Júlia e sua família já haviam jantado. A mulher encontrava-se
sozinha. Rodrigues e as garotas já haviam ido para seus quartos. O homem estava
cansado e queria dormir cedo; Maria Alice alugara o filme “Irmão Urso” e estava
doida para assistir; e Tassiane queria começar a ler o livro “Anjos e
Demônios”, de Dan Brown.
..........Enquanto trabalhava na louça, Júlia pensava no que fazer a respeito das assombrações em sua casa. O marido deixara claro que não seria corrido de sua casa por nenhum gasparzinho. Mas Júlia sabia que isso não resolveria a situação. Era necessário fazer alguma coisa.
..........Enquanto trabalhava na louça, Júlia pensava no que fazer a respeito das assombrações em sua casa. O marido deixara claro que não seria corrido de sua casa por nenhum gasparzinho. Mas Júlia sabia que isso não resolveria a situação. Era necessário fazer alguma coisa.
..........Desde que
voltara do cemitério, tentara imaginar de que maneira poderia proteger sua
família. A primeira ideia que lhe veio à mente foi entrar em contato com
Luciana. Sua amiga havia sentido que alguma coisa estava errada naquela casa.
Porém, demonstrou muito medo. Apenas alguns minutos após sentir aquilo que
definiu como “uma presença maligna”, saiu correndo da casa, como se sua vida
estivesse seriamente ameaçada. Sim, Luciana era uma possível ajuda que Júlia
teria que descartar.
..........Mas havia
alternativas: Tassiane começara a usar, nas últimas semanas, um colar, uma
pulseira e um anel. Disse que os encontrara nos móveis do porão, em companhia
de Maria Alice. Rodrigues, ao saber da história, afirmara que as meninas
estavam mentindo. Antes de colocar todos os móveis no porão, verificara gaveta
por gaveta e porta por porta, para ver se não encontraria nenhum objeto de
valor. O fato é que não havia objeto nenhum, dissera o homem. Os móveis estavam
completamente vazios.
..........A ideia de
Júlia era dar uma olhada nos móveis do porão. Talvez encontrasse algo que lhe
fornecesse informações úteis. Toda a tentativa é válida, pensou a mulher,
saindo da cozinha.
..........Chegando ao porão,
Júlia acendeu a luz. Admirou-se com a quantidade de móveis que se encontravam
ali. Rodrigues os guardara naquele local porque queria consertá-los, com o
objetivo de vendê-los a uma loja de móveis usados. O homem sabia que não iria
ganhar muito por todos aqueles móveis, mas todo e qualquer dinheiro era sempre
bem-vindo.
..........Depois de
revistar alguns móveis, Júlia encontrou, em uma gaveta da escrivaninha, um
caderno pequeno. Abriu-o na primeira página e leu com atenção o enunciado.
..........Diário da minha vida:
..........Relato completo!
..........Na segunda
página, havia um pequeno texto explicativo:
..........Esta é a história da minha vida. Aqui vou contar as coisas terríveis que aconteceram comigo, com o objetivo de alertá-lo para que não cometa os mesmos erros que cometi.
..........Ao
terminar este relatório, mandarei cópias para algumas editoras. Não estou
pensando no aspecto comercial, apenas quero alertar o mundo para os perigos que
a grande maioria das pessoas desconhece, por viver na mais completa ignorância.
Maria Rosa da Silva.
..........Júlia ficou
pensativa. Rosa escrevera a sua história. Talvez quisesse que o diário fosse
encontrado, pois que outro motivo explicaria o fato de o caderno estar ali,
justo no momento em que visitava o porão?
..........Sem perder
mais tempo, Júlia saiu do porão e foi para seu quarto. Agora tinha uma
biografia para ler.
..........Seu marido
estava em sono profundo. Devia estar exausto. Sentou-se na cama o mais
suavemente que pôde e começou a leitura da biografia de Rosa.
