domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capítulo 6

Quinta-feira, 25 de agosto. Tassiane já havia jantado e se encontrava em seu quarto, lendo o livro “As Crônicas de Spiderwick”. Como eram livros pequenos, Tassiane pediu à bibliotecária Ângela a coleção toda – 5 livros. Sendo uma cliente assídua da biblioteca, teve o seu pedido prontamente atendido, mesmo sendo emprestado apenas um livro por pessoa. Tassiane era sócia da biblioteca desde que ela e sua família se mudaram para Canoas, há aproximadamente quatorze meses, e nunca tivera problemas relacionados à devolução de livros.
..........Tassiane começara a ler o segundo livro. Lia uma média de cinquenta páginas por dia. Quando estava na página 25, a menina ouviu um som: alguém estava tocando piano. Tassiane estranhou, pois desde que se mudaram, ninguém havia tentado produzir qualquer som no piano. Seu pai o trouxera da casa que alugaram e o deixara na sala. Talvez algum dia alguém se animasse a aprender a tocá-lo. O piano havia sido uma herança que Rodrigues recebera, com o falecimento do pai.
..........Eram 23h15min. Todos se encontravam em seus quartos. Ao menos tinham o costume de deitar cedo. Mas parecia que alguém iria dormir mais tarde naquela noite.
..........Tassiane fechou o livro e saiu do quarto. Queria ver quem estava tocando. Até onde sabia, ninguém tinha aprendido a tocar piano naquela casa, mas quem quer que estivesse na sala, demonstrava ser um músico profissional.
..........Da escada, a garota viu seu pai, de costas, sentado em frente ao piano, dando um show de talento. Desceu a escada e aproximou-se. Um outro som, mais alto, chamou-lhe a atenção. Virou-se e viu o vaso preferido de sua mãe espatifado no chão. Voltou a olhar na direção do piano. Não havia mais música, pois seu pai desaparecera.
..........- Tassi, o que foi isso? – perguntou o pai, do alto da escada. Ele e Júlia haviam ouvido o som de algo se quebrando.
..........- Oh, não – gemeu Júlia, ao descer da escada e ver seu vaso predileto transformado em pedacinhos.
..........- Pai, como foi parar lá em cima tão rápido? O senhor recém estava aqui – falou a menina, apontando a cadeira do piano.
..........- Como é? Do que está falando, Tassi? – perguntou o homem, confuso. 
..........- Pai, o senhor estava tocando piano. De repente o vaso cai no chão e o senhor aparece lá no alto da escada.
..........- Que história é essa, filha? Seu pai estava no quarto comigo, o tempo todo.
..........- Não, mãe, ele estava aqui, tocando piano.
..........- Filha, eu não sei tocar piano. Além disso, como sua mãe falou, eu estava no quarto.
..........- Tassi, se você quebrou o vaso por acidente pode falar, não vamos ficar bravos – falou Júlia, com voz calma.
..........Tassiane olhou para os pais, abismada. Não importava se estava falando a verdade, eles não aceitavam.
..........- Vocês nunca acreditam em mim. Não se preocupam comigo – falou a garota, indo em direção à escada.
..........- Filha... – chamou Júlia.
..........- Eu também sou importante, mãe. Além desta maldita casa, eu também sou importante – falou a menina, com as lágrimas escorrendo pelo rosto.
..........- A cada dia que passa, ela piora. Temos que fazer alguma coisa.
..........- Querido, a Tassi é uma ótima menina. Nunca nos trouxe problemas antes. Na escola está tudo bem. Na outra casa não tivemos problemas.
..........- Ah, o que é que há, Júlia? Vai querer culpar a casa agora? Querida, é só uma casa. A Luciana enfiou minhoca na cabeça de vocês. A Tassi agora está com a imaginação turbinada. Que bela amiga você foi arranjar.
