domingo, 12 de fevereiro de 2017

Capítulo 7

Júlia e sua família já haviam jantado. A mulher encontrava-se sozinha. Rodrigues e as garotas já haviam ido para seus quartos. O homem estava cansado e queria dormir cedo; Maria Alice alugara o filme “Irmão Urso” e estava doida para assistir; e Tassiane queria começar a ler o livro “Anjos e Demônios”, de Dan Brown.
..........Enquanto trabalhava na louça, Júlia pensava no que fazer a respeito das assombrações em sua casa. O marido deixara claro que não seria corrido de sua casa por nenhum gasparzinho. Mas Júlia sabia que isso não resolveria a situação. Era necessário fazer alguma coisa.
..........Desde que voltara do cemitério, tentara imaginar de que maneira poderia proteger sua família. A primeira ideia que lhe veio à mente foi entrar em contato com Luciana. Sua amiga havia sentido que alguma coisa estava errada naquela casa. Porém, demonstrou muito medo. Apenas alguns minutos após sentir aquilo que definiu como “uma presença maligna”, saiu correndo da casa, como se sua vida estivesse seriamente ameaçada. Sim, Luciana era uma possível ajuda que Júlia teria que descartar.
..........Mas havia alternativas: Tassiane começara a usar, nas últimas semanas, um colar, uma pulseira e um anel. Disse que os encontrara nos móveis do porão, em companhia de Maria Alice. Rodrigues, ao saber da história, afirmara que as meninas estavam mentindo. Antes de colocar todos os móveis no porão, verificara gaveta por gaveta e porta por porta, para ver se não encontraria nenhum objeto de valor. O fato é que não havia objeto nenhum, dissera o homem. Os móveis estavam completamente vazios.
..........A ideia de Júlia era dar uma olhada nos móveis do porão. Talvez encontrasse algo que lhe fornecesse informações úteis. Toda a tentativa é válida, pensou a mulher, saindo da cozinha.
..........Chegando ao porão, Júlia acendeu a luz. Admirou-se com a quantidade de móveis que se encontravam ali. Rodrigues os guardara naquele local porque queria consertá-los, com o objetivo de vendê-los a uma loja de móveis usados. O homem sabia que não iria ganhar muito por todos aqueles móveis, mas todo e qualquer dinheiro era sempre bem-vindo.
..........Depois de revistar alguns móveis, Júlia encontrou, em uma gaveta da escrivaninha, um caderno pequeno. Abriu-o na primeira página e leu com atenção o enunciado.
               
..........Diário da minha vida:
..........Relato completo!

..........Na segunda página, havia um pequeno texto explicativo:

..........Esta é a história da minha vida. Aqui vou contar as coisas terríveis que aconteceram comigo, com o objetivo de alertá-lo para que não cometa os mesmos erros que cometi.
..........Ao terminar este relatório, mandarei cópias para algumas editoras. Não estou pensando no aspecto comercial, apenas quero alertar o mundo para os perigos que a grande maioria das pessoas desconhece, por viver na mais completa ignorância.
                Maria Rosa da Silva.

..........Júlia ficou pensativa. Rosa escrevera a sua história. Talvez quisesse que o diário fosse encontrado, pois que outro motivo explicaria o fato de o caderno estar ali, justo no momento em que visitava o porão?
..........Sem perder mais tempo, Júlia saiu do porão e foi para seu quarto. Agora tinha uma biografia para ler.
..........Seu marido estava em sono profundo. Devia estar exausto. Sentou-se na cama o mais suavemente que pôde e começou a leitura da biografia de Rosa.