..........“Estamos em 25 de abril de 1999. Meu nome é Rosa. O que vou relatar aqui é muito pesado. Mas me vejo na obrigação de passar adiante minhas experiências, pois acredito que, por meio desta mensagem, muitas vidas poderão ser salvas. Estou em meus dias finais. Não pude salvar-me. É tarde demais para mim. Mas não é tarde para você, se ainda não chegou ao mesmo ponto que eu. Se não cometeu os absurdos que eu cometi. Por favor, é com preocupação extrema que lhe peço para ler este texto com o máximo de atenção. A partir daqui você conhecerá os horrores que vivenciei e que me levaram a cometer as maiores besteiras que um ser humano iria querer para si.
..........Meus pais eram
satanistas. Praticavam aquilo que é conhecido como doutrina Luciferiana. Quando
nasci, fui entregue a Lúcifer, em um ritual que consistia em me banhar com
sangue de galinha. Nos meus primeiros anos de vida, eu já sabia que tinha um
pai terrestre e um pai espiritual.
..........Lúcifer
visitava a nossa casa. Era nosso amigo. Pegava-me no colo, quando eu tinha
cinco anos, tratando-me como se realmente fosse meu pai. Muitas vezes saí com
ele sozinha. Andávamos em shoppings, cinemas, circos, etc. Ele sempre pegava na
minha mão, mesmo quando eu já era adolescente. Nessa época, parecíamos até um
casal de namorados.
..........O
primeiro presente que ganhei do meu pai espiritual foi uma pulseira. Na
ocasião, estava com oito anos. Aos dez anos, ganhei um colar e um anel. Assim
como a pulseira, o colar e o anel também eram de prata.
..........Eu
estava feliz. Tinha três protetores: minha mãe, meu pai terrestre e meu pai
espiritual. Aos dez anos, eu achava o meu pai um homem bonito. Mas Lúcifer era
lindo. Várias vezes olhei para ele de forma apaixonada e ele percebeu, mas
nunca falou nada.
..........O
meu presente de aniversário de doze anos, do meu guia espiritual, foi um
violão. Até hoje lembro as palavras exatas dele ao me dar me dar o instrumento
musical: “você é linda e tem uma voz encantadora. Cante canções para mim”.
Fiquei eufórica: ele também me achava bonita!
..........Para
comemorar meus quatorze anos, ganhei de Lúcifer um vestido. Até então eu andava
de calça, camiseta e tênis. Ainda lembro a conversa que tivemos, ao ganhar o
vestido:
..........-
Um vestido lhe cairia muito bem, Rosa.
..........-
Eu nunca usei vestido, mas achei este aqui muito bonito. Obrigada.
..........-
Não há de quê. Por você eu faço tudo o que estiver ao meu alcance – disse,
passando a mão em meu rosto.
..........-
Faria qualquer coisa por mim? – perguntei a ele.
..........- Claro que sim, minha bela.
..........- Claro que sim, minha bela.
..........-
Então eu quero outro presente, além deste vestido. Eu quero também um namorado,
Lúcio.
..........-
Tudo bem – concordou, com um sorriso. – Fale o nome do garoto que você gosta e
eu darei um jeito para que ele compareça a sua festa de aniversário.
-
Você sabe de quem eu gosto – falei, olhando para ele da forma mais sedutora
possível.
Dias
depois, estava comemorando meu aniversário. Havia pessoas espalhadas pela casa
e pelo pátio. Uma de minhas colegas aproximou-se, entusiasmada:
-
Rosa, o garoto mais cobiçado da escola está aqui. Recém chegou.
-
O Ricardo?
-
E adivinha só: ele quer muito te conhecer.
A
partir daquele dia, iniciei um romance com o Ricardo. Poucos meses depois, já
me encontrava grávida. Nossos pais exigiram que casássemos logo. Três semanas
após o casamento, tive um aborto espontâneo.
Magoava-me
muito com a ideia de que Ricardo não se importava com a perda do nosso filho.
Sempre que eu tentava falar sobre isso, ele mudava de assunto. Só achava
consolo em Lúcifer.