..........Júlia não respondeu. Sempre fora cética, como o marido. Agora, porém, estava dividida entre o seu ceticismo e a vontade de acreditar na filha. Tassiane não era dada a mentiras. Era uma ótima filha, uma aluna exemplar e uma grande amiga. Todos gostavam muito dela. Na nova escola, fizera muitas amizades, inclusive com pessoas que nem eram de sua turma. E se Luciana tivesse razão? E se houvesse mesmo algo na casa que perturbasse a menina?
               
..........O dia havia sido tranquilo. Ninguém comentara nada sobre o episódio da noite anterior. Tassiane observou que sua mãe não estava chateada por causa do vaso. No momento, encontravam-se todos à mesa, terminando a janta. A campainha tocou.
..........- Deixe que eu atendo, querido. Já terminei de jantar.
..........Júlia dirigiu-se à porta.
..........- Quem é? – perguntou a mulher pelo interfone.
..........- Olá, eu sou vizinha de vocês. Poderia entrar um momento?
..........Júlia reparou que a voz era de adolescente. Devia ter uns dezesseis, dezessete anos.
..........- Tudo bem – respondeu Júlia, destravando o portão.
..........Júlia ficou na porta, esperando a visita.
..........- Olá, meu nome é Rosa.
..........- Júlia. É um prazer conhecê-la – falou estendendo a mão.
..........- O prazer é meu – respondeu Rosa, sorrindo.
..........- Por favor, entre – convidou Júlia, reparando na gravidez da moça.
..........- Obrigada.
..........Júlia conduziu a menina até a sala e pediu para que sentasse. Chamaria o marido e as filhas.
..........- Muito bem, temos visita – falou Júlia à mesa, feliz.
..........- Quem é, mãe? – perguntou Maria Alice.
..........- É uma vizinha. Vamos.
..........Depois das apresentações, iniciaram uma agradável conversa.
..........- Eu moro, atualmente, na casa da esquina com a Av. Guilherme Schell. Antes de vocês vierem para cá, eu morei nesta casa, com meu ex-marido. Mas éramos muito jovens naquela época e, assim, as coisas não deram certo. Voltei para a casa dos meus pais e o meu ex-marido alugou um apartamento.
..........Rosa fez uma pausa para tomar fôlego, mas logo prosseguiu:
..........- Mas o meu ex-marido ficou desempregado e teve que voltar para esta casa.
..........- E por que ele não fez como você, retornando para à casa dos pais? – perguntou Rodrigues.
..........- Ele e seus pais não se acertavam. Estavam sempre brigando.
..........- Mas e você? Agora é casada novamente? – perguntou Júlia.
..........- Oh, sim. Depois do Marcos, encontrei o Lúcio. Esta gravidez é de seis meses – respondeu a menina, tocando na barriga.
..........- E por que ele não veio junto? – perguntou Rodrigues.
..........- É porque viaja muito. Ele quase não para em casa.
..........- Bem, o dia em que ele estiver em casa, traga-o aqui. Nós gostaríamos de conhecê-lo – disse Rodrigues.
..........- Claro que o trarei. Tenho certeza de que irão gostar muito dele.
..........- E o seu ex-marido, Rosa? Não teve mais notícias dele? – indagou Júlia.
..........- Vocês não souberam o que aconteceu?
..........- Não – Responderam Rodrigues e Júlia ao mesmo tempo.
..........Rosa suspirou, antes de contar.
..........- Como Marcos estava desempregado, não tinha condições de contratar um pedreiro. Por esse motivo, subiu no telhado para fazer os consertos. Quando estava quase acabando, ele se desequilibrou e caiu, morrendo na hora.
..........Júlia olhou horrorizada para o marido.
..........- Lamentamos muito – falou Rodrigues, solidário.
..........- É, eu também lamento.
..........Houve um minuto de silêncio.
..........- Bem, isso é passado. O que importa é vivermos o presente e planejarmos o futuro – falou Rosa.
..........- São palavras sábias – comentou Rodrigues.
..........- Rosa, você quer um chá, um café? Posso preparar – ofereceu Júlia.
..........- Não, obrigada. Já está tarde, é melhor eu ir andando.
..........Rosa levantou-se e os outros também.
..........- A propósito, Júlia, suas filhas são lindas! – afirmou a garota, sorrindo para as meninas.