..........“Estamos em 25 de abril de 1999. Meu nome é Rosa. O que vou relatar aqui é muito pesado. Mas me vejo na obrigação de passar adiante minhas experiências, pois acredito que, por meio desta mensagem, muitas vidas poderão ser salvas. Estou em meus dias finais. Não pude salvar-me. É tarde demais para mim. Mas não é tarde para você, se ainda não chegou ao mesmo ponto que eu. Se não cometeu os absurdos que eu cometi. Por favor, é com preocupação extrema que lhe peço para ler este texto com o máximo de atenção. A partir daqui você conhecerá os horrores que vivenciei e que me levaram a cometer as maiores besteiras que um ser humano iria querer para si.
..........Meus pais eram satanistas. Praticavam aquilo que é conhecido como doutrina Luciferiana. Quando nasci, fui entregue a Lúcifer, em um ritual que consistia em me banhar com sangue de galinha. Nos meus primeiros anos de vida, eu já sabia que tinha um pai terrestre e um pai espiritual.
..........Lúcifer visitava a nossa casa. Era nosso amigo. Pegava-me no colo, quando eu tinha cinco anos, tratando-me como se realmente fosse meu pai. Muitas vezes saí com ele sozinha. Andávamos em shoppings, cinemas, circos, etc. Ele sempre pegava na minha mão, mesmo quando eu já era adolescente. Nessa época, parecíamos até um casal de namorados.
..........O primeiro presente que ganhei do meu pai espiritual foi uma pulseira. Na ocasião, estava com oito anos. Aos dez anos, ganhei um colar e um anel. Assim como a pulseira, o colar e o anel também eram de prata.
..........Eu estava feliz. Tinha três protetores: minha mãe, meu pai terrestre e meu pai espiritual. Aos dez anos, eu achava o meu pai um homem bonito. Mas Lúcifer era lindo. Várias vezes olhei para ele de forma apaixonada e ele percebeu, mas nunca falou nada.
..........O meu presente de aniversário de doze anos, do meu guia espiritual, foi um violão. Até hoje lembro as palavras exatas dele ao me dar me dar o instrumento musical: “você é linda e tem uma voz encantadora. Cante canções para mim”. Fiquei eufórica: ele também me achava bonita!
..........Para comemorar meus quatorze anos, ganhei de Lúcifer um vestido. Até então eu andava de calça, camiseta e tênis. Ainda lembro a conversa que tivemos, ao ganhar o vestido:
..........- Um vestido lhe cairia muito bem, Rosa.
..........- Eu nunca usei vestido, mas achei este aqui muito bonito. Obrigada.
..........- Não há de quê. Por você eu faço tudo o que estiver ao meu alcance – disse, passando a mão em meu rosto.
..........- Faria qualquer coisa por mim? – perguntei a ele.
..........- Claro que sim, minha bela.
..........- Então eu quero outro presente, além deste vestido. Eu quero também um namorado, Lúcio.
..........- Tudo bem – concordou, com um sorriso. – Fale o nome do garoto que você gosta e eu darei um jeito para que ele compareça a sua festa de aniversário.
                - Você sabe de quem eu gosto – falei, olhando para ele da forma mais sedutora possível.
                Dias depois, estava comemorando meu aniversário. Havia pessoas espalhadas pela casa e pelo pátio. Uma de minhas colegas aproximou-se, entusiasmada:
                - Rosa, o garoto mais cobiçado da escola está aqui. Recém chegou.
                - O Ricardo?
                - E adivinha só: ele quer muito te conhecer.
                A partir daquele dia, iniciei um romance com o Ricardo. Poucos meses depois, já me encontrava grávida. Nossos pais exigiram que casássemos logo. Três semanas após o casamento, tive um aborto espontâneo.
                Magoava-me muito com a ideia de que Ricardo não se importava com a perda do nosso filho. Sempre que eu tentava falar sobre isso, ele mudava de assunto. Só achava consolo em Lúcifer.
                - Oh, Lúcio, por que isso tinha que acontecer comigo?
                - É doloroso, eu sei. Mas isso acontece com muitas mulheres – falava Lúcifer com voz gentil.
                - Você sempre foi bom para mim, Lúcio. Se você fosse o meu marido, não me deixaria estar sofrendo desse jeito.
                No dia em que falei isso a ele, Lúcifer se aproximou, abraçou-me e me beijou.                Momentos depois, estávamos no quarto, fazendo todo o tipo de sexo. Coisas que jamais Ricardo faria comigo, Lúcifer fez.
                Quando Ricardo chegou do trabalho, fiquei pasma de vê-lo completamente bêbado. Gritava, chamando-me de todo o tipo de coisa. Fiquei quieta. Eu merecia aquilo. Tinha traído o meu marido, antes que completássemos oito meses de matrimônio.