-
Oh, Lúcio, por que isso tinha que acontecer comigo?
-
É doloroso, eu sei. Mas isso acontece com muitas mulheres – falava Lúcifer com
voz gentil.
-
Você sempre foi bom para mim, Lúcio. Se você fosse o meu marido, não me
deixaria estar sofrendo desse jeito.
No
dia em que falei isso a ele, Lúcifer se aproximou, abraçou-me e me beijou. Momentos depois, estávamos no
quarto, fazendo todo o tipo de sexo. Coisas que jamais Ricardo faria comigo,
Lúcifer fez.
Quando
Ricardo chegou do trabalho, fiquei pasma de vê-lo completamente bêbado.
Gritava, chamando-me de todo o tipo de coisa. Fiquei quieta. Eu merecia aquilo.
Tinha traído o meu marido, antes que completássemos oito meses de matrimônio.
Embora
Ricardo não soubesse que fora traído, coincidência ou não, a partir do dia em
que tive relações com o meu guia espiritual, meu marido mudou completamente
comigo. Ricardo e eu nunca mais fizemos amor. Se eu insistia, ele começava a me
xingar. Se eu discutia, ele me espancava.
Mas
o fato é que, alguns meses depois, a minha barriga começou a inchar. Quando
Ricardo percebeu, ficou completamente louco. Queria saber quem era o pai. Como
nunca mais me tocara, a única certeza que meu marido tinha era que essa segunda
gravidez não era obra dele. Se eu achava que antes estava ruim, agora não
conseguia encontrar palavras que descrevessem o meu estado de espírito.
Para
se vingar da minha traição, Ricardo começou a trazer prostitutas para a nossa
casa. Tinha relações com elas em nosso quarto. Quando não me espancava,
magoava-me dessa forma.
Um
dia, meu marido chegou em casa. Estava de porre.
-
Ô, vagabunda, onde você está?
Hoje
vai ser horrível, pensei.
-
Estou aqui, Ricardo.
-
Cadê minha janta, vadia?
-
Está na mesa. Venha, sente-se que eu o sirvo.
Ricardo
sentou-se, carrancudo. Não encontrara motivos para me bater. Ainda. Servi a
janta. Ele olhou para o prato e depois para mim.
-
Que gororoba é essa?
-
Carreteiro.
-
O quê? Está louca, mulher? Eu odeio carreteiro, por que foi cozinhar esta
porcaria? – falou Ricardo, levantando-se.
Em seguida,
colocou as mãos sob a toalha e, num empurrão violento, virou a mesa. Afastei-me
com medo. Sabia que seria a próxima.
-
Cadê o respeito, mulher? Eu lhe fiz uma pergunta!
-
Não chegue perto, não aguento mais ser espancada.
Eu
estava perto da pia. Segurava uma faca nas costas.
-
Não chegue perto, não quero apanhar – repetiu Ricardo, com voz debochada.
-
Estou avisando, Ricardo.
-
Estou avisando.
Mostrei
a ele a faca. Meu marido parou de caminhar em minha direção. Também parou de
debochar. Achei que eu tinha dominado a situação, mas estava enganada. Ricardo
riu com escárnio. Em seguida, acertou-me com um soco no rosto. Caí no chão. Ricardo
tinha a mão pesada.
-
Vaca – disse ele, achando que eu estava desacordada.
Vi
Ricardo dirigir-se à geladeira e retirar o gelo. Ele ia beber. Pegou a garrafa
de uísque do armário. Ainda estava pela metade, mas ele a esvaziou. Quando
estava tomando o último copo, aproximei-me dele e tentei acertá-lo com a faca.
Ele me olhou, assustado. Em seguida, empurrou-me com toda a força. Bati a
cabeça no armário e desmaiei.