..........- Obrigada, vamos acompanhá-la até o portão.
..........Mas ao abrir a porta, perceberam que começara a chover e a cada instante a chuva parecia se intensificar.
..........- Essa não. Você não pode andar rápido, muito menos correr. Mas não podemos deixar que chegue em casa toda molhada. Espere um pouco – falou Rodrigues, indo ao segundo pavimento da casa. Momentos depois, retornara.
..........- Vou lhe emprestar esta capa de chuva – disse Rodrigues, ajudando Rosa a vesti-la.
..........- Obrigada, logo a devolverei.
..........- Não há de quê, Rosa – disse Rodrigues, sorrindo.
..........- Deixamos o portão destravado, Rosa – falou Júlia.
..........- Obrigada mais uma vez. Boa-noite.
..........- Boa-noite – cumprimentaram Rodrigues, a mulher e as filhas ao mesmo tempo.
..........- Mocinha simpática – falou Rodrigues, quando Rosa chegava ao portão.
- É, também gostei muito dela – disse Júlia. – Vamos entrar, querido?
                 
..........Cinco dias havia se passado. Rosa não aparecera para uma segunda visita ou para devolver a capa de chuva.
..........- Querida, que tal visitarmos a Rosa?
..........- Acho uma boa ideia, amor. Faz quase uma semana que não a vemos.
..........- Muito bem. Eu vou convidar as meninas – falou o homem.
..........Momentos depois, Rodrigues encontrou a mulher na cozinha.
..........- As meninas não querem ir. A Tassiane falou que está lendo um livro muito bom e a Alice quer terminar hoje a leitura de “Ponte para Terabítia”.
..........- Tudo bem, vamos só nós. É bem pertinho mesmo – disse a mulher.
..........Rodrigues e Júlia chegaram à casa de Rosa. O homem pressionou o botão do interfone.
..........- Boa-tarde.
..........- Boa-tarde – respondeu Rodrigues. - Somos vizinhos. Poderíamos entrar um momento?
..........- Vou abrir o portão.
..........- Obrigado.
..........Rodrigues e a esposa foram recebidos por um casal de idosos. O homem imaginou que devia se tratar dos avós de Rosa. Após as apresentações, foram convidados a entrar na casa. A gentil senhora serviu chá e bolinhos.
..........- Então vocês são os novos vizinhos. Estão morando aqui há quanto tempo?
..........- Compramos a casa em fevereiro, Sr. Genésio. Necessitou ser totalmente reformada, por isso demoramos quatro meses para nos mudar – respondeu Rodrigues.
..........- Entendo. E estão gostando do lugar?
..........- A região é ótima, senhora Joana. A casa está muito bem localizada, valeu a pena o investimento.
..........- Nós nascemos neste lugar – comentou o Sr. Genésio. – Acostumamos tanto que nunca pensamos em nos mudar.
..........- Eu sei como é – concordou Rodrigues. – Júlia e eu somos de Uruguaiana. Nascemos e moramos quase toda a vida lá. Mas ultimamente estava difícil conseguir trabalho e resolvemos nos aventurar por estas bandas.
..........- O senhor trabalha em quê?
..........- Sou paisagista, senhora Joana.
..........- E aqui está conseguindo serviço neste ramo?
..........- Sim, senhor. Atualmente, fechei três contratos.
..........- Que bom. Espero que as coisas sejam melhores para vocês aqui – comentou o Sr. Genésio.
..........- Obrigado.
..........- A Rosa não se encontra em casa? – perguntou Júlia, de repente.
..........Os velhinhos se entreolharam. Pareciam assustados.
..........- Desculpe, mas vocês perguntaram por quem?
..........- Pela Rosa, aquela moça da foto – falou Rodrigues, apontando para um retrato fixado na parede.
..........- Vocês estão enganados. Não podem estar falando da moça da foto – disse o Sr. Genésio.
..........- É claro que não estamos enganados. A Rosa esteve em nossa casa há cinco dias. Meu marido até emprestou a capa de chuva a ela.