                Embora Ricardo não soubesse que fora traído, coincidência ou não, a partir do dia em que tive relações com o meu guia espiritual, meu marido mudou completamente comigo. Ricardo e eu nunca mais fizemos amor. Se eu insistia, ele começava a me xingar. Se eu discutia, ele me espancava.
                Mas o fato é que, alguns meses depois, a minha barriga começou a inchar. Quando Ricardo percebeu, ficou completamente louco. Queria saber quem era o pai. Como nunca mais me tocara, a única certeza que meu marido tinha era que essa segunda gravidez não era obra dele. Se eu achava que antes estava ruim, agora não conseguia encontrar palavras que descrevessem o meu estado de espírito.
                Para se vingar da minha traição, Ricardo começou a trazer prostitutas para a nossa casa. Tinha relações com elas em nosso quarto. Quando não me espancava, magoava-me dessa forma.
                Um dia, meu marido chegou em casa. Estava de porre.
                - Ô, vagabunda, onde você está?
                Hoje vai ser horrível, pensei.
                - Estou aqui, Ricardo.
                - Cadê minha janta, vadia?
                - Está na mesa. Venha, sente-se que eu o sirvo.
                Ricardo sentou-se, carrancudo. Não encontrara motivos para me bater. Ainda. Servi a janta. Ele olhou para o prato e depois para mim.
                - Que gororoba é essa?
                - Carreteiro.
                - O quê? Está louca, mulher? Eu odeio carreteiro, por que foi cozinhar esta porcaria? – falou Ricardo, levantando-se.
Em seguida, colocou as mãos sob a toalha e, num empurrão violento, virou a mesa. Afastei-me com medo. Sabia que seria a próxima.
                - Cadê o respeito, mulher? Eu lhe fiz uma pergunta!
                - Não chegue perto, não aguento mais ser espancada.
                Eu estava perto da pia. Segurava uma faca nas costas.
                - Não chegue perto, não quero apanhar – repetiu Ricardo, com voz debochada.
                - Estou avisando, Ricardo.
                - Estou avisando.
                Mostrei a ele a faca. Meu marido parou de caminhar em minha direção. Também parou de debochar. Achei que eu tinha dominado a situação, mas estava enganada. Ricardo riu com escárnio. Em seguida, acertou-me com um soco no rosto. Caí no chão. Ricardo tinha a mão pesada.
                - Vaca – disse ele, achando que eu estava desacordada.
                Vi Ricardo dirigir-se à geladeira e retirar o gelo. Ele ia beber. Pegou a garrafa de uísque do armário. Ainda estava pela metade, mas ele a esvaziou. Quando estava tomando o último copo, aproximei-me dele e tentei acertá-lo com a faca. Ele me olhou, assustado. Em seguida, empurrou-me com toda a força. Bati a cabeça no armário e desmaiei.
                Acordei sentindo um cheiro horrível. Demorei alguns segundos para entender o que acontecia: estava com a cabeça dentro do forno. Ricardo estava em pé, escorado no fogão, tentando acender o isqueiro. Mas, bêbado da maneira como se encontrava, não conseguia. Ele queria me matar assando a minha cabeça. Eu sabia que o Ricardo não iria conseguir acender o isqueiro e que, portanto, não morreria queimada, mas intoxicada. Estava sem forças para me mexer e o gás afetava-me fortemente.
                De repente, ouvi gritos. Em seguida, sons de luta. Senti alguém me puxar para trás, com cuidado. Fui levada nos braços por alguém até o meu quarto.
                - Eu já volto – disse a pessoa.
                Estava tão atordoada, que não conseguia me orientar. Quem quer que fosse aquela pessoa, havia salvado a minha vida. Momentos depois, a pessoa retornou ao meu quarto.
                - Está melhor, Rosa?
                - Quem é você?
                A lâmpada do quarto queimara e eu ainda estava atordoada para reconhecer a voz. A pessoa dirigiu-se à janela e abriu-a totalmente. A luz do dia entrou e vi o rosto do meu anjo.
                - Marcos?
                Marcos era nosso vizinho. Morava sozinho e estava sempre nos visitando. Fizemos uma bonita amizade com ele.
                - Não se preocupe. Você agora está a salvo. Está na minha casa.
                - O quê? Mas, mas...
                - Calma, está tudo bem. Você precisa descansar. Durma um pouco, depois conversaremos, está bem?
                Marcos saiu do quarto, deixando a porta aberta. Fiquei assustada ao perceber que Ricardo me deixara tão zonza, que eu nem havia percebido que Marcos me carregara para a casa dele. Embora um pouco melhor, ainda me sentia um pouco tonta e fraca. Marcos tinha razão, eu precisava dormir.