Acordei
sentindo um cheiro horrível. Demorei alguns segundos para entender o que acontecia:
estava com a cabeça dentro do forno. Ricardo estava em pé, escorado no fogão,
tentando acender o isqueiro. Mas, bêbado da maneira como se encontrava, não
conseguia. Ele queria me matar assando a minha cabeça. Eu sabia que o Ricardo
não iria conseguir acender o isqueiro e que, portanto, não morreria queimada,
mas intoxicada. Estava sem forças para me mexer e o gás afetava-me fortemente.
De
repente, ouvi gritos. Em seguida, sons de luta. Senti alguém me puxar para
trás, com cuidado. Fui levada nos braços por alguém até o meu quarto.
-
Eu já volto – disse a pessoa.
Estava
tão atordoada, que não conseguia me orientar. Quem quer que fosse aquela
pessoa, havia salvado a minha vida. Momentos depois, a pessoa retornou ao meu
quarto.
-
Está melhor, Rosa?
-
Quem é você?
A
lâmpada do quarto queimara e eu ainda estava atordoada para reconhecer a voz. A
pessoa dirigiu-se à janela e abriu-a totalmente. A luz do dia entrou e vi o
rosto do meu anjo.
-
Marcos?
Marcos
era nosso vizinho. Morava sozinho e estava sempre nos visitando. Fizemos uma
bonita amizade com ele.
-
Não se preocupe. Você agora está a salvo. Está na minha casa.
-
O quê? Mas, mas...
-
Calma, está tudo bem. Você precisa descansar. Durma um pouco, depois
conversaremos, está bem?
Marcos
saiu do quarto, deixando a porta aberta. Fiquei assustada ao perceber que
Ricardo me deixara tão zonza, que eu nem havia percebido que Marcos me
carregara para a casa dele. Embora um pouco melhor, ainda me sentia um pouco
tonta e fraca. Marcos tinha razão, eu precisava dormir.
Quando
acordei, vi Marcos ao lado da cama, sentado na cadeira, dormindo. A luz do
quarto estava ligada. Tudo fazia sentido, agora. Marcos abrira a janela para
que eu pudesse respirar ar fresco. Ricardo quase me intoxicara com o gás de
cozinha e Marcos ficara preocupado.
Olhei
para Marcos com carinho. Recém tinha completado dezessete anos e ele estava com
trinta e nove, mas era um homem atraente. Também era um homem correto: ao me
colocar na cama, a única coisa que retirara de mim foram os sapatos. O resto da
minha roupa estava intocada. Após um tempo, ele acordou.
-
Oi – falei a ele.
-
Oi. Como está, Rosa?
-
Melhor, graças a você. O que aconteceu?
Marcos
suspirou.
-
Seu marido está completamente enlouquecido. Tentou cozinhar o seu cérebro.
-
Ah, sim, eu me lembro. Mas como me tirou de lá?
-
Ah! Quando vi o que estava tentando fazer com você, desci o braço nele. Deve
estar até agora desmaiado. Eu... Oh, sinto muito, não quis dizer isso.
-
Está tudo bem, Marcos. Não me importo mais com aquele canalha.
Marcos
pareceu aliviado.
-
Vamos, vou te levar ao hospital.
-
O quê? Ora, Marcos, não precisa.
-
É claro que devo levá-la. Você respirou muito gás de cozinha e, além disso,
está toda machucada.
-
Você olhou por baixo de minhas roupas? – perguntei, surpresa, pois jamais
esperaria isso dele.
-
Quando a coloquei na cama, vi que seu vestido estava deixando à mostra sua
perna esquerda. Se uma de suas pernas está assim, como estará a outra perna, as
costas, o peito e a barriga?
Fomos
ao hospital. Marcos levou aquela reprimenda do médico. Fiquei com raiva. Será
que o doutor não sabia que Marcos salvara a minha vida?
-
Sinto muito. O médico tinha razão. Eu devia ter levado você ao hospital na
mesma hora em que a vi desmaiada.
-
Marcos, você salvou a minha vida. Por favor.
Marcos
levou-me de volta para sua casa.
-
Venha, vou preparar algo para comermos – disse, convidando-me para ir à
cozinha.
