na quinta página de “Fadas Infernais” quando
Joshua e Naêmia abriram a porta e entraram no quarto.
— Olá, Renam. Cultivando o hábito da leitura? – perguntou
Joshua, sorrindo.
— Ah, olá para vocês. Meu colega monge me emprestou este
livro. Estou ainda no início.
— Qual o título? — perguntou Naêmia.
— “Fadas Infernais”. Conta a história de cinco mulheres
adeptas do canibalismo.
— Literatura de terror é a minha favorita — comentou
Joshua.
— A minha também — disse o monge.
— Eu prefiro um bom romance. Não entendo por que vocês,
homens, gostam tanto de violência.
— Ora, Naêmia, você também é especialista em artes
marciais, não deveria estranhar tanto assim a violência — argumentou Joshua.
— Aprendi a lutar para me defender — rebateu a mulher. —
Mas sempre que posso, evito a violência.
— Coisas muito açucaradas não fazem o meu gênero. Eu
prefiro histórias que tenham bastante ação. Para mim, é o que está mais próximo
da vida real — comentou o monge.
— Como assim, Renam? — quis saber Naêmia.
— Olhe a nossa missão, por exemplo. Aqui estamos, numa
desesperada tentativa de salvar o mundo do caos. Se a pedra, o livro e a
armadura forem reunidos, teremos um inimigo invencível a enfrentar. Todos
aqueles que se opuserem morrerão. O restante da humanidade será escravizada. A
nossa história daria um belo livro que reuniria ação, aventura, terror e magia.
— Ei, ótima idéia, Renam. Se sairmos vivos desta, que tal
escrevermos nossa aventura e procurar uma editora para publicá-la? — questionou
Joshua.
— Homens… — resmungou Naêmia, balançando negativamente a
cabeça.
— Espere, nós não estamos te excluindo, Naêmia. Você é
nossa amiga. Está conosco nesta aventura. Escreva por onde andou, o que fez e
com quem falou. Vamos juntar com o que Joshua e eu escreveremos e o dinheiro
que ganharmos com a publicação do nosso livro será dividido em três partes
iguais.
— A oferta parece tentadora — disse a mulher.
— Então você topa? — perguntou Joshua.
— Um dinheirinho a mais não seria nada mal. Sim, aceito a
proposta.
—
Muito bem. Depois que tudo isso acabar, vamos nos dedicar um pouco à nobre arte
de escrever — comentou o monge, com um sorriso.
— Ótimo. Parece que formamos um grupo realmente unido —
disse Joshua, também sorrindo. — Mas imagino que agora seja seguro sairmos do
quarto.
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