                Quando acordei, vi Marcos ao lado da cama, sentado na cadeira, dormindo. A luz do quarto estava ligada. Tudo fazia sentido, agora. Marcos abrira a janela para que eu pudesse respirar ar fresco. Ricardo quase me intoxicara com o gás de cozinha e Marcos ficara preocupado.
                Olhei para Marcos com carinho. Recém tinha completado dezessete anos e ele estava com trinta e nove, mas era um homem atraente. Também era um homem correto: ao me colocar na cama, a única coisa que retirara de mim foram os sapatos. O resto da minha roupa estava intocada. Após um tempo, ele acordou.
                - Oi – falei a ele.
                - Oi. Como está, Rosa?
                - Melhor, graças a você. O que aconteceu?
                Marcos suspirou.
                - Seu marido está completamente enlouquecido. Tentou cozinhar o seu cérebro.
                - Ah, sim, eu me lembro. Mas como me tirou de lá?
                - Ah! Quando vi o que estava tentando fazer com você, desci o braço nele. Deve estar até agora desmaiado. Eu... Oh, sinto muito, não quis dizer isso.
                - Está tudo bem, Marcos. Não me importo mais com aquele canalha.
                Marcos pareceu aliviado.
                - Vamos, vou te levar ao hospital.
                - O quê? Ora, Marcos, não precisa.
                - É claro que devo levá-la. Você respirou muito gás de cozinha e, além disso, está toda machucada.
                - Você olhou por baixo de minhas roupas? – perguntei, surpresa, pois jamais esperaria isso dele.
                - Quando a coloquei na cama, vi que seu vestido estava deixando à mostra sua perna esquerda. Se uma de suas pernas está assim, como estará a outra perna, as costas, o peito e a barriga?
                Fomos ao hospital. Marcos levou aquela reprimenda do médico. Fiquei com raiva. Será que o doutor não sabia que Marcos salvara a minha vida?
                - Sinto muito. O médico tinha razão. Eu devia ter levado você ao hospital na mesma hora em que a vi desmaiada.
                - Marcos, você salvou a minha vida. Por favor.
                Marcos levou-me de volta para sua casa.
                - Venha, vou preparar algo para comermos – disse, convidando-me para ir à cozinha.
                Comemos sanduíches e tomamos café.
                - Você pode ficar aqui o tempo que quiser – falou para mim.
                Agradeci e fui para o quarto. Marcos era um bom homem. Apesar da diferença de idade, seria um bom partido se eu não estivesse casada com um e grávida de outro. Mas era muita coisa para a minha cabeça. Talvez fosse bom ficar algum tempo e esquecer tudo por que passei.
                Marcos me acordou para o café da manhã.
                - Precisamos comprar algumas coisas para você – disse Marcos, à mesa.
                - Marcos, você já fez muito por mim, não quero que se incomode...
                - Por favor, não é incômodo algum. É um prazer tê-la aqui. Gostaria que passasse um tempo comigo. Pelo menos estaria segura.
                - Acho que deveria voltar para a casa de meus pais, Marcos.
                - Não é uma boa ideia. É o primeiro lugar onde Ricardo irá procurá-la.
                - Mas Ricardo virá aqui também. E se ele me encontrar na sua casa, você estará em perigo.
                - Rosa, você está com três meses de gravidez. Quero cuidar de você até que tenha o filho. Depois, se quiser ir embora, terei de aceitar. Fique comigo só esse tempo, por favor!
                - Tudo bem, Marcos, você me convenceu. Mas você sabe que estará em sérios apuros se Ricardo me encontrar.
                - Quando eu disse ficar comigo, Rosa, não quis dizer exatamente aqui. Um amigo meu e eu vamos alugar uma casa. Ele vai morar na parte de cima e eu na de baixo. Nos fundos, há uma garagem com espaço para seis carros, um ao lado do outro. Perfeito para colocarmos a nossa mecânica. Eu estou com o contrato – falou Marcos, levantando-se. Pegou uma pastinha do armário e mostrou-me o documento.
                - E onde fica essa casa?
                - Fica a uns oito quilômetros daqui. Ricardo nunca nos achará.
                - E a mudança, quando será?
                - Só preciso pegar a assinatura de Charles, meu sócio. Aí é só entregar o contrato na imobiliária e pegar a chave.
                - Quanto mais rápido, melhor.
                - Também acho, Rosa. Eu vou agora mesmo encontrar o Charles. Em seguida, irei à imobiliária e voltarei aqui. Mantenha a casa chaveada e não abra para ninguém. Tome, fique com a cópia da chave.