Comemos
sanduíches e tomamos café.
-
Você pode ficar aqui o tempo que quiser – falou para mim.
Agradeci
e fui para o quarto. Marcos era um bom homem. Apesar da diferença de idade,
seria um bom partido se eu não estivesse casada com um e grávida de outro. Mas
era muita coisa para a minha cabeça. Talvez fosse bom ficar algum tempo e
esquecer tudo por que passei.
Marcos
me acordou para o café da manhã.
-
Precisamos comprar algumas coisas para você – disse Marcos, à mesa.
-
Marcos, você já fez muito por mim, não quero que se incomode...
-
Por favor, não é incômodo algum. É um prazer tê-la aqui. Gostaria que passasse
um tempo comigo. Pelo menos estaria segura.
-
Acho que deveria voltar para a casa de meus pais, Marcos.
-
Não é uma boa ideia. É o primeiro lugar onde Ricardo irá procurá-la.
-
Mas Ricardo virá aqui também. E se ele me encontrar na sua casa, você estará em
perigo.
-
Rosa, você está com três meses de gravidez. Quero cuidar de você até que tenha
o filho. Depois, se quiser ir embora, terei de aceitar. Fique comigo só esse
tempo, por favor!
-
Tudo bem, Marcos, você me convenceu. Mas você sabe que estará em sérios apuros
se Ricardo me encontrar.
-
Quando eu disse ficar comigo, Rosa, não quis dizer exatamente aqui. Um amigo
meu e eu vamos alugar uma casa. Ele vai morar na parte de cima e eu na de
baixo. Nos fundos, há uma garagem com espaço para seis carros, um ao lado do
outro. Perfeito para colocarmos a nossa mecânica. Eu estou com o contrato –
falou Marcos, levantando-se. Pegou uma pastinha do armário e mostrou-me o
documento.
-
E onde fica essa casa?
-
Fica a uns oito quilômetros daqui. Ricardo nunca nos achará.
-
E a mudança, quando será?
-
Só preciso pegar a assinatura de Charles, meu sócio. Aí é só entregar o
contrato na imobiliária e pegar a chave.
-
Quanto mais rápido, melhor.
-
Também acho, Rosa. Eu vou agora mesmo encontrar o Charles. Em seguida, irei à
imobiliária e voltarei aqui. Mantenha a casa chaveada e não abra para ninguém.
Tome, fique com a cópia da chave.
Marcos
saiu e em menos de uma hora estava de volta.
-
Vamos, convidou-me, colocando uma cadeira dobrável no carro.
-
E se Ricardo vir nós dois em seu carro?
-
Ele está de ressaca, Rosa. Não acho que levantará antes do meio-dia. Porém, por
via das dúvidas, use isto – falou, dando-me um chapéu e alcançando-me um lenço
preto para cobrir o rosto.
-
Agora não estou mais reconhecível – falei, sorrindo.
-
Hum, vejamos, ainda há uma coisa: coloque todo o cabelo para dentro do casaco.
Fomos
direto para a nova casa. Marcos colocou a cadeira que trouxera no chão da sala
e me pediu para que o esperasse com a mudança. Três horas depois, o carro de
Marcos e um caminhão encostavam na calçada.
-
Rosa, desculpe a demora. Você está bem?
-
Eu estou ótima, Marcos, você é um amor.
-
O homem que contratei está sem o ajudante hoje. Por esse motivo, vou ajudá-lo.
Observei
Marcos e o homem trabalhando. Os dois eram bem fortes. Em pouco mais de duas
horas, os móveis estavam em seus lugares. Marcos comprou comida pronta. Fomos
almoçar às 14h.
Fiquei
um mês e meio morando com Marcos. Embora me tratasse como se fosse uma rainha,
nunca deu em cima de mim. Acho que esperava que eu desse o primeiro passo. Mas
eu estava traumatizada com os relacionamentos anteriores. Lúcifer, depois de me
engravidar, desapareceu; e Ricardo queria me matar.