..........- Mas não pode ser a moça da foto – insistiu o velhinho.
..........- É claro que estamos falando dela. A menina está grávida de seis meses. A foto da parede está bem atualizada.
..........- Chega. Se vocês vieram brincar conosco, é melhor irem embora – falou o senhor Genésio.
..........Júlia e seu marido se entreolharam, confusos.
..........- Brincar? Mas do que o senhor está falando? Rosa não mora aqui? – perguntou Júlia.
..........- Rosa está morta. Morreu há doze anos – respondeu o homem.         
..........Joana começou a chorar e o marido abraçou-a, tentando consolá-la.
..........- Por favor, vão embora agora. Minha esposa ficou nervosa.
..........- Lamentamos o engano. Desculpem-nos o incômodo – falou Rodrigues, sentindo-se mal com a situação.
..........- Por favor, saiam – repetiu o velhinho, deixando claro que o horário de visita terminara.
..........Rodrigues e Júlia saíram atordoados da casa. Ao retornarem para sua residência, foram direto para a cozinha. Júlia tomou dois copos d'água gelada e sentou-se.
..........- Mas o que foi aquilo? – perguntou o homem à esposa, tentando entender o que aconteceu.
..........- Querido, será que agora acredita que tem alguma coisa errada nesta casa?
..........- Ah, nem vem. Historinhas de fantasmas de novo não, Júlia, por favor.
..........- Mas e se você estiver errado?
..........- Quer saber? Essa história já me encheu. Venha.
..........- Aonde vamos?
..........- Iremos de carro. Será bem rápido – respondeu o homem.
..........- Mas e as meninas?
..........- Tassiane tem uma cópia da chave da casa. Além disso, não vamos demorar.
..........Júlia insistiu mais um pouco. Queria saber aonde o marido a estava levando. Mas o homem se recusou a responder. Minutos depois, encostava o carro em frente ao cemitério municipal.
..........- Venha – chamou Rodrigues.
..........O casal começou a caminhar entre as sepulturas. De repente, algo chamou a atenção de Júlia. Cutucou o braço do marido.
..........- O que foi?
..........Júlia apenas apontou.
..........- Droga – praguejou o homem, irritado. Sobre uma das sepulturas estava a sua capa de chuva. Rodrigues retirou a capa e observaram a inscrição:

Maria Rosa da Silva
12/03/1982 – 29/04/1999

..........Júlia arrepiou-se ao ver a foto da menina. Era realmente a Rosa.
..........- Querido...
..........Rodrigues suspirou.
..........- Tudo bem, você venceu. Nossa casa é assombrada. Droga, droga e droga! Mas nenhum gasparzinho vai me correr da minha própria casa. Venha, vamos embora.
..........Rodrigues e Júlia entraram no carro. Só voltaram a conversar quando chegaram em casa.
..........- Acho que devíamos seguir o conselho de Luciana e irmos embora daqui – disse a mulher.
..........- O quê? Querida, o aniversário da Tassi é daqui a nove dias. Tudo está encomendado e pago, os colegas já estão convidados... Não podemos fazer essa desfeita a ela.
..........- Duvido que a Tassi vá se importar. O que ela mais quer é cair fora daqui.
..........- Amor, escuta. Pode até ter algo nesta casa, mas nós não corremos perigo.
..........- Até uma hora atrás você era cético. Levou-me ao cemitério para provar que Rosa não tinha morrido. Mas você mudou de opinião porque viu que estava errado. E se estiver errado também agora?
..........- Não estou.
..........- Como pode ter certeza?
..........- Querida, já estamos nesta casa há mais de dois meses. O que quer que esteja aqui, se quisesse nos ferir já teria feito. Ninguém vai se machucar. Não precisamos ir embora.
..........Júlia sabia que o marido era cabeça-dura. Quando decidia algo, nada o fazia voltar atrás. Seria inútil discutir com ele para que saíssem da casa, mesmo depois de tudo o que aconteceu. Mas precisava fazer algo. Era inaceitável deixar a situação do jeito em que se encontrava.

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