                Marcos saiu e em menos de uma hora estava de volta.
                - Vamos, convidou-me, colocando uma cadeira dobrável no carro.
                - E se Ricardo vir nós dois em seu carro?
                - Ele está de ressaca, Rosa. Não acho que levantará antes do meio-dia. Porém, por via das dúvidas, use isto – falou, dando-me um chapéu e alcançando-me um lenço preto para cobrir o rosto.
                - Agora não estou mais reconhecível – falei, sorrindo.
                - Hum, vejamos, ainda há uma coisa: coloque todo o cabelo para dentro do casaco.
                Fomos direto para a nova casa. Marcos colocou a cadeira que trouxera no chão da sala e me pediu para que o esperasse com a mudança. Três horas depois, o carro de Marcos e um caminhão encostavam na calçada.
                - Rosa, desculpe a demora. Você está bem?
                - Eu estou ótima, Marcos, você é um amor.
                - O homem que contratei está sem o ajudante hoje. Por esse motivo, vou ajudá-lo.
                Observei Marcos e o homem trabalhando. Os dois eram bem fortes. Em pouco mais de duas horas, os móveis estavam em seus lugares. Marcos comprou comida pronta. Fomos almoçar às 14h.
                Fiquei um mês e meio morando com Marcos. Embora me tratasse como se fosse uma rainha, nunca deu em cima de mim. Acho que esperava que eu desse o primeiro passo. Mas eu estava traumatizada com os relacionamentos anteriores. Lúcifer, depois de me engravidar, desapareceu; e Ricardo queria me matar.
                Exatamente quarenta e cinco dias após a chegada na nova casa, o telefone tocou. Atendi, e, minutos depois, fui falar com Marcos na garagem.
                - O que foi? – perguntou, observando que eu estava perturbada.
                - Temos que conversar.
                - Tudo bem.
                Marcos foi ao sanitário passar solvente para tirar a graxa das mãos. Em seguida, lavou-as com sabonete.
                - Vamos – disse, levando-me para dentro de casa.
                Eu sentei e Marcos sentou na minha frente.
                - O que está acontecendo, Rosa?
                Falei que minha mãe havia sido assaltada e espancada. Não resistiu aos ferimentos. Depois de relatar isso, desatei a chorar. Marcos ficou vários minutos abraçado em mim, tentando me consolar.
                - Meu pai precisa de mim agora, Marcos.
                Marcos concordou, balançando a cabeça. Mas seu olhar de tristeza mostrava o quanto ficou abatido.
                - Vamos, eu te levo – falou, pegando em minha mão.
                Entramos no carro e, em silêncio, chegamos mais uma vez ao centro de Canoas. Marcos entrou na rua Teófilo Gama, mas, antes que subisse a lomba, eu pedi a ele que retornasse.
                - Marcos, não é mais no n°.871 que meus pais estavam, nestes últimos dias. Mudaram-se para a casa da esquina com a Guilherme Schell. Eu esqueci de te avisar.
                - Tudo bem, não se preocupe.
                Marcos fez o retorno na primeira oportunidade e paramos em frente à nova casa.
                Meu pai logo abriu o portão e convidou-nos a entrar.
                - Senhor Genésio, lamento muito o que aconteceu. Eu sou Marcos, amigo de Rosa.
                O pai apertou a mão de Marcos.
                - Sentem-se.
                - Obrigado – falou Marcos.
                - Joana e eu estávamos felizes nesta casa. A outra casa era grande demais. Era muito trabalhoso limpá-la e ficar subindo e descendo escadas. Ultimamente contratávamos prestadores de serviço para faxina e jardinagem, mas ainda assim não nos sentíamos bem, pois a casa era grande demais só para nós dois.
                Papai fez uma pausa.
                - Decidimos nos mudar. Mas não queríamos sair desta região. Quando soubemos que esta casa estava à venda, fechamos o negócio na hora. Era bem o que queríamos: uma casa pequena, perto da nossa, sem escadarias. E vivemos felizes, até o dia da tragédia. Ontem, pela tarde, Joana me convidou para sair. Queria muito ir ao shopping. Mesmo sendo a quatrocentos metros daqui, recusei-me a acompanhá-la. Quando o telefone tocou, fui informado que Joana estava hospitalizada. Cheguei lá apenas em tempo de vê-la morrer.
                Mesmo horrorizada com a história do pai, percebi que Marcos estava pálido. Ele sabia que não teria mais a minha companhia e estava sofrendo com isso. Seu olhar vago e tristonho partiu o meu coração.”