Exatamente
quarenta e cinco dias após a chegada na nova casa, o telefone tocou. Atendi, e,
minutos depois, fui falar com Marcos na garagem.
-
O que foi? – perguntou, observando que eu estava perturbada.
-
Temos que conversar.
-
Tudo bem.
Marcos
foi ao sanitário passar solvente para tirar a graxa das mãos. Em seguida,
lavou-as com sabonete.
-
Vamos – disse, levando-me para dentro de casa.
Eu
sentei e Marcos sentou na minha frente.
-
O que está acontecendo, Rosa?
Falei
que minha mãe havia sido assaltada e espancada. Não resistiu aos ferimentos.
Depois de relatar isso, desatei a chorar. Marcos ficou vários minutos abraçado
em mim, tentando me consolar.
-
Meu pai precisa de mim agora, Marcos.
Marcos
concordou, balançando a cabeça. Mas seu olhar de tristeza mostrava o quanto
ficou abatido.
-
Vamos, eu te levo – falou, pegando em minha mão.
Entramos
no carro e, em silêncio, chegamos mais uma vez ao centro de Canoas. Marcos
entrou na rua Teófilo Gama, mas, antes que subisse a lomba, eu pedi a ele que
retornasse.
-
Marcos, não é mais no n°.871 que meus pais estavam, nestes últimos dias.
Mudaram-se para a casa da esquina com a Guilherme Schell. Eu esqueci de te
avisar.
-
Tudo bem, não se preocupe.
Marcos
fez o retorno na primeira oportunidade e paramos em frente à nova casa.
Meu
pai logo abriu o portão e convidou-nos a entrar.
-
Senhor Genésio, lamento muito o que aconteceu. Eu sou Marcos, amigo de Rosa.
O
pai apertou a mão de Marcos.
-
Sentem-se.
-
Obrigado – falou Marcos.
-
Joana e eu estávamos felizes nesta casa. A outra casa era grande demais. Era
muito trabalhoso limpá-la e ficar subindo e descendo escadas. Ultimamente
contratávamos prestadores de serviço para faxina e jardinagem, mas ainda assim
não nos sentíamos bem, pois a casa era grande demais só para nós dois.
Papai
fez uma pausa.
-
Decidimos nos mudar. Mas não queríamos sair desta região. Quando soubemos que
esta casa estava à venda, fechamos o negócio na hora. Era bem o que queríamos:
uma casa pequena, perto da nossa, sem escadarias. E vivemos felizes, até o dia
da tragédia. Ontem, pela tarde, Joana me convidou para sair. Queria muito ir ao
shopping. Mesmo sendo a quatrocentos metros daqui, recusei-me a acompanhá-la.
Quando o telefone tocou, fui informado que Joana estava hospitalizada. Cheguei
lá apenas em tempo de vê-la morrer.
Mesmo
horrorizada com a história do pai, percebi que Marcos estava pálido. Ele sabia
que não teria mais a minha companhia e estava sofrendo com isso. Seu olhar vago
e tristonho partiu o meu coração.”
Júlia fechou
o caderno com um marcador na página. Iniciara a leitura da biografia de Rosa às
22h. No momento, o relógio acusava meia-noite. Naquela casa, Júlia era quem
menos lia. Mas envolvera-se tanto no relato de Rosa, que lera quarenta e cinco
páginas em duas horas. Ainda restavam algumas páginas, mas sentia-se muito
cansada. Precisava dormir.
O dia havia
transcorrido tranquilamente. Júlia encontrava-se mais uma vez sentada em sua
cama, o marido dormindo a seu lado. O relógio acusava 22h30min. Abriu mais uma
vez o relato de Rosa. Estava curiosa para ver como a história terminaria.
“Nos dias
que se seguiram, senti a falta de Marcos. Ele era completamente diferente de
Ricardo. Atencioso e gentil, nunca me obrigava a fazer nada que eu não
quisesse. Eu teria permanecido em sua casa se o meu pai não estivesse
precisando de mim. Achei que as coisas estavam estabilizadas, que nada mais de
ruim fosse acontecer em minha vida. Não preciso dizer que estava enganada.