                Júlia fechou o caderno com um marcador na página. Iniciara a leitura da biografia de Rosa às 22h. No momento, o relógio acusava meia-noite. Naquela casa, Júlia era quem menos lia. Mas envolvera-se tanto no relato de Rosa, que lera quarenta e cinco páginas em duas horas. Ainda restavam algumas páginas, mas sentia-se muito cansada. Precisava dormir.

               

                O dia havia transcorrido tranquilamente. Júlia encontrava-se mais uma vez sentada em sua cama, o marido dormindo a seu lado. O relógio acusava 22h30min. Abriu mais uma vez o relato de Rosa. Estava curiosa para ver como a história terminaria.
               
                “Nos dias que se seguiram, senti a falta de Marcos. Ele era completamente diferente de Ricardo. Atencioso e gentil, nunca me obrigava a fazer nada que eu não quisesse. Eu teria permanecido em sua casa se o meu pai não estivesse precisando de mim. Achei que as coisas estavam estabilizadas, que nada mais de ruim fosse acontecer em minha vida. Não preciso dizer que estava enganada.
                Um mês havia se passado, desde que voltara a morar com o meu pai. Todos os dias Marcos me ligava, e uma vez a cada três dias vinha me visitar. Mas naquele dia, fui eu quem ligou para o Marcos.
                - Mecânica Oliveira, boa-tarde.
                - Oi, Marcos, sou eu, a Rosa.
                - Rosa? Você está bem? – perguntou Marcos, estranhando que desta vez foi eu quem ligara.
                - Preciso conversar contigo, é urgente.
                - Tudo bem, estou indo aí.
                - Eu estou na casa do alto da lomba, a 871.
                - Certo. Chego daqui a pouco.
                Desliguei o telefone e esperei Marcos chegar. Em menos de meia hora ele estava no portão. Aproximei-me dele e o abracei. Soluçava com vontade.
                - Rosa, acalme-se, por favor. Vamos entrar.
                Sentamos no sofá e Marcos, ao meu lado, abraçou-me.
                - O que aconteceu, Rosa?
                - Foi o meu pai, Marcos. Ele morreu.
                - O quê? Mas como...
                - Infarto. Não resistiu.
                Ficamos um tempo sem trocar palavras. Marcos levantou-se e disse que iria preparar um café para mim. Permaneci sentada. Minutos depois, ele trazia duas xícaras.
                - Desculpe-me atrapalhar o seu serviço – falei a ele.
                - Rosa, você não me atrapalhou em nada. Eu estou sem serviço no momento.
                - Você está brincando comigo. Quando eu morava lá, o pátio era cheio de carros.
                Marcos suspirou.
                - Rosa, não é só com você que acontece coisas ruins. Lembra do meu sócio, o Charles? Pois é, ele e eu estávamos bem, tínhamos muitos clientes. Isso porque eu conhecia muita gente. Mas eu não sabia que o Charles estava fazendo sujeira: trocava as peças boas dos carros dos clientes por outras defeituosas; cobrava um absurdo pelos serviços que realizava, mas para mim dizia que havia cobrado outro valor. Para finalizar, sabe as peças boas que ele tirava dos carros? Ele fazia isso porque estava montando três carros. Para mim, ele dizia que comprava as peças na autorizada.
                “Duas semanas depois de você ter voltado para a casa de seus pais, eu já não tinha mais clientes. Então chegaram as cartas. A mecânica estava sendo processada por lesar vários clientes. Charles falou que aquilo era um absurdo e pediu-me para consultar um advogado. Juntei as cartas e saí. Retornei à mecânica cerca de duas horas depois. Procurei Charles, mas ele não se encontrava. Mas havia algo a mais que parecia faltar. Depois de alguns minutos me dei conta: ele levara os três carros que montara.
                “Os advogados dos clientes lesados agiram rápido. Em poucos dias, tive que responder ao juiz pelos danos que a mecânica Oliveira causara àquelas pessoas. Fui responsabilizado e obrigado a indenizar os clientes que processaram a mecânica. O dinheiro que eu tinha antes e o dinheiro que eu ganhei naqueles dois meses na mecânica transformou-se em indenização. Estou sem um trocado no bolso.”
                Foi a minha vez de sentir pena. Marcos era um homem bom, não merecia o que o sócio e aquele juiz idiota lhe fizeram.
                Aproximei-me de Marcos e o abracei. Nós nos beijamos apaixonadamente.
                - Eu queria fazer amor com você, mas não vou poder – falei a ele, alisando a minha barriga de cinco meses e meio.
                - Ter a sua companhia é mais do que o suficiente – respondeu Marcos.
                Marcos não voltou mais a casa onde tinha a mecânica. Só se preocupou em devolver a chave à imobiliária. A partir daquele dia, passou a morar comigo.
                Foi um momento feliz. Durou um mês e uma semana. A casa, que ficava na esquina com a Guilherme Schell, colocamos à venda. Eu preferia a n° 871, pois gostava de espaço. Mas se eu soubesse no que resultaria a minha escolha, não teria ido para a casa do alto da lomba.
                Cerca de quarenta dias havia se passado. Estávamos descansados em relação à Ricardo, pois de acordo com o jornal Diário de Canoas, ele havia sido preso por causa de uma briga de bar. Estaria fora de circulação por anos, considerando que deixara quatro pessoas seriamente feridas.
                Marcos continuava desempregado. Saía todos os dias para procurar serviço. A situação estava difícil, pois embora tivéssemos uma casa à venda, ninguém ainda havia se interessado por ela.
                Em uma tarde de sexta-feira, aconteceu um temporal terrível. Boa parte da casa ficou destelhada. A sorte foi que, fora os trilhos por onde caminhávamos, o restante do pátio era gramado. Pouquíssimas telhas quebraram. Marcos comprou apenas uma dúzia de telhas na madeireira e voltou para casa.
                - Querida, não podemos pagar um pedreiro.
                Eu sabia que ele tinha razão, mas estava com muito medo.
                - Amor, deixe essas telhas de lado. Quando vendermos a casa da esquina, pagaremos alguém para o conserto.
                - Rosa, não precisa se preocupar. Eu sempre tomo cuidado.  
                Implorei para que Marcos não subisse no telhado, mas não adiantou. Imagino que quisesse se mostrar útil, pois estava há mais de um mês sem trabalho.
                Fiquei na sala, esperando que tudo corresse bem. Quando ouvi um barulho estranho, saí de casa o mais rápido que pude. Entrei em desespero ao ver Marcos caído no chão. Ele tinha se desequilibrado no telhado e caíra lá de cima, estourando o crânio em um canteiro. Minha felicidade havia terminado.
                Mas isso não era tudo: meus pais, Ricardo e Marcos jamais souberam o que eu sofria com a minha gravidez. O que havia em minha barriga não era exatamente uma criança. Eu a sentia morder a parede do útero duas vezes ao dia, para sugar o meu sangue. Era assim que aquela coisa se alimentava. Além disso, gemia de dor quando me arranhava ou me furava. O que quer que habitasse a minha barriga tinha garras.
                Eu não sabia de ninguém que pudesse me indicar um médico para fazer aborto. Mas estava claro, em minha mente, que aquele ser não poderia vir ao mundo. Enganava os médicos, mas não a mim. Eu sabia que não seria a um ser humano, mas a um monstro que eu daria à luz. E isso era inaceitável.
                Uma vez que não consegui ninguém que fizesse o aborto, decidi que eu mesma mataria o ser que ainda não havia nascido. Não permitiria que Lúcifer deixasse seu legado ao mundo. Lúcifer era um monstro. Apenas me usara para depois me descartar, como se eu não tivesse valor.
                Comecei então este relatório, com o objetivo de alertar o mundo para que fique longe desse ser maldito. Ele se faz de bonzinho, parecendo até um anjo. Porém, é só fingimento. Na verdade, ele é perverso o bastante para terminar com a vida de qualquer um. Mesmo que seja uma menina inocente, que nunca pôde ser feliz e ainda nem atingiu a maioridade.”

                Júlia terminou a leitura do relato de Rosa, arrepiada. A história era simplesmente inacreditável. Porém, havia algumas provas ou pelo menos fortes indicações de que algo sobrenatural acontecia naquela casa.

                O dia seguinte seria sexta-feira, aniversário da Tassiane. No sábado, visitaria os pais de Rosa e mostraria o diário. Talvez eles ajudassem a resolver o enigma. Estava claro que Rosa mentira, quando narrara a morte dos pais. Mas nem tudo devia ser mentira, e o Sr. Genésio e sua esposa poderiam ajudar a compreender melhor a história de Rosa.

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