Um
mês havia se passado, desde que voltara a morar com o meu pai. Todos os dias
Marcos me ligava, e uma vez a cada três dias vinha me visitar. Mas naquele dia,
fui eu quem ligou para o Marcos.
-
Mecânica Oliveira, boa-tarde.
-
Oi, Marcos, sou eu, a Rosa.
-
Rosa? Você está bem? – perguntou Marcos, estranhando que desta vez foi eu quem
ligara.
-
Preciso conversar contigo, é urgente.
-
Tudo bem, estou indo aí.
-
Eu estou na casa do alto da lomba, a 871.
-
Certo. Chego daqui a pouco.
Desliguei
o telefone e esperei Marcos chegar. Em menos de meia hora ele estava no portão.
Aproximei-me dele e o abracei. Soluçava com vontade.
-
Rosa, acalme-se, por favor. Vamos entrar.
Sentamos
no sofá e Marcos, ao meu lado, abraçou-me.
-
O que aconteceu, Rosa?
-
Foi o meu pai, Marcos. Ele morreu.
-
O quê? Mas como...
-
Infarto. Não resistiu.
Ficamos
um tempo sem trocar palavras. Marcos levantou-se e disse que iria preparar um
café para mim. Permaneci sentada. Minutos depois, ele trazia duas xícaras.
-
Desculpe-me atrapalhar o seu serviço – falei a ele.
-
Rosa, você não me atrapalhou em nada. Eu estou sem serviço no momento.
-
Você está brincando comigo. Quando eu morava lá, o pátio era cheio de carros.
Marcos
suspirou.
-
Rosa, não é só com você que acontece coisas ruins. Lembra do meu sócio, o
Charles? Pois é, ele e eu estávamos bem, tínhamos muitos clientes. Isso porque
eu conhecia muita gente. Mas eu não sabia que o Charles estava fazendo sujeira:
trocava as peças boas dos carros dos clientes por outras defeituosas; cobrava
um absurdo pelos serviços que realizava, mas para mim dizia que havia cobrado
outro valor. Para finalizar, sabe as peças boas que ele tirava dos carros? Ele
fazia isso porque estava montando três carros. Para mim, ele dizia que comprava
as peças na autorizada.
“Duas
semanas depois de você ter voltado para a casa de seus pais, eu já não tinha
mais clientes. Então chegaram as cartas. A mecânica estava sendo processada por
lesar vários clientes. Charles falou que aquilo era um absurdo e pediu-me para
consultar um advogado. Juntei as cartas e saí. Retornei à mecânica cerca de
duas horas depois. Procurei Charles, mas ele não se encontrava. Mas havia algo
a mais que parecia faltar. Depois de alguns minutos me dei conta: ele levara os
três carros que montara.
“Os
advogados dos clientes lesados agiram rápido. Em poucos dias, tive que
responder ao juiz pelos danos que a mecânica Oliveira causara àquelas pessoas.
Fui responsabilizado e obrigado a indenizar os clientes que processaram a
mecânica. O dinheiro que eu tinha antes e o dinheiro que eu ganhei naqueles
dois meses na mecânica transformou-se em indenização. Estou sem um trocado no
bolso.”
Foi
a minha vez de sentir pena. Marcos era um homem bom, não merecia o que o sócio
e aquele juiz idiota lhe fizeram.
Aproximei-me
de Marcos e o abracei. Nós nos beijamos apaixonadamente.
-
Eu queria fazer amor com você, mas não vou poder – falei a ele, alisando a
minha barriga de cinco meses e meio.
-
Ter a sua companhia é mais do que o suficiente – respondeu Marcos.
Marcos
não voltou mais a casa onde tinha a mecânica. Só se preocupou em devolver a
chave à imobiliária. A partir daquele dia, passou a morar comigo.
Foi
um momento feliz. Durou um mês e uma semana. A casa, que ficava na esquina com
a Guilherme Schell, colocamos à venda. Eu preferia a n° 871, pois gostava de
espaço. Mas se eu soubesse no que resultaria a minha escolha, não teria ido
para a casa do alto da lomba.
Cerca
de quarenta dias havia se passado. Estávamos descansados em relação à Ricardo,
pois de acordo com o jornal Diário de Canoas, ele havia sido preso por causa de
uma briga de bar. Estaria fora de circulação por anos, considerando que deixara
quatro pessoas seriamente feridas.
Marcos
continuava desempregado. Saía todos os dias para procurar serviço. A situação
estava difícil, pois embora tivéssemos uma casa à venda, ninguém ainda havia se
interessado por ela.
Em
uma tarde de sexta-feira, aconteceu um temporal terrível. Boa parte da casa
ficou destelhada. A sorte foi que, fora os trilhos por onde caminhávamos, o
restante do pátio era gramado. Pouquíssimas telhas quebraram. Marcos comprou
apenas uma dúzia de telhas na madeireira e voltou para casa.
-
Querida, não podemos pagar um pedreiro.
Eu
sabia que ele tinha razão, mas estava com muito medo.
-
Amor, deixe essas telhas de lado. Quando vendermos a casa da esquina, pagaremos
alguém para o conserto.
-
Rosa, não precisa se preocupar. Eu sempre tomo cuidado.
Implorei
para que Marcos não subisse no telhado, mas não adiantou. Imagino que quisesse
se mostrar útil, pois estava há mais de um mês sem trabalho.
Fiquei
na sala, esperando que tudo corresse bem. Quando ouvi um barulho estranho, saí
de casa o mais rápido que pude. Entrei em desespero ao ver Marcos caído no
chão. Ele tinha se desequilibrado no telhado e caíra lá de cima, estourando o
crânio em um canteiro. Minha felicidade havia terminado.
Mas
isso não era tudo: meus pais, Ricardo e Marcos jamais souberam o que eu sofria
com a minha gravidez. O que havia em minha barriga não era exatamente uma
criança. Eu a sentia morder a parede do útero duas vezes ao dia, para sugar o
meu sangue. Era assim que aquela coisa se alimentava. Além disso, gemia de dor
quando me arranhava ou me furava. O que quer que habitasse a minha barriga
tinha garras.
Eu
não sabia de ninguém que pudesse me indicar um médico para fazer aborto. Mas
estava claro, em minha mente, que aquele ser não poderia vir ao mundo. Enganava
os médicos, mas não a mim. Eu sabia que não seria a um ser humano, mas a um
monstro que eu daria à luz. E isso era inaceitável.
Uma
vez que não consegui ninguém que fizesse o aborto, decidi que eu mesma mataria
o ser que ainda não havia nascido. Não permitiria que Lúcifer deixasse seu
legado ao mundo. Lúcifer era um monstro. Apenas me usara para depois me
descartar, como se eu não tivesse valor.
Comecei
então este relatório, com o objetivo de alertar o mundo para que fique longe
desse ser maldito. Ele se faz de bonzinho, parecendo até um anjo. Porém, é só
fingimento. Na verdade, ele é perverso o bastante para terminar com a vida de
qualquer um. Mesmo que seja uma menina inocente, que nunca pôde ser feliz e
ainda nem atingiu a maioridade.”
Júlia
terminou a leitura do relato de Rosa, arrepiada. A história era simplesmente
inacreditável. Porém, havia algumas provas ou pelo menos fortes indicações de
que algo sobrenatural acontecia naquela casa.
O dia
seguinte seria sexta-feira, aniversário da Tassiane. No sábado, visitaria os
pais de Rosa e mostraria o diário. Talvez eles ajudassem a resolver o enigma.
Estava claro que Rosa mentira, quando narrara a morte dos pais. Mas nem tudo
devia ser mentira, e o Sr. Genésio e sua esposa poderiam ajudar a compreender
melhor a história de Rosa